GRANDE
MERCADO TRANSATLÂNTICO
As
eleições europeias de maio testemunharam uma rejeição crescente às políticas
predominantes no Velho Continente. A resposta de Bruxelas à reprovação popular?
Acelerar a conclusão de um acordo secreto com Washington para criar o GMT − uma
resposta paradoxal se considerarmos que as privatizações e a liberalização
por Raoul
Marc Jennar, Renaud Lambert
Do que
estamos falando? GMT, PTCI, TTIP, APT ou Tafta?
Diversas
siglas circulam para designar uma mesma realidade, oficialmente conhecida em
francês como Partenariat transatlantique
sur le commerce et l’investissement (Parceria
Transatlântica sobre o Comércio e o Investimento – PTCI) e em inglês como Transatlantic Trade and Investiment
Partnership (TTIP). Essa multiplicidade de nomes se explica em parte pelo
segredo das negociações, que entravou a uniformização dos termos utilizados.
Alimentado pelo vazamento de documentos, o trabalho das redes militantes levou
ao surgimento de novas siglas: em particular Tafta, em inglês, para Transatlantic Free-Trade Agreement (Acordo de Livre-Comércio Transatlântico),
e GMT, em francês, para Grand marché
transatlantique (Grande Mercado Transatlântico).1
Do que se
trata oficialmente?
O GMT é um acordo de livre-comércio negociado desde
julho de 2013 pelos Estados Unidos e pela União Europeia visando criar o maior
mercado do mundo, com mais de 800 milhões de consumidores.
Um estudo
do Centre for Economic Policy Research
(CEPR) – uma organização financiada por grandes bancos que a Comissão Europeia
apresenta como “independente”2 – estabelece que o acordo permitiria incrementar a produção de
riqueza a cada ano em 120 bilhões de euros na Europa e em 95 bilhões de euros
nos Estados Unidos.
Os acordos de livre-troca, como os
apadrinhados pela Organização Mundial do Comércio (OMC), visam não apenas
diminuir as barreiras alfandegárias,3 mas também reduzir as barreiras ditas “não
tarifárias”: cotas, formalidades administrativas e normas sanitárias, técnicas
e sociais. Se acreditarmos nos negociadores, o processo levaria a um aumento geral das normas sociais e jurídicas,
já que o tratado propõe impor seus “padrões” para o resto do mundo.
Do que se
trata mais provavelmente?
Criada em 1995, a OMC trabalhou amplamente pela
liberalização do comércio mundial. No entanto, as negociações se encontram travadas desde o fracasso da “rodada de
Doha” (principalmente no que diz respeito às questões agrícolas). Continuar
a promover o livre-comércio implicaria
colocar em andamento uma estratégia de desvio. Centenas de acordos foram
feitos então, ou estão sendo adotados diretamente entre dois países ou regiões.
O GMT representa a conclusão dessa
estratégia: assinadas entre as duas maiores potências comerciais do mundo (que
representam cerca da metade da produção da riqueza mundial), suas disposições
acabariam por se impor em todo o planeta.
O alcance
do mandato europeu de negociação e as expectativas expressas pela parte
norte-americana sugerem que o GMT
ultrapassaria amplamente o enquadramento de “simples” acordos de livre-comércio.
Concretamente, o projeto tem três
objetivos principais: eliminar os últimos direitos de alfândega, reduzir as
barreiras não tarifárias para uma harmonização das normas (cuja experiência dos
tratados precedentes faz pensar que ela se fará pelo nivelamento “por baixo”) e
dar instrumentos jurídicos para os investidores poderem destruir qualquer
obstáculo regulamentar ou legislativo ao livre-comércio. Em suma, impor algumas das disposições já previstas
pelo Acordo Multilateral sobre o Investimento (AMI)4 em 1998 e
pelo Acordo Comercial Antifalsificação (Acta)5 em 2011, ambos rejeitados sob a
vontade das populações.
Quando o
projeto deve se realizar?
Segundo o
calendário oficial, as negociações devem ser concluídas em 2015. Seguir-se-ia a
isso um longo processo de ratificação no Conselho e no Parlamento Europeu,
depois nos parlamentos nacionais dos países cuja Constituição o exige, como na
França (ler artigo na pág. 16).
Quem negocia?
Pela Europa, funcionários da Comissão Europeia.
Pelos Estados Unidos, seus homólogos do Ministério do Comércio. Todos são
objeto de pesadas pressões de lobbies representando, em sua maioria, os
interesses do setor privado. Com o objetivo de preparar o mandato de negociação, a Comissão Europeia reconheceu ter mantido,
entre janeiro de 2012 e abril de 2013, 119 reuniões (das 130 realizadas) apenas
com representantes dos meios empresariais.
Quais são
as consequências para os Estados?
O GMT prevê submeter as legislações em vigor dos
dois lados do Atlântico às regras do livre-comércio, que correspondem na
maioria das vezes às preferências das grandes empresas europeias e
norte-americanas. Os Estados consentiriam, por meio
do acordo, um abandono considerável de soberania: os que forem contrários aos
preceitos liberais se expõem a sanções financeiras que podem atingir dezenas de
milhões de dólares.
Segundo o
mandato da UE, o acordo deve “fornecer o
mais alto nível possível de proteção jurídica e de garantia para os
investidores europeus nos Estados Unidos” (e de modo recíproco). Falando
claramente: permite às firmas privadas atacar as legislações e
regulamentações quando considerarem que estas representam obstáculos para a
concorrência, para o acesso aos mercados públicos e para o investimento.
O artigo 4
do mandato especifica: “As obrigações do
acordo engajarão todos os níveis de governo”. É o mesmo que dizer que se aplicariam não apenas aos Estados, mas
também a todas as coletividades públicas: regiões, departamentos, comunas etc.
Uma regulamentação municipal poderia ser
questionada não mais diante de um tribunal administrativo local, mas de um
grupo de arbitragem privado internacional. Bastaria para isso que a regra
fosse considerada por um investidor como uma limitação ao seu “direito de
investir o que quiser, onde quiser, quando quiser, como quiser e tirar disso o
lucro que quiser”,6 segundo uma definição comum nos lobbies
norte-americanos.
Já que o tratado só poderá ser mudado com o
consentimento unânime dos signatários, ele se imporia independentemente das
alternâncias políticas.
Trata-se
de um projeto que os Estados Unidos impuseram à União Europeia?
De jeito
nenhum: a Comissão Europeia, com o
consentimento dos 28 governos da União Europeia, promove ativamente o GMT, que
se casa com seu credo no livre-comércio. O projeto é inclusive conduzido
pelas grandes organizações patronais, como o Conselho Econômico Transatlântico
[Trans-Atlantic Business Council(TABC)].
Criada em 1995 sob o impulso da Comissão Europeia e do Ministério do Comércio
norte-americano, essa organização promove um “diálogo” entre as elites
econômicas dos dois continentes, em Washington e em Bruxelas.
Raoul Marc
Jennar
Autor de
Quelle Europe aprés le non? (Qual Europa após o não?), Fayard, Paris, 2007
Renaud
Lambert é jornalista.
1 Depois de ter utilizado por um tempo a
expressão Accord de partenariat
transatlantique (Acordo de Parceria Transatlântica – APT), o Le Monde
Diplomatique finalmente adotou a denominação GMT.
2 “Transatlantic Trade and Investment
Partnership. The economic analysis
explained”,
Comissão Europeia, Bruxelas, set. 2013.
3 Os direitos de alfândega impostos às
mercadorias produzidas no estrangeiro durante sua entrada em um território.
4 Christian de Brie, “Comment l’AMI fut mis en pièces” [Como o AMI foi despedaçado], Le
Monde Diplomatique, dez. 1998.
5 Philippe Rivière, “L’accord commercial anti-contrefaçon compte ses opposants” [O
Acordo Comercial Antifalsificação conta seus opositores], La Valise
Diplomatique, jul. 2012. Disponível em: www.monde.diplomatique.fr.
6
Definição dos direitos do investidor dada pelo CEO da American Express.
07 de
Julho de 2014
Palavras
chave: GMT, PTCI, Tafta, Grande Mercado Transatlântico, União Europeia, livre-comércio,
Europa, Estados Unidos, EUA
Fonte:
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1687
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