Muitas pessoas já depararam com a
seguinte situação: adquiriram um bem por meio de contrato, por exemplo, um
contrato de compra e venda, e depois de algum tempo descobriram que o objeto
desse contrato possuía defeito ou vício – oculto no momento da compra – que o
tornou impróprio para uso ou diminuiu-lhe o valor. Casos de vícios em imóveis
ou em automóveis são bastante recorrentes.
Para regular tal situação, o Código
Civil (CC) prevê a redibição (daí o termo vício redibitório), que é a anulação
judicial do contrato ou o abatimento no seu preço. Os casos de vício
redibitório são caracterizados quando um bem adquirido tem seu uso comprometido
por um defeito oculto, de tal forma que, se fosse conhecido anteriormente por
quem o adquiriu, o negócio não teria sido realizado.
Além da anulação do contrato, o CC
prevê no artigo 443 a indenização por perdas e danos. Se o vício já era
conhecido por quem transferiu a posse do bem, o valor recebido deverá ser
restituído, acrescido de perdas e danos; caso contrário, a restituição alcançará
apenas o valor recebido mais as despesas do contrato.
De caráter bem mais abrangente, o Código
de Defesa do Consumidor (CDC) representou grande evolução para as relações de
consumo e ampliou o leque de possibilidades para a solução de problemas, incluindo
os casos de vícios redibitórios. A lei de proteção ao consumidor preza “pela
garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança,
durabilidade e desempenho”, conforme prevê o artigo 4º, inciso II, alínea d.
Desde 1990, quando foi promulgado o CDC,
o instituto do vício redibitório perdeu espaço na proteção dos direitos do
consumidor. O código consumerista impõe responsabilidade ampla ao fornecedor
diante de defeitos do produto ou do serviço, independentemente das condições
que a lei exige para o reconhecimento do vício redibitório – como, por exemplo,
a existência de contrato ou o fato de o vício ser oculto e anterior ao
fechamento do negócio.
No entanto, o instituto do vício
redibitório continua relevante nas situações não cobertas pelo CDC, como são as
transações entre empresas (desde que não atendam às exigências do código para
caracterizar relação de consumo) e muitos negócios praticados entre pessoas
físicas.
Em diversos julgamentos, o Superior
Tribunal de Justiça (STJ) tem interpretado as disposições do CC e do CDC no que
diz respeito aos vícios redibitórios. Acompanhe alguns pronunciamentos do
Tribunal acerca do assunto.
Vício redibitório x vício de
consentimento
A Terceira Turma do STJ, ao julgar o
REsp 991.317, estabeleceu a distinção entre vício redibitório e vício de
consentimento, advindo de erro substancial. Para a ministra Nancy Andrighi,
relatora do recurso, o tema é delicado e propício a confusões, principalmente
pela existência de teorias que tentam explicar a responsabilidade pelos vícios
redibitórios sustentando que derivam da própria ignorância de quem adquiriu o
produto.
Naquele processo, foi adquirido um lote
de sapatos para revenda. Os primeiros seis pares vendidos apresentaram defeito
(quebra do salto) e foram devolvidos pelos consumidores. Diante disso, a venda
dos outros pares foi suspensa para devolução de todo o lote, o que foi recusado
pela empresa fabricante.
Em segunda instância, a hipótese foi
considerada erro substancial. Segundo acórdão do Tribunal de Justiça de Minas
Gerais (TJMG), a razão exclusiva do consentimento do comprador do lote de
sapatos era “a certeza de que as mercadorias adquiridas possuíam boa qualidade,
cuja inexistência justifica a anulação da avença”.
Entretanto, no entendimento da ministra
Nancy Andrighi, quem adquiriu o lote de sapatos não incorreu em erro
substancial, pois recebeu exatamente aquilo que pretendia comprar. A relatora
entendeu que “os sapatos apenas tinham defeito oculto nos saltos, que os tornou
impróprios para o uso”.
“No vício redibitório o contrato é
firmado tendo em vista um objeto com atributos que, de uma forma geral, todos
confiam que ele contenha. Mas, contrariando a expectativa normal, a coisa
apresenta um vício oculto a ela peculiar, uma característica defeituosa incomum
às demais de sua espécie”, disse a ministra.
Segundo ela, os vícios redibitórios não
são relacionados à percepção inicial do agente, mas à presença de uma disfunção
econômica ou de utilidade no objeto do negócio. “O erro substancial alcança a
vontade do contratante, operando subjetivamente em sua esfera mental”,
sustentou.
Prazo para reclamar
Em relação aos vícios ocultos, o CDC
dispõe no artigo 26, parágrafo 3º, que o prazo para que o consumidor reclame
inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito.
No julgamento do REsp 1.123.004, o
ministro Mauro Campbell entendeu que, caracterizado vício oculto, o prazo
decadencial inicia a partir da data em que o defeito for evidenciado, ainda que
haja uma garantia contratual. Contudo, não se pode abandonar o critério da vida
útil do bem durável, para que o fornecedor não fique responsável por solucionar
o vício eternamente.
Diante disso, o ministro reformou
decisão que considerou afastada a responsabilidade do fornecedor do produto,
nos casos em que o defeito for detectado após o término do prazo de garantia
legal ou contratual.
No REsp 1.171.635, o desembargador
convocado Vasco Della Giustina, da Terceira Turma, concluiu que a inércia do
consumidor em proceder à reclamação dentro do prazo de caducidade autoriza a
extinção do processo com resolução do mérito, conforme orienta o artigo 269,
inciso IV, do Código de Processo Civil (CPC).
O consumidor adquiriu dois triciclos e,
menos de um mês depois, descobriu certo problema no seu funcionamento. Depois
de idas e vindas buscando uma solução, passados seis meses, registrou
reclamação no Procon. Somente após mais de um ano, o consumidor intentou ação
judicial.
“Esta Corte Superior já se manifestou
pela inexistência de ilegalidade, quando o inconformismo do consumidor ocorre
em data superior ao prazo de decadência”, afirmou o relator.
Quem responde?
No julgamento do REsp 1.014.547, a
Quarta Turma decidiu que a responsabilidade por defeito constatado em
automóvel, adquirido por meio de financiamento bancário, é exclusiva do
vendedor, pois o problema não se relaciona às atividades da instituição
financeira.
Uma consumidora adquiriu uma Kombi
usada, que apresentou defeitos antes do término da garantia – 90 dias. O
automóvel havia sido adquirido por meio de uma entrada, paga diretamente à
revendedora, e o restante financiado pelo Banco Itaú.
A consumidora ingressou em juízo e, em
primeira instância, obteve a rescisão do contrato de compra e venda, bem como
do financiamento firmado com o banco. Ambos foram condenados solidariamente a
restituírem os valores das parcelas pagas e, além disso, a revendedora foi
condenada a indenizar a autora por danos morais. O Tribunal de Justiça do
Distrito Federal (TJDF) manteve a sentença.
Inconformado, o Banco Itaú recorreu ao
STJ e apontou violação dos artigos 14 e 18 do CDC. Sustentou que o contrato de
financiamento seria distinto do de compra e venda do veículo, firmado com a
empresa revendedora. Sendo assim, os defeitos seriam referentes ao veículo e
isso não importaria nenhum vício no contrato de financiamento.
Segundo o ministro João Otávio de
Noronha, a instituição financeira não pode ser tida por fornecedora do bem que
lhe foi ofertado como garantia de financiamento. O ministro explicou que as
disposições do CDC incidem sobre a instituição bancária apenas na parte
referente aos serviços que presta, ou seja, à sua atividade financeira.
Para ele, a consumidora formalizou dois
contratos distintos. “Em relação ao contrato de compra e venda do veículo e o
mútuo com a instituição financeira, inexiste, portanto, acessoriedade, de sorte
que um dos contratos não vincula o outro nem depende do outro”, sustentou.
Imóveis
Já em relação a defeitos existentes em
imóvel financiado pela Caixa Econômica Federal (CEF), a Quarta Turma decidiu,
ao julgar o REsp 738.071, que a instituição financeira era parte legítima para
responder, juntamente com a construtora, por vícios na construção do imóvel
cuja obra foi por ela financiada com recursos do Sistema Financeiro de
Habitação (SFH).
A CEF recorreu ao STJ argumentando que
não teria responsabilidade solidária pelos vícios de construção existentes no
imóvel, localizado no Conjunto Habitacional Ângelo Guolo, em Cocal do Sul (SC),
destinado a moradores de baixa renda.
O ministro Luis Felipe Salomão, relator
do recurso especial, explicou que a legitimidade passiva da instituição
financeira não decorreria simplesmente do fato de haver financiado a obra, mas
de ter provido o empreendimento, elaborado o projeto com todas as
especificações, escolhido a construtora e de ter negociado diretamente, dentro
do programa de habitação popular.
Segundo entendimento majoritário da
Quarta Turma nesse julgamento, a responsabilidade da CEF em casos que envolvem
vícios de construção em imóveis financiados por ela deve ser analisada caso a
caso, a partir da regulamentação aplicável a cada tipo de financiamento e das
obrigações assumidas pelas partes envolvidas.
Fonte: STJ
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