Vulneráveis, esquecidos e com o estigma de
criminosos, infratores com transtorno mental são vítimas de divergências entre
Justiça e Saúde
Josiani
V., de 36 anos, ficou isolada em uma cela por 45 dias no Hospital de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico masculino de Manaus. A dona de casa acusada de
tentativa de homicídio foi descoberta em setembro do ano passado entre os 27
internos da unidade durante inspeção do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Depois
disso, juízes determinaram que ela recebesse tratamento psiquiátrico em um
estabelecimento adequado. Mas, em apenas um mês, os autos de insanidade mental foram
arquivados: um novo laudo médico apontou que a paciente não sofria de
distúrbios psiquiátricos. Ela foi transferida para uma cadeia pública.
Assim como
Josiani, pessoas com transtornos mentais
que cometeram algum tipo de crime no Brasil são reféns das diferentes
interpretações da legislação. Pela falta de coordenação entre órgãos oficiais,
infratores com problemas psiquiátricos acabam recebendo tratamento degradante
em prisões, manicômios judiciários e na rede pública de saúde.
O cumprimento de medidas de segurança – decisões
judiciais que preveem internação a pacientes em conflito com a lei – é o
principal ponto de divergência.
O CNJ recomenda aos juízes que a medida seja
cumprida na rede pública de saúde, como em residências terapêuticas e unidades
do Caps (Centros de Atenção Psicossocial). Mas, como o assunto é tratado no
Código Penal e na Lei de Execuções Penais, a maioria dos magistrados interpreta que os pacientes devem ser enviados
ao sistema penitenciário, em particular aos manicômios judiciários, espécies de
hospital-presídio.
De forma generalizada, o tipo de tratamento
dado a esses infratores não está condicionado ao quadro clínico deles, mas ao
crime que cometeram.
"Temos
uma cadeia que não funciona. Deveria
prevalecer a lógica do atendimento médico, não a da periculosidade",
defende Jefferson Aparecido Dias, integrante da Comissão sobre Pessoas com
Transtorno Mental em Conflito com a Lei da Procuradoria Federal dos Direitos do
Cidadão.
Reféns
Uma portaria publicada em janeiro pelo
Ministério da Saúde estabelece que cabe ao Sistema Único de Saúde (SUS)
acompanhar as medidas terapêuticas aplicadas a infratores com problemas
psiquiátricos. O ministério admite que os manicômios judiciários são como
prisões.
"O espaço não é adequado para a recuperação.
Os pacientes ficam atrás das grades. Não são hospitais de fato. Na verdade, são
nada mais do que uma unidade prisional", disse à DW Marden Marques,
coordenador de Saúde no Sistema Prisional do Ministério da Saúde.
A adesão dos estados à nova política de
tratamento a esses infratores, no entanto, é voluntária. Apenas Goiás e Minas
Gerais possuem programas específicos para acompanhá-los. Rondônia, Espírito
Santo e Maranhão estão começando a implementar medidas de humanização.
"A ideia é andar em consonância com a reforma
psiquiátrica e extinguir aos poucos os espaços manicomiais. Essa política
também inclui atender quem está no presídio", explica Marques.
Mesmo com
a edição da portaria, o Brasil ainda
está longe de oferecer atendimento humanizado a infratores em unidades de saúde.
Segundo o CNJ, a rede pública de
assistência mental oferece resistência em recebê-los.
"É difícil convencer a rede de saúde a tratar
o paciente judiciário, especialmente os que cometeram crimes graves. Os profissionais que lidam com essas pessoas
tentam de qualquer forma escapar dos loucos considerados 'piores'. A tendência é querer que essas pessoas fiquem
no sistema prisional, especialmente nos manicômios judiciários",
afirma o juiz Douglas Martins, supervisor do Departamento de Monitoramento e
Fiscalização do Sistema Carcerário do CNJ.
No início de maio, uma inspeção do órgão no
Complexo Penitenciário da Papuda, no Distrito Federal, identificou um detento
que come vidro e joga fezes nos demais presos. O rapaz com claros transtornos
mentais já passou por vários exames, mas mesmo assim a perícia atesta que ele
não possui problemas psiquiátricos. Ele permanece preso.
Segundo o
Ministério da Saúde, é possível que
"alguns profissionais" ofereçam resistência e, por isso, a equipe
deve sensibilizá-los a atender o paciente judiciário de forma adequada.
Alternativas
Apesar da
estrutura existente em Goiás e Minas
Gerais para tratar loucos infratores no sistema de saúde, eles ainda dividem celas com presos comuns nos
dois estados. Ao menos 104 pessoas
que não podem aguardar a sentença em liberdade ou que desenvolveram transtornos
psiquiátricos dentro da cadeia estão no sistema prisional mineiro. Em Goiás,
são 24.
A ideia dos programas é ir na contramão dos
manicômios judiciários e acompanhar a aplicação das medidas de segurança na
rede de saúde. Goiás já extinguiu todas as unidades de custódia.
Mesmo que ainda não haja sentença, os pacientes
são inseridos nos programas desde o início do processo judicial e são
encaminhados a serviços públicos de saúde. Para os que estão atrás das grades,
o tratamento ocorre dentro da prisão.
"A ação se orienta não pelo crime cometido,
mas pela possibilidade de o paciente responder pelo ato que praticou em
condições de ampliação de laços sociais, e não de restrição da sua liberdade",
explica Fernanda Otoni, coordenadora do Programa de Atenção Integral ao
Paciente Judiciário (PAI-PJ) de Minas Gerais. O projeto, pioneiro no país,
começou em 2000 em Belo Horizonte e foi ampliado para o interior mineiro dez
anos depois.
O índice de reincidência entre os pacientes
acompanhados em Minas é de 1,4% em crimes como furto, ameaça, roubo e
participação no tráfico de drogas. Desde o início do programa, Goiás registrou
apenas um caso de reincidência grave.
"Existe um pré-conceito de que o doente
mental é perigoso e que, se ele cometeu um delito, tem de ser excluído do
convívio social. Isso é uma falácia", opina Maria Aparecida Diniz,
coordenadora do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili) de
Goiás.
Segundo o defensor
público Marcelo Carneiro Novaes, antes de ser infrator, o paciente em conflito com a lei tem todos os direitos previstos na lei
de assistência mental.
"Na prática, o Judiciário usurpa e viola a
lei nacional. Com a medida de segurança, o louco infrator precisa ser
encaminhado para a rede pública de saúde. Esse é o entendimento mais coerente",
defende.
Luta
antimanicomial
Nos últimos 11 anos, o número de leitos em
hospitais psiquiátricos caiu 44%. Atualmente, são 27.766 leitos no país, de
acordo com o Ministério da Saúde.
Como parte da reforma psiquiátrica, o ministério
decidiu reduzir as vagas nos hospitais especializados, devido ao estigma de
precariedade dos antigos manicômios, e aumentou em cem vezes a capacidade dos
Caps.
Para o
médico Quirino Cordeiro, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria, o governo federal tem uma política
irresponsável nessa área. "Tem-se observado um fechamento indiscriminado
de leitos em hospitais psiquiátricos sem se oferecer uma contrapartida para o
tratamento extra-hospitalar. Em situações agudas a internação é extremamente
necessária para a proteção do próprio paciente", avalia.
O Ministério da Saúde afirma que, nos Caps, o
paciente recebe "atendimento próximo da família, assistência médica e
cuidado terapêutico" e o que o local prevê internação "quando há
orientação médica".
Para o
juiz Douglas Martins, do CNJ, as instituições envolvidas na questão precisam
refletir sobre o tema. Segundo ele, quando
o paciente cumpre a medida de segurança e a Justiça concede alvará para que ele
volte para casa, a família pode não querer receber. Também é necessário suporte
psicológico aos familiares.
O problema envolve de ponta a ponta Estado e
sociedade. "Para se cumprir a Política Manicomial também é preciso mudar
uma cultura. Quando não há família, a rede de assistência social precisa
receber essas pessoas. Nada disso funciona bem. Essa é a realidade: não há
estrutura para que a lei seja cumprida."
Fonte:
http://www.cartacapital.com.br/sociedade/pacientes-psiquiatricos-sao-refens-de-impasse-juridico-541.html
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