Quinta-feira, 12 de abril de 2012
Por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente o pedido contido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ajuizada na Corte pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), para declarar a inconstitucionalidade de interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, todos do Código Penal. Ficaram vencidos os ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso, que julgaram a ADPF improcedente.
Leia, a seguir, as matérias sobre os votos dos ministros do STF na ADPF 54:
O relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ministro Marco Aurélio, votou, nesta terça-feira (11), pela possibilidade legal de interromper gravidez de feto anencéfalo. O ministro considerou procedente o pedido feito pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), para declarar inconstitucional a interpretação dada aos artigos 124, 126 e 128 (incisos I e II) do Código Penal que criminaliza a antecipação terapêutica de parto nos casos de anencefalia.
“A incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto, o será por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher”, afirmou o ministro, ao sustentar a descriminalização da prática. Para ele, é inadmissível que o direito à vida de um feto que não tem chances de sobreviver prevaleça em detrimento das garantias à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à saúde e à integridade física, psicológica e moral da mãe, todas previstas na Constituição.
Em voto longo e baseado nas informações colhidas durante quatro dias de audiência pública realizada pelo STF para debater o tema, o ministro Marco Aurélio concluiu que a imposição estatal da manutenção de gravidez cujo resultado final será a morte do feto vai de encontro aos princípios basilares do sistema constitucional. Para ele, obrigar a mulher a manter esse tipo de gestação significa colocá-la em uma espécie de “cárcere privado em seu próprio corpo”, deixando-a desprovida do mínimo essencial de autodeterminação, o que se assemelha à tortura.
“Cabe à mulher, e não ao Estado, sopesar valores e sentimentos de ordem estritamente privada, para deliberar pela interrupção, ou não, da gravidez”, afirmou, acrescentando estar em jogo a privacidade, a autonomia e a dignidade humana dessas mulheres, direitos fundamentais que devem ser respeitados. Na interpretação do ministro, ao Estado cabe o dever de informar e prestar apoio médico e psicológico à paciente antes e depois da decisão, independente de qual seja ela, o que hoje é perfeitamente viável no Brasil.
Direito à vida
Em seu voto, o ministro Marco Aurélio sustentou que na ADPF 54 não se discute a descriminalização do aborto, já que existe uma clara distinção entre este e a antecipação de parto no caso de anencefalia. “Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível”, frisou. A anencefalia, que pressupõe a ausência parcial ou total do cérebro, é doença congênita letal, para a qual não há cura e tampouco possibilidade de desenvolvimento da massa encefálica em momento posterior. “O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura”, afirmou o ministro.
Nesse sentido, no entendimento do relator, não há que se falar em direito à vida ou garantias do indivíduo quando se trata de um ser natimorto, com possibilidade quase nula de sobreviver por mais de 24 horas, principalmente quando do outro lado estão em jogo os direitos da mulher. Dados apresentados na audiência pública demonstram que a manutenção da gravidez nesses casos impõe graves riscos para a saúde da mãe, assim como consequências psicológicas severas e irreparáveis para toda a família.
Código Penal
Em relação ao fato de não haver menção no Código Penal aos casos de anencefalia como quesito autorizador de interrupção de gravidez, o ministro Marco Aurélio argumentou que nas décadas de 30 e 40, quando foi editado o Código Penal hoje vigente, a medicina não possuía os recursos técnicos necessários para identificar previamente esse tipo de anomalia fetal. “Mesmo à falta de previsão expressa no Código Penal de 1940, parece-me lógico que o feto sem potencialidade de vida não pode ser tutelado pelo tipo penal que protege a vida”, afirmou.
Além disso, ele lembrou que, naquela época, o legislador, para proteger a honra mental e a saúde da mulher, estabeleceu que o aborto em gestação oriunda do estupro não seria crime, situação em que o feto é plenamente viável. “Se a proteção ao feto saudável é passível de ponderação com direitos da mulher, com maior razão o é eventual proteção dada ao feto anencéfalo”, ponderou.
Estado laico
Ao proferir seu voto, o ministro reforçou ainda o caráter laico do Estado brasileiro, previsto desde a Carta Magna de 1891, quando da transição do Império à República. “A questão posta nesse processo – inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual configura crime a interrupção de gravidez de feto anencéfalo - não pode ser examinada sob os influxos de orientações morais religiosas”, frisou.
Assim como ocorreu no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3510 - sobre possibilidade de realização das pesquisas científicas com células-tronco embrionárias, em que o STF primou pela laicidade do Estado - para o ministro, as concepções morais e religiosas não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada. “O Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é simplesmente neutro”, concluiu.
Doação de órgãos
Ao sustentar seu entendimento, o ministro Marco Aurélio também afastou a premissa utilizada em prol da defesa do anencéfalo de que os seus órgãos poderiam ser doados. Segundo ele, além de ser vedada a manutenção de uma gravidez somente para viabilizar a doação de órgãos, essa possibilidade é praticamente impossível no caso de anencefalia, pois o feto terá outras anomalias que inviabilizariam a prática. Obrigar a mulher a manter a gravidez apenas com esse propósito, para o relator, seria tratá-la a partir de uma perspectiva utilitarista, de instrumento de geração de órgãos para doação, o que também fere o princípio da dignidade da pessoa humana.
Dados
Até o ano de 2005, os juízes e Tribunais de Justiça formalizaram cerca de 3 mil autorizações para interromper gestações em decorrência da impossibilidade de sobrevivência do feto, o que demonstra, segundo constatou o ministro Marco Aurélio, a necessidade de o STF se pronunciar sobre o tema. Conforme mencionou no início de seu voto, o Brasil é o quarto país do mundo em casos de fetos anencéfalos, ficando atrás do Chile, México e Paraguai. A incidência é de aproximadamente um em cada mil nascimentos, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), obtidos entre 1993 e 1998 e citados pelo relator no voto.
MC/AD
A ministra Rosa Weber acompanhou o voto do relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ministro Marco Aurélio, também defendendo a exclusão da interrupção ou antecipação do parto de feto anencéfalo do rol dos crimes contra a vida, conforme previsto nos artigos 124 e 126 do Código Penal (CP). Por isso, julgou procedente a ação, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS).
Logo após o voto da ministra, votou no mesmo sentido o ministro Joaquim Barbosa, ao pedir a juntada, com algumas modificações, do voto por ele elaborado sobre esta matéria na análise do Habeas Corpus (HC) 84025.
Liberdade da gestante
Em seu voto, a ministra Rosa Weber sustentou que, para o direito, o que está em jogo, no caso, não é o direito do feto anencefálico à vida, já que, de acordo com o conceito de vida do Conselho Federal de Medicina (CFM), jamais terá condições de desenvolver uma vida com a capacidade psíquica, física e afetiva inata ao ser humano, pois não terá atividade cerebral que o qualifique como tal. O que está em jogo, portanto, segundo ela, é o direito da mãe de escolher se ela quer levar adiante uma gestação cujo fruto nascerá morto ou morrerá em curto espaço de tempo após o parto, sem desenvolver qualquer atividade cerebral, física, psíquica ou afetiva, própria do ser humano.
Embora, em seu voto, a ministra sustentasse a relatividade dos conceitos da ciência sobre o que é vida e sobre a aplicabilidade dos conceitos e paradigmas da ciência às demais áreas da vida humana, em virtude de sua mutabilidade, ela se reportou, em seu voto, à Resolução nº 1480/97 do Conselho Federal de Medicina, que estabeleceu como parâmetro para diagnosticar a morte de uma pessoa a ausência de atividade motora em virtude da morte cerebral, isto é, a certeza de que o indivíduo não apresentará mais capacidade cerebral. Este é, segundo a ministra, “um critério claro, seguro e garantido” que pode ser aplicado, por analogia, ao feto anencefálico.
“A gestante deve ficar livre para optar sobre o futuro de sua gestação do feto anencéfalo”, sustentou a ministra Rosa Weber. “Todos os caminhos, a meu juízo, conduzem à preservação da autonomia da gestante para escolher sobre a interrupção da gestação de fetos anencéfalos”, sustentou ainda a ministra.
“A postura contrária, a meu juízo, não se mostra sustentável, em nenhuma dessas perspectivas e à luz dos princípios maiores dos direitos, como o da dignidade da pessoa humana, consagrada em nossa Carta Maior, no seu artigo 1º, inciso III”, afirmou ela.
“Diante do exposto, voto pela procedência da presente ação, para dar interpretação conforme aos artigos 124 e 126 do Código Penal, excluindo, por incompatível com a nossa Lei Maior, a interpretação que entende a interrupção ou antecipação do parto, em caso de anencefalia comprovada, como crime de aborto”, concluiu a ministra.
FK/AD
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux foi o quarto a votar na sessão Plenária desta quarta-feira (19) a favor da possibilidade da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. “Impedir a interrupção da gravidez sob ameaça penal efetivamente equivale a uma tortura, vedada pela Constituição Federal”, disse.
A questão está sendo debatida na Corte no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54) ajuizada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS). O objetivo da entidade é que seja declarada inconstitucional qualquer intepretação do Código Penal no sentido de criminalizar a antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos.
Com base em inúmeros estudos e dados científicos, o ministro Luiz Fux afirmou ser possível chegar a “três conclusões lastimáveis” sobre a gestação de anencéfalos: que a expectativa de vida deles fora do útero é absolutamente efêmera, que o diagnóstico de anencefalia pode ser feito com razoável índice de precisão e que as perspectivas de cura da deficiência na formação do tubo neural são absolutamente inexistentes nos dias de hoje.
Diante dessas conclusões, o ministro ressaltou a importância de se proteger a saúde física e psíquica da gestante, dois componentes da dignidade humana da mulher. Ele desafiou a possiblidade de qualquer pessoa comprovar, à luz do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, que é justo relegar a gestante de um feto anencéfalo aos “bancos de um tribunal de júri” para responder penalmente por aborto. “Por que punir essa mulher que já padece de uma tragédia humana?”, questionou.
Para Luiz Fux, esse intuito punitivo que não só não se coaduna com a sociedade moderna, como está desconectado “da necessidade de se reservar para o direito penal apenas aquelas situações realmente aviltantes para a vida em comunidade”. O ministro enquadrou a interrupção da gravidez de fetos anencefálicos como matéria de saúde pública que aflige, em sua maioria, mulheres de menor poder aquisitivo, sendo, portanto, uma questão a ser tratada como política de assistência social.
Segundo ele, é importante dar à gestante “todo apoio necessário em uma situação tão lastimável” e não punir com uma repressão penal destituída de qualquer fundamento razoável. “(Esta hipótese) seria, no meu modo de ver, o punir pelo punir, como se o direito penal fosse a panaceia de todos os problemas sociais.”
No início de seu voto, que durou cerca de uma hora, o ministro Luiz Fux registrou a definição de anencefalia dada pelo National Institute of Neurological Disorders and Stroke (NINDS), entidade norte-americana. O NINDS define a malformação como um defeito do tubo neural do feto, assim, crianças com essa disfunção nascem sem a porção anterior do cérebro e a área responsável pelo pensamento e pela coordenação.
O ministro disse que a parte remanescente do cérebro dessas crianças fica exposta e, em geral, os bebês anencéfalos são cegos, surdos, inconscientes e incapazes de sentir dor. Ele registrou ainda que, apesar de alguns deles viverem minutos, a falta de um cérebro em funcionamento permanente descarta completamente a possibilidade de qualquer ganho de consciência. “Se o infante não é natimorto, falece horas após o nascimento”, disse.
O ministro Luiz Fux também destacou que não discutiria em seu voto qual a vida mais importante: se a da mulher ou a do feto. “Não me sinto confortável para fazer essa ponderação”, disse. Ele explicou que o debate é alvo de “significativo dissenso moral” e que, por isso mesmo, impõe uma postura “minimalista do Judiciário”, adstrita à questão da criminalização ou não da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. “No meu modo de ver, seria extremamente prematuro que o STF buscasse solucionar, como se legislador fosse, todas as premissas de um intenso debate que apenas se inicia na nossa sociedade, fruto do pluralismo que a caracteriza”, ponderou.
RR/AD
· Ministra Cármen Lúcia
A ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha se uniu aos votos dos ministros que a antecederam, pela procedência do pedido feito na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, que teve o julgamento iniciado na tarde desta quarta-feira (11), pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Em seu voto, a ministra manifestou-se favorável quanto à possibilidade de interrupção da gravidez de fetos anencéfalos.
Segundo a ministra, todos – tanto as contribuições dadas durante a audiência pública realizada sobre o tema, bem como os ministros da Corte – estão preocupados com o direito à vida e à dignidade da pessoa humana, “com a visão que cada um tem de mundo e da própria vida”. Ela avaliou que essa situação reflete o momento democrático brasileiro, “de pluralidade e de respeito absoluto pelas opiniões contrárias, o qual precisa ser dito exatamente na perspectiva constitucional”.
A ministra frisou que o Supremo não está decidindo nem permitindo a introdução do aborto no Brasil, menos ainda a possibilidade de aborto em virtude de qualquer deformação. Para ela, essa é uma questão posta à sociedade e o STF está tratando, fundamentalmente, de saber qual interpretação que deve ser dada aos dispositivos do Código Penal no sentido de se considerar crime ou não a interrupção de gravidez de feto anencéfalo.
“Estamos discutindo o direito à vida, à liberdade e à responsabilidade”, ressaltou Cármen Lúcia. “Estamos deliberando sobre a possibilidade jurídica de uma pessoa ou de um médico ajudar uma mulher que esteja grávida de um feto anencéfalo, a fim de ter a liberdade de fazer a escolha sobre qual é o melhor caminho a ser seguido, quer continuando quer não continuando com essa gravidez”, explicou.
Dignidade da vida
O voto da ministra Cármen Lúcia foi fundamentado no direito à dignidade da vida e no direito à saúde. “Todas as opções, mesmo essa interrupção, são de dor. A escolha é qual a menor dor, não é de não doer porque a dor do viver já aconteceu, a dor do morrer também”, disse a ministra, destacando que, para ela, a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos não é criminalizável para que seja preservada a dignidade da vida “que é o que a Constituição assegura como o princípio fundamental do constitucionalismo contemporâneo”.
Ela lembrou, ainda, que “o pai também sofre barbaramente” e precisa ser levado em consideração na sua dignidade, assim como toda a família. Por essa razão, a ministra salientou que quando se fala em dignidade, todos estão envolvidos: a mãe, o pai e os irmãos mais velhos, os quais têm expectativas no nascimento do bebê.
Sociedade democrática
“Não há bem jurídico a ser tutelado como sobrevalor pela norma penal que possa justificar a impossibilidade total de a mulher fazer a escolha sobre a interrupção da gravidez, até porque talvez a maior indicação de fragilidade humana seja o medo e a vergonha”, ressaltou a ministra Cármen Lúcia. De acordo com ela, a mulher que não pode interromper a gravidez de feto anencéfalo “tem medo do que vai acontecer, medo físico, psíquico e de vir a ser punida penalmente por uma conduta que ela venha a adotar”.
A ministra frisou que nada fragiliza mais o ser humano do que o medo e a vergonha. Segundo ela, em uma das cartas enviadas aos ministros, uma mulher contou que durante cinco meses de gravidez, após ter descoberto a anencefalia do seu feto, não saía mais de casa porque em toda fila, até mesmo na do banco, perguntavam quando o bebê ia nascer, qual o nome da criança e o que a mãe pensava para o filho, mas ela não podia responder. “Portanto, ela passou cinco meses dentro de casa se escondendo por vergonha de não ter escolhas numa sociedade que se diz democrática, com possibilidade de garantir liberdade para todos”, observou a ministra.
“Considero que na democracia a vida impõe respeito. Neste caso, o feto não tem perspectiva de vida e, de toda sorte, há outras vidas que dependem, exatamente, da decisão que possa ser tomada livremente por esta família [mãe, pai] no sentido de garantir a continuidade livre de uma vida digna”, concluiu a ministra Cármen Lúcia.
EC/AD
Sexto a votar no julgamento, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, o ministro Ricardo Lewandowski divergiu do relator, ministro Marco Aurélio, e votou pela improcedência do pedido formulado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) de que o STF fixe entendimento para que a antecipação terapêutica de feto anencefálico não configure crime. Com sua manifestação, o julgamento conta com cinco votos pela procedência da ADPF e um contra, até o momento.
Usurpação de poderes
O voto do ministro Lewandowski seguiu duas linhas de raciocínio. Na primeira, ele destacou os limites objetivos do controle de constitucionalidade das leis e da chamada interpretação conforme a Constituição, com base na independência e harmonia entre os Poderes. “O STF, à semelhança das demais cortes constitucionais, só pode exercer o papel de legislador negativo, cabendo a função de extirpar do ordenamento jurídico as normas incompatíveis com a Constituição", afirmou. Mesmo este papel, segundo seu voto, deve ser exercido com “cerimoniosa parcimônia”, diante do risco de usurpação de poderes atribuídos constitucionalmente aos integrantes do Congresso Nacional. “Não é dado aos integrantes do Judiciário, que carecem da unção legitimadora do voto popular, promover inovações no ordenamento normativo como se fossem parlamentares eleitos”, ressaltou.
Nesse aspecto, o ministro observou que o Congresso Nacional, “se assim o desejasse”, poderia ter alterado a legislação para incluir os anencéfalos nos casos em que o aborto não é criminalizado, mas até hoje não o fez. O tema, assinalou, é extremamente controvertido, e ambos os lados defendem suas posições com base na dignidade da pessoa humana. “Nosso parlamento se encontra profundamente dividido, refletindo, aliás, a abissal cisão da própria sociedade brasileira em torno da matéria”, disse, acrescentando que pelo menos dois projetos de lei sobre o tema tramitam desde 2004 sem que se tenha chegado a consenso.
Ampliação das possibilidades
O segundo ponto enfatizado pelo ministro Lewandowski foi a possibilidade de que uma decisão favorável ao aborto de fetos anencéfalos torne lícita a interrupção da gestação de embriões com diversas outras patologias que resultem em pouca ou nenhuma perspectiva de vida extrauterina. Citando dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre malformações congênitas, deformidades e anomalias cromossômicas, Lewandowski ressaltou que existem dezenas de patologias fetais em que as chances de sobrevivência são nulas ou muito pequenas – como acardia (ausência de coração), agenesia renal, hipoplasia pulmonar, atrofia muscular espinhal e outras.
Para o ministro, uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos portadores de anencefalia, “ao arrepio da legislação penal vigente”, além de “discutível do ponto de vista ético, jurídico e científico”, abriria a possibilidade de interrupção da gestação de inúmeros outros casos. “Sem lei devidamente aprovada pelo parlamento, que regule o tema com minúcias, precedida de amplo debate público, provavelmente retrocederíamos aos tempos dos antigos romanos, em que se lançavam para a morte, do alto de uma rocha, as crianças consideradas fracas ou debilitadas”, afirmou.
Finalmente, o voto destaca a existência de diversos dispositivos legais em vigor que resguardam a vida intrauterina – sobretudo o Código Civil, que, no artigo 2º, estabelece que a lei ponha a salvo, “desde a concepção”, os direitos do nascituro. Tais normas, segundo Lewandowski, também teriam de ser consideradas inconstitucionais ou merecer interpretação conforme a Constituição.
CF/AD
O ministro Gilmar Mendes foi o sétimo a votar pela procedência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, em análise pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Ele considerou a interrupção da gravidez de feto anencefálo como hipótese de aborto, mas entende que essa situação está compreendida como causa de excludente de ilicitude, já prevista no Código Penal, por ser comprovado que a gestação de feto anencefálo é perigosa à saúde da gestante.
No entanto, o ministro ressalvou ser indispensável que as autoridades competentes regulamentem de forma adequada, com normas de organização e procedimento, o reconhecimento da anencefalia a fim de “conferir segurança ao diagnóstico dessa espécie”. Enquanto pendente de regulamentação, disse o ministro, "a anencefalia deverá ser atestada por, no mínimo, dois laudos com diagnósticos produzidos por médicos distintos e segundo técnicas de exames atuais e suficientemente seguras”.
Apesar de entender que a regra do Código Penal é a vedação do aborto, o ministro Gilmar Mendes avaliou que a hipótese específica de aborto de fetos anencéfalos está compreendida entre as excludentes de ilicitude, estabelecidas pelo Código Penal. Ele citou que, conforme a legislação brasileira, o aborto não é punido em duas situações: quando não há outro meio de salvar a vida da mãe (aborto necessário ou terapêutico) e quando a gravidez é resultante de estupro, caso em que se requer o consentimento da gestante, porque a intenção é proteger a saúde psíquica dela.
“Todavia, era inimaginável para o legislador de 1940 [ano da edição do Código Penal], em razão das próprias limitações tecnológicas existentes”, disse. Com o avanço das técnicas de diagnóstico, prosseguiu o ministro, “tornou-se comum e relativamente simples descobrir a anencefalia fetal, de modo que a não inclusão na legislação penal dessa hipótese de excludente de ilicitude pode ser considerada uma omissão legislativa, não condizente com o Código Penal e com a própria Constituição”.
De acordo com o ministro, a inconstitucionalidade da omissão legislativa está na ofensa à integridade física e psíquica da mulher, bem como na violação ao seu direito de privacidade e intimidade, aliados à ofensa à autonomia da vontade. “Competirá [como na hipótese do aborto de feto resultante de estupro] a cada gestante, de posse do seu diagnóstico de anencefalia fetal, decidir que caminho seguir”, ressaltou. Por essa razão, o ministro destacou a necessidade de o Estado disciplinar, “com todo zelo, a questão relativa ao diagnóstico de anencefalia fetal, visto que ele é condição necessária à realização deste tipo de aborto”.
Assim, o ministro Gilmar Mendes votou pela procedência da ADPF 54 por entender que não se deve punir aborto praticado por médico, com sentimento da gestante, se o feto é anencefalo. Até o momento, também votaram desse modo os ministros Marco Aurélio (relator), Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Cármen Lúcia Antunes Rocha e Ayres Britto.
Prevenção à anencefalia
Conforme o ministro Gilmar Mendes, o Brasil já possui medidas que priorizam a prevenção e não apenas a repressão da interrupção da gravidez. Ele contou que o Ministério da Saúde homologou resolução do Plenário do Conselho Nacional de Saúde na qual se atribui ao próprio ministério a responsabilidade de promover ações que visem à prevenção de anencefalia, disponibilizando ácido fólico na rede básica de saúde para acesso de todas as mulheres no período pré-gestacional e gestacional, além de garantir a inclusão de ácido fólico nos insumos alimentícios.
EC/AD
Oitavo ministro a se pronunciar pela possibilidade da interrupção, por desejo da mãe, do parto em caso de gestação de feto anencefálico, o decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, julgou procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ajuizada na Corte pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS).
“Julgo integralmente procedente a ação, para confirmar o pleno direito da mulher gestante de interromper a gravidez de feto comprovadamente portador de anencefalia, dando interpretação conforme a Constituição Federal aos artigos 124, 126, cabeça, e 128, incisos I e II, todos do Código Penal, para que, sem redução de texto, seja declarada a inconstitucionalidade, com eficácia erga omnes (para todos) e efeito vinculante, de qualquer outra interpretação que obste a realização voluntária de antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico”.
Ele condicionou, entretanto, esta interrupção da gravidez a que “esta malformação fetal seja diagnostica e comprovadamente identificada por profissional médico legalmente habilitado”, reconhecendo à gestante “o direito de submeter-se a tal procedimento, sem necessidade de prévia obtenção de autorização judicial ou permissão outorgada por qualquer outro órgão do Estado”, afirmou o ministro, ao concluir seu voto.
Em seu voto, ele endossou proposta do ministro Gilmar Mendes no sentido de que seja solicitada ao Ministério da Saúde e ao Conselho Federal de Medicina a adoção de medidas que possam viabilizar a adoção desse procedimento.
Direito da mulher
Após lembrar que a Suprema Corte julga o caso imparcialmente, ancorada na própria Constituição Federal (CF), nos tratados internacionais sobre direitos humanos, particularmente da mulher, de que o Brasil é signatário, bem como na legislação ordinária do país, o ministro disse que a Corte não estava impondo nada, mas reconhecendo pleno direito à mulher de escolher o caminho a seguir, em casos de anencefalia, inclusive o de conduzir a gravidez até o fim.
“O STF, no estágio em que já se acha este julgamento, está a reconhecer que a mulher, apoiada em razões fundadas nos seus direitos reprodutivos e protegida pela eficácia incontrastável dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação pessoal e da intimidade, tem o direito insuprimível de optar pela antecipação terapêutica de parto nos casos de comprovada malformação fetal por anencefalia; ou então, legitimada por razões que decorrem de sua autonomia privada, o direito de manifestar sua liberdade individual, em clima da absoluta liberdade, pelo prosseguimento natural do processo fisiológico de gestação”, observou ele.
Importância
Ao iniciar seu voto, o ministro Celso de Mello disse que, em quase 44 anos de atuação na área jurídica, nunca participou de um julgamento de tamanha magnitude, envolvendo o alcance da vida e da morte. Posteriormente, ele considerou este julgamento e o da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3510 (pesquisa com células tronco embrionárias), relatada pelo ministro Ayres Britto, dos “mais importantes julgamentos que o Supremo Tribunal Federal já realizou, em toda a histórica republicana”.
Aborto
“Nós não estamos autorizando práticas abortivas, legitimando a prática do aborto”, disse o ministro, observando que “esta é outra questão que poderá ser submetida à apreciação desta Corte, em outro momento, mas não é o caso”. Ele fez questão de afirmar que há uma grande diferença entre legalização do aborto e a antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia.
Em seu voto, ele lembrou que há diversos conceitos de vida, sobre seu início e fim, e que a Constituição não define quando ela se inicia. Lembrou, inclusive, que na Assembleia Nacional Constituinte foram apresentadas diversas emendas definindo o início da vida humana a partir do momento da concepção, mas elas foram todas rejeitadas.
Entretanto, o ministro Celso de Mello mencionou a palestra de um médico durante a audiência pública de 2008 que antecedeu o julgamento desta ADPF, segundo o qual o critério deve ser o mesmo previsto na Lei 9.434/97 (que trata da remoção de órgãos, partes e tecidos para fins de transplante) e na Resolução 1.752/97 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que consideram morto um ser humano quando cessa completamente sua atividade cerebral, ou seja, a morte encefálica. Por analogia, segundo ele, o feto anencéfalo não é um ser humano vivo, porque não tem cérebro e nunca vai desenvolver atividade cerebral.
Portanto, sequer haveria tipicidade de crime contra a vida na interrupção antecipada de tal parto. “Se não há vida a ser protegida, não há tipicidade”, sustentou.
Ainda em seu voto, o ministro citou depoimentos dados na audiência pública sobre o caso, por médicos especialistas, segundo os quais há um elevado índice de mortalidade das mulheres com gravidez de feto anencefálico, bem como de transtornos psiquiátricos.
FK/AD
Último a votar, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Cezar Peluso, manifestou-se pela total improcedência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, que discute a possibilidade de interrupção da gestação de fetos anencéfalos. O ministro frisou a “diferença abissal” entre este caso e a discussão sobre o uso de células tronco embrionárias em pesquisas. De acordo com o ministro, no caso dos embriões não havia processo vital – ao contrário do feto anencéfalo, o qual, em seu entendimento, é portador de vida e, portanto, tem de ter seus direitos tutelados.
“O anencéfalo morre, e ele só pode morrer porque está vivo”, assinalou. O ministro lembrou, ainda, que a questão dos anencéfalos tem de ser tratada com “cautela redobrada”, diante da imprecisão do conceito, das dificuldades do diagnóstico e dos dissensos em torno da matéria.
Do ponto de vista jurídico, o presidente do STF afirmou que, para que o aborto possa ser considerado crime, basta a eliminação da vida, “abstraída toda especulação quanto à sua viabilidade futura ou extrauterina”. Nesse sentido, o aborto do feto anencéfalo é “conduta vedada de forma frontal pela ordem jurídica”. O princípio da legalidade e a cláusula geral da liberdade “são limitados pela existência das leis”, e, nos casos tipificados como crime, não há, a seu ver, espaço de liberdade jurídica.
Os apelos para a liberdade e autonomia pessoais são “de todo inócuos” e “atentam contra a própria ideia de um mundo diverso e plural”. A discriminação que reduz o feto “à condição de lixo”, a seu ver, “em nada difere do racismo, do sexismo e do especismo”. Todos esses casos retratam, de acordo com o voto, “a absurda defesa e absolvição da superioridade de alguns sobre outros”.
Competência do Legislativo
Ao encerrar seu voto, o presidente do STF ressaltou ainda que não cabe ao STF atuar como legislador positivo, e que o Legislativo não incluiu o caso dos anencéfalos nas hipóteses que, no artigo 124 do Código Penal, autorizam o aborto. “Se o Congresso não o fez, parece legítimo que setores da sociedade lhe demandem atualização legislativa, mediante atos lícitos de pressão”, afirmou. “Não temos legitimidade para criar, judicialmente, esta hipótese legal. A ADPF não pode ser transformada em panaceia que franqueie ao STF a prerrogativa de resolver todas as questões cruciais da vida nacional”.
Para o ministro Peluso, a ADPF ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde representa “uma tentativa de contornar a má vontade” do Legislativo em regulamentar a questão. “É o Congresso Nacional que não quer assumir essa responsabilidade, e tem motivos para fazê-lo”, concluiu.
CF/AD
Fonte: STF
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