Documentação
obtida por pesquisador na França traz detalhes sobre atividades de Paul
Aussaresses, o carrasco de Argel, adido militar no Brasil dos anos 70
Ninguém
sabe por que o velho general resolveu abrir o jogo com a jornalista Florence
Beaugé no início do milênio. Mas a entrevista, estampada na edição do Le Monde
de 23 de novembro de 2000, caiu como uma bomba na França e na Argélia. Há
tempos os historiadores e jornalistas buscavam o testemunho de um militar sobre
os métodos atrozes utilizados pelos franceses contra os militantes da Frente de
Libertação Nacional (FLN) durante a guerra de independência da Argélia
(1955-1962). Paul Aussaresses, à época com 82 anos, reconheceu a prática de
torturas, os desaparecimentos para encobrir assassinatos, as execuções, os
esquadrões da morte. Dizia não se arrepender de nada. “A tortura pode ser
necessária contra o terrorismo”, declarou ao Le Monde. Mas até o seu
falecimento, em dezembro do ano passado, não revelou a identidade dos homens de
seus esquadrões da morte.
Não era o
depoimento de qualquer militar. Aussaresses era considerado um dos oficiais
franceses mais capacitados em contra-insurgência. “Um homem extremamente culto,
fluente em seis idiomas, capaz de recitar poesia”, nas palavras da jornalista
Beaugé. Formado em Londres durante a II Guerra Mundial na área de inteligência,
tornou-se comandante da brigada de paraquedistas “El 11e Choc” , o braço armado
dos serviços secretos franceses no exterior. Anos depois, em seu primeiro livro
de memórias (“Serviços especiais – Argélia 1955-1957, meu testemunho sobre a
tortura”) publicado em 2001, explicou claramente sua missão: “fazer o que
chamávamos ‘guerra psicológica’, em
todos os lugares que fosse necessário, como na Indochina. Preparava meus homens
para realizar operações clandestinas, colocação de bombas, ações de sabotagem
ou a eliminação de inimigos” .
A teoria
da guerra “psicológica”, “revolucionária”, conhecida na linguagem militar como
“doutrina francesa”, foi criada a partir de 1954, depois da derrota dos
franceses na Indochina, atual Vietnã. Aussaresses fazia parte do grupo dos
oficiais anti-comunistas ferozes, que vão ler o Livro Vermelho de Mao Tsé-Tung,
analisar as técnicas das guerrilhas vitoriosas, e criar métodos “não convencionais”
para combatê-las. “Perder na Indochina foi um choque. Tínhamos que aprender a
lição para não perder na Argélia”, disse o general em 2004, em uma entrevista
para o documentário da jornalista francesa Marie Monique Robin, “Esquadrões da
morte, a escola francesa em 2004”.
Três anos
depois da derrota no Vietnã, as tropas do general Jacques Massu venceram a
Batalha de Argel, em um ano – entre 1957 e 1958. Aussaresses teve um papel
capital para a vitória sangrenta dos paraquedistas franceses, divididos em zonas
operacionais (por bairros) e atuando na “inteligência” – no cerco aos alvos,
nos interrogatórios de qualquer “suspeito” de ter relações com os
revolucionários, na tortura dos detidos, na execução, nos massacres, nos 4 mil
desaparecimentos de pessoas, segundo o cálculo apresentado pelo jornalista Yves
Courrière no livro “A Guerra da Argélia”.
A Argélia
acabaria conquistando a independência em 1962, mas a experiência anti-guerrilha
dos franceses os converteu em “especialistas” em “guerra revolucionária” no
momento em que os Estados Unidos entravam no Vietnã. Sua doutrina militar foi
difundida pelos aliados da guerra fria através de revistas, livros, cursos. A
partir de 1963, Aussaresses será instrutor de cursos anti-guerrilha nas
academias militares de forças especiais nos Estados Unidos, em Fort Benning –
dos paraquedistas – e em Fort Bragg, o centro de treinamento dos boinas
verdes. Sua influência perdurou. A
jornalista francesa Marie-Monique Robin, autora do documentário “Esquadrões da
morte, a escola francesa” de 2003, que entrevistou militares americanos que
tiveram aulas com Aussaresses, conta que durante as filmagens, que coincidiram
com o início da guerra do Iraque, os generais entrevistados contaram que a
teoria da Doutrina Francesa “iria de novo ser posta em prática”. O filme “A
Batalha de Alger”, de 1966, em que Gillo Pontecorvo denuncia a matança, a
tortura e as mentiras das tropas francesas –
e que Aussaresses considerava “magnífico, muito próximo da realidade” –
foi exibido no Pentágono, diz Robin.
O general
francês escreveu em suas memórias e repetiu em entrevistas que nos Estados Unidos
ensinava os métodos da batalha de Argel. “Quer dizer as prisões, os
interrogatórios, a tortura”? pergunta Robin a Aussaresses no mesmo
documentário. “Isso”, ele responde laconicamente. Seu ex aluno americano, o
general John Johns, que depois se tornou um militante contra a tortura, diz
mais: “os ensinamentos de Aussaresses tiveram um papel fundamental para todas
as forças especiais que foram depois para o Vietnã”. E completa: “para Aussaresses era necessário
executar os torturados”.
BRASÍLIA,
11 DE SETEMBRO DE 1973
Com esse
perfil, o general parecia o homem certo para compor a missão diplomática do
governo Pompidou no Brasil dos anos de chumbo. Em seus primeiros informes,
Aussaresses conta ter reencontrado vários antigos alunos de seus cursos nos
Estados Unidos; o que “resultou em contatos amigáveis do ponto de vista pessoal
e úteis para os serviços”, escreveu.
Sentia-se
em casa na companhia do amigo general e futuro presidente João Batista
Figueiredo, prestes a assumir a chefia do SNI no governo Geisel (1974). Também era próximo do delegado Sérgio Fleury,
torturador-símbolo da ditadura brasileira – chegou a mencioná-lo no seu segundo
livro de memórias “Não falei de tudo” (“je
n’ai pas tout dit”, em francês, 2008) como chefe do esquadrão da morte. De
acordo com Aussaresses, o general e o delegado trabalham em parceria: “À essa
época [Figueiredo] dirigia, com o comissário Sérgio Fleury, os esquadrões da
morte brasileiros”, revelou também em
entrevista ao documentário de Robin, ao comentar sua amizade com o então chefe
do SNI.
À
jornalista Leneide Duarte-Plon, que o entrevistou em 2008, logo depois da
publicação do livro em que narra a experiência brasileira (Je N’Ai Past Tout Dit – Ultime Révelations au Service de la France),
Aussaresses, com seu laconismo habitual, contou um episódio revelador sobre
como o chefe da missão diplomática francesa, Michel Legendre, encarava as
atividades de seu adido militar no Brasil: “Um dia o embaixador me disse: ‘Você
tem amigos estranhos’. Eu respondi: ‘São eles que me permitem manter o senhor
bem informado’. Ele não disse mais nada” .
Da estada
de Aussaresses no Brasil pouco se sabia até pouco tempo, além do que o próprio
general revelou em seu último livro e nas entrevistas. Do lado brasileiro, os
arquivos continuam fechados como constatou o jornalista Lúcio Castro durante
uma investigação para um especial da ESPN sobre a Operação Condor – o esquema
de repressão conjunto das ditaduras do cone Sul. Castro não conseguiu obter
nenhuma documentação oficial em resposta ao pedido de informações sobre
Aussaresses que fez ao Itamaraty. Os únicos documentos enviados pelo órgão
foram cartas da embaixada francesa pedindo visto para as filhas dele e outras
coisas de menor interesse. Nem mesmo a data de chegada de Aussaresses consta desses
papéis, que podem ser encontrados no site Documentos Revelados, do pesquisador
brasileiro Aluízio Palmar.
Do lado
francês, porém, as revelações começam a surgir. O historiador carioca Rodrigo
Nabuco, radicado na França há muitos anos, obteve acesso a uma documentação
fundamental para compreender o papel dos adidos franceses na ditadura
brasileira e o comércio de armas, foco de sua tese de doutorado “Conquista das
mentes e comércio de armas: a diplomacia militar francesa no Brasil”: os
informes dos adidos militares mantidos há 30 anos em sigilo na embaixada
francesa. Baseado nessa documentação, parcialmente reproduzida em sua tese,
Nabuco conseguiu determinar, por exemplo, a data exata da chegada de
Aussaresses no Brasil depois deixar o cargo que ocupava na OTAN: 11 de setembro
de 1973, dia do golpe militar no Chile.
Coincidência?
“Difícil acreditar em coincidência. Com a liberação dos documentos [sobre o
golpe no Chile] nos últimos anos, não resta dúvida sobre o respaldo do Brasil
ao golpe do Chile, e é impossível imaginar que um coronel paraquedista
altamente especializado como ele, não haja dado ao menos sua opinião”, diz
Nabuco.
O próprio
Aussaresses, que escreveu em um de seus livros que o Brasil enviou armas,
homens e aviões para ajudar os golpistas chilenos, não disfarçou a ironia
quando questionado por Leneide Plon-Duarte se o Brasil havia participado
“ativamente” do golpe no país vizinho: “Que pergunta! Você pensaria que sou um
idiota se não estivesse a par. Claro que o Brasil participou!”, disse na já
citada entrevista na Folha de São Paulo.
OS
GOLPISTAS RECEBEM OS PARABÉNS
Nabuco
também constatou que a participação francesa na ditadura militar brasileira,
antes mesmo do golpe de 1964, foi maior do que se sabia. “A cooperação militar
francesa com o Brasil é antiga e significativa desde os anos 1920, com as
missões militares, o intercâmbio de oficiais em escolas militares, etc. Mas
esta cooperação vai assumir um papel fundamental nos anos 1960, 1970, um papel
nunca visto nem antes nem depois”, diz o historiador.
Em um
desses informes, em janeiro de 1964, Pierre Lallart, adido militar entre 1962 e
1964, comenta que o general Franco Pontes comandante da Força Pública de São
Paulo pretendia “criar um estado maior operacional de prevenção de distúrbios sociais
e políticos e um serviço de defesa contra a subversão” . O mesmo general havia
lhe pedido para “organizar cursos especializados na França sobre luta contra a
subversão para os seus homens”.
Em outro
informe citado por Nabuco, o mesmo adido vai relatar com entusiasmo, o golpe de
1º de abril de 1964: “uma operação sumamente bem montada, executada em dois
dias em um país 17 vezes maior do que a França, quase sem dificuldade nem
derramamento de sangue, tecnicamente,
como operação, um modelo do gênero”.
Elogios
voltados para a edificante conclusão: “Muitos dos envolvidos no golpe são
especialistas em doutrina francesa, ou antigos alunos das Escola de Superior de
Guerra francesa”, como o já citado general João Figueiredo, que seria o último
presidente da ditadura, e o então coronel Walter de Menezes Paes – comandante
do IV Exército e depois chefe da ESG –
Escola Superior de Guerra -, formado na 69a promoção da
Escola Superior de Guerra de Paris e fluente em francês como destaca outro
documento, o relatório mensal de maio 1973, esse obtido pela Pública. O general Sílvio Frota também é citado por
Lallart, bem antes de assumir o Ministério do Exército no governo Geisel, e se
destacar como expoente da linha-dura do Exército.
A ditadura
brasileira foi vista pelos franceses como uma oportunidade de recuperar a
influência das missões militares francesas no país, perdida para os americanos.
À medida que ela recrudesce, consolida-se o perfil dos adidos militares
nomeados pela França: são “veteranos das guerra da Indochina e da Argélia,
todos especialistas em guerra revolucionária”, que vão difundir essa doutrina a
militares brasileiros, muitas vezes já formados pelas escolas francesas, explica Nabuco.
No livro
“A Ditadura Escancarada”, o jornalista Elio Gaspari explica o outro lado da
adesão dos militares brasileiras à doutrina de Argel. Quando “a hierarquia
militar brasileira associou as Forças Armadas à tortura, dispunha de dois casos
clássicos de ação antiinsurrecional”, diz Gaspari. O primeiro era o Vietnã, mas
“não convinha”, observa, citando o julgamento do tenente William Calley,
condenado pela Justiça americana pela execução de 175 civis no vilarejo My Lai.
“O segundo exemplo, a ação francesa na Argélia, encontrava-se nas estantes das
bibliotecas militares”, escreve o jornalista brasileiro.
O
princípio central dessa doutrina, explica a jornalista francesa – além do
documentário citado, Marie-Monique Robin publicou um livro homônimo com o
resultado da enorme pesquisas que realizou – é o do “inimigo interno”: “Se na
‘guerra revolucionária’ qualquer pessoa é suspeita, o inimigo está em toda
parte e se apoia na população civil, esta é o suspeito número 1. Daí o primado
da informação militar. Quem diz interrogatório, diz tortura, a arma principal
da ‘guerra anti-subversiva’. O que fazer dos torturados? Depois de torturados
não podem ser jogados nas ruas, estão em frangalhos. É preciso fazê-los
desaparecer. É o papel principal do general Aussaresses”.
O homem
que o governo francês nomeou adido militar e foi recebido de braços abertos no
Brasil de Médici havia comandado um massacre na Argélia que resultou na morte
de 7.500 pessoas em dois dias – 2 mil delas executadas depois de presas e
interrogadas em um estádio transformado em campo de concentração. Qualquer
semelhança com o Estádio Nacional chileno que teve o mesmo destino em 1973 não
é mera coincidência, apontam os fatos.
EXILADOS
NA FRANÇA E NA ARGÉLIA
Lallart
deixou o Brasil tendo cumprindo sua principal missão oficial: havia obtido
sucesso nas negociações preliminares da venda de aviões Mirage ao governo
militar. A partir daí, a cooperação entre os serviços secretos franceses e
brasileiros só vai se intensificar. De acordo com documentos dos Arquivos do Quai d’Orsay, ministério dos Assuntos
Exteriores francês, analisados por Nabuco, oficiais ligados ao ex primeiro
ministro Georges Pompidou, que substituiu De Gaulle na presidência em 1969, já
se comunicavam com o SNI brasileiro desde 1968.
O objetivo
principal era monitorar os exilados em Paris e na Argélia, destino tomado em
1965 pelo governador de Pernambuco cassado, Miguel Arraes, ao ter seu pedido de
asilo negado pela França. Em novembro de 1969, com o surgimento da Frente
Brasileira de Informações (FBI) em Paris, formada por exilados que denunciavam
os crimes da ditadura brasileira, o intercâmbio dos serviços se torna
imprescindível. No livro “O exílio brasileiro na França”, a historiadora
francesa Maud Chirio, estima em 10 mil o número de exilados brasileiros na
França durante a ditadura e observa: “a DST (divisão de serviços secretos no
interior) ocupou um papel central no monitoramento dos brasileiros no exílio”.
Foi nesse
momento que o general Aurelio de Lyra Tavares assumiu a embaixada na França,
como parte do arranjo feito entre os militares para encerrar o governo da Junta
Militar, da qual o general, ministro do Exército de Costa e Silva, era um dos
três regentes. A Junta governou o Brasil entre agosto de 1969 – quando Costa e
Silva adoeceu – e a escolha do novo presidente, o general Garrastazu Médici, em
outubro de 1969. Lyra Tavares chegou animado em Paris. Em uma carta ao governo
francês, reproduzida na tese, o general embaixador pede que a DST impeça
qualquer atividade de Arraes na França e informa os agentes franceses de que o
político brasileiro está sempre viajando com seu passaporte argelino.
Deve ter
sido atendido, a julgar pela acolhida das missões diplomáticas francesas no
Brasil na década seguinte. Parte da influência dos adidos militares franceses
nos anos 1970, porém, também deve ser atribuída aos conselhos do coronel
Wartel, o sucessor de Lallart, que permaneceu como adido militar até 1969. De
acordo com a documentação analisada pelo professor Rodrigo Nabuco, Wartel
sugeriu nomear para o cargo oficiais que tivessem sido instrutores em escolas
superiores militares, principalmente nos Estados Unidos, Brasil ou Argentina.
Seus
sucessores, Yves Boulnois, Jean-Louis Guillot e o próprio Aussaresses, adidos
militares franceses no Brasil entre 1969 e 1975, eram especialistas renomados
em guerra anti-subversiva e já haviam ministrado cursos para militares sul
americanos na Argentina (Boulnois), na França (Guillot) e nos Estados Unidos
(Aussaresses). No Brasil, participaram
de reuniões do Estado Maior brasileiro, acompanharam e informaram os aspectos
militares da luta anti-guerrilha e, no mínimo, opinaram sobre a estrutura e
operações da repressão junto a autoridades brasileiras, como concluiu Rodrigo
Nabuco depois de analisar mais de 2 mil documentos nos arquivos franceses do
Ministério de Defesa e de Relações Exteriores.
“A
documentação acessível nos arquivos franceses não permite levantar hipóteses
sobre o papel de conselheiro exercido pelos adidos militares durante os anos de
chumbo. Por enquanto, não podemos deixar de sublinhar a semelhança chocante
entre a contra-guerrilha em São Paulo e Alger. Por outro lado, os documentos
comprovam o aumento significativo da cooperação militar entre os anos
1969-1975. Além disso, à medida que o modelo da batalha de Alger se estende
pelo país, o Estado Maior do Exército Brasileiro apela aos conselheiros
franceses para formar os novos quadros do dispositivo de defesa interior, o
Destacamento de Operações e Informações (DOI)”, escreveu Nabuco em sua tese.
OPERAÇÃO
BANDEIRANTES: A DOUTRINA FRANCESA NA PRÁTICA
Em junho
de 1970, já com a Operação Bandeirantes (Oban) em andamento em São Paulo,
inaugurando a criação dos DOI-Codi em todo o país, Yves Boulnois diz em seu
informe: “a preparação de todas as unidades do exército na luta contra a
subversão está bem avançada e dando bons resultados”. Boulnois se aproxima
ainda mais dos militares do Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) do Rio
de Janeiro depois de uma suposta ameaça de sequestro, por parte da ALN, ao
embaixador francês, como escreve o adido no relatório mensal de agosto de 1970,
conforme documento citado na tese de
dutorado de Nabuco (Rapport mensuel, Yves Boulnois, août 1970, SHD,
Service Historique de Défense). A essa
altura, a guerrilha urbana já havia sequestrado os embaixadores dos Estados
Unidos e da Alemanha, trocados por prisioneiros; em dezembro seria a vez do
embaixador suíço.
Em 1972, é
a vez do novo adido, Jean-Louis Guillot, também em informe citado na tese,
observar que depois da criação dos DOI-Codi, “a luta contra o terrorismo urbano
foi muito dura e muito eficaz”. Guillot, que visitou o Brasil duas vezes antes
de assumir o posto, entre 1968 e 1971, como instrutor do Estado Maior de IHEDN
(Instituto de Altos Estudos sobre Defesa Nacional), conhecia oficiais
brasileiros diplomados na instituição francesa e circulava com desenvoltura
entre os militares no poder. Depois
definiria seu papel de adido em seu informe final, obtido pela Pública, como de
“um conselheiro de defesa no sentido pleno da palavra”.
Como em
Argel, a coleta de informações e as ações da Oban, que se repetem nos DOI-Codi,
“se dão de maneira clandestina”, observa Nabuco, referindo-se às incursões
noturnas, desaparecimentos, operações de vigilância, torturas em centros
clandestinos. Além disso, destaca o historiador, “a Operação Bandeirantes é a
primeira experiência da estrutura de coleta de informações e de ações de
comando, concebida segundo a doutrina francesa. O comando se reúne em uma
estrutura única, o II Exército, composta de policiais e oficiais superiores,
capacitados em Paris e Fort Bragg”.
Há outras
semelhanças aterradoras. Em seu primeiro livro (“Serviços especiais-Argélia
1955-1957”) Aussaresses confessa que dois heróis nacionais da Argélia, Mohamed
Larbi Ben M’hidi e Ali Boumendjel, foram torturados e executados, embora o
comando francês tenha informado suas mortes como suicídios: o primeiro por
enforcamento, de maneira similar à utilizada pelo DOI-Codi de São Paulo, em
1975, para encobrir o assassinato do jornalista Vladimir Herzog; e o segundo
atirado pela janela. Segundo a Comissão Nacional da Verdade, no Brasil houve
pelo menos 44 casos de “suicídios” para encobrir execuções e mortes sob
torturas durante a ditadura militar.
No
documentário de Robin, vários militares argentinos e chilenos contaram que os
franceses lhes ensinaram os mesmos métodos. Entre os entrevistados está Manuel
Contreras, chefe da abominável DINA, a polícia militar de Pinochet. Ressalvando
não ter conhecido Aussaresses pessoalmente,
Contreras diz que “ele treinou muitos chilenos no Brasil”. “Eu mandava
gente a cada dois meses para a escola de Manaus”, afirma.
“Essa
escola vai se converter no epicentro do ensino da luta contra a subversão para
as forças especiais na América Latina”, diz Rodrigo Nabuco. “Aussaresses disse
públicamente que deu seus cursos ali mas é muito provável que Boulnois e
Guillot tenham feito o mesmo. Boulnois escreveu vários manuais sobre a guerra revolucionária e antes de
chegar ao Brasil, quando era adido em Buenos Aires, foi professor na Escola de
Guerra da Argentina. Guillot ensinava na IHEDN (Instituto de Altos Estudos de
Defesa Nacional), uma das maiores escolas de guerra francesa”, detalha Nabuco.
OPERAÇÃO
CONDOR
Aussaresses
superou os antecessores em influência e domínio da informação. Em Brasília,
redigiu mais de 200 páginas de informes durante seus dois anos de serviço – ele
deixou o país em novembro de 1975 – onde, segundo Nabuco, se revela um fino
analista da situação, até por ser muito bem informado.
Em nível
internacional, Aussaresses, que foi eleito presidente da Associação dos Adidos
Militares no Brasil, confirma que ele e seus pares desempenhavam papel central
no intercâmbio de informações do Condor – a operação entre as ditaduras do Cone
Sul para vigiar, prender e assassinar exilados -, embora esse nome nunca fosse
mencionado. “O SNI mantém um relacionamento estreito e cordial com a Argentina,
o Uruguai e o Chile. Do mesmo modo, não
descuida de seus intercâmbios com a França, onde os exilados são os mais
numerosos. E da Suiça onde os bancos guardam dinheiro da subversão”, diz em um
informe de 1974.
No Brasil
do final do governo Médici, quando a maioria dos guerrilheiros já estavam
presos, mortos ou exilados, Aussaresses nota que há menos operações
convencionais do Exército, mas “algumas ações são verdadeiras operações
conduzidas por polícias ou forças armadas”. Mesmo se considerando um homem bem
informado, acrescenta: “O volume de operações é difícil determinar porque estão
rodeadas de sigilo, severamente guardado”.
Em outro
informe, com uma pitada de ironia, escreve: “no balanço dos excessos e dos
desaparecimentos, o II Exército (o comando do DOI-Codi) não tem a consciência
tranquila”. Mas no relatório mensal de dezembro de 1973, elogia Orlando Geisel,
ministro do Exército e coordenador do aparelho repressivo no governo Médici,
“homem de tradição militar francesa que inspira a Escola de Guerra brasileira”.
No mesmo
relatório reproduz uma conversa com Orlando Geisel e outros generais, fazendo
menção a um assunto que aparece repetidamente nos informes dos adidos
diplomáticos franceses desde Lallart: a perda de influência dos militares
franceses para os americanos. “Orlando Geisel”, diz Aussaresses, “declarou-se
em dívida com a escola francesa pela formação política que prepara os
estagiários para exercer um papel significativo em seus países”. Mas, destacou,
que o general “rende sua homenagem aos americanos pelo papel essencial na
“recente crise política” [o golpe do Chile] “para manter a paz”.
Depois,
Aussaresses anota a sugestão do general para recuperar a influência perdida:
“Ele acha desejável a cooperação entre as Forças Armadas francesas e
brasileiras. E diz que a melhor forma de colaboração é através da troca de
estagiários de escolas militares”, pedindo, inclusive, que um oficial francês
seja enviado à Escola de Estado Maior brasileira em 1974.
A respeito
dessa cooperação fala em outro informe
sobre o intercâmbio com a PM brasileira em que “5 a 6 oficiais por ano
vão seguir cursos na França”, acrescentando o seguinte comentário: “esses
cursos são muito procurados pelos brasileiros, que descobrem, às vezes
surpresos, que se pode obter informações sem usar tortura. Pode ser que um dia
a polícia francesa ajude a PM brasileira a ser menos bruta”.
Uma
observação que soa absurdamente irônica diante das próprias memórias de
Aussaresses, não apenas pelos crimes confessos em Argel como pelos cursos que
deu nos Estados Unidos e no Brasil – ele declarou ter sido professor na EsNI
(Escola Nacional de Informações em Brasília), e no CIGS, a escola de guerra da
selva de Manaus. Sobre essa última, escreve em um de seus informes sem
mencionar seu papel como instrutor, comemorando: “a direção da escola segue
dando o currículo da “guerra revolucionária”. E acrescenta: “os coronéis
instrutores da escola foram alunos da ESG de Paris”.
VENDEDOR
DE ARMAS
A leitura
do conjunto dos documentos dos adidos franceses traz ainda mais uma impressão:
a disputa diplomática com os Estados Unidos era ainda mais acirrada no aspecto
comercial, o que era sempre destacado nos informes, assim como estratégias para
ganhar terreno. Nomes de militares encarregados das compras das Forças Armadas,
ou com influência para decidir, são seguidamente citados e não raro Aussaresses
menciona que os militares brasileiros não dão mostras de se desinteressar nem
do poder, nem do combate feroz aos oponentes internos, uma importante condição
do “mercado”.
Nesse
sentido, os cursos e conselhos dos criadores da doutrina francesa, às vezes
soam como moeda de troca para as transações comerciais, como deixa transparecer
o informe final de Aussaresses: “Graças em parte aos serviços militares e
comerciais da embaixada, a França se tornou o segundo provedor de armas
terrestres ao Brasil, depois dos Estados Unidos”.
Depois,
observa, em relação às vantagens competitivas do rival: “Todos os comandantes
das grandes unidades militares fizeram algum curso nos Estados Unidos, pelo
menos na escola do Canal de Panamá, onde estão de maneira permanente os
instrutores brasileiros”.
De sua
parte, Aussaresses tenta compensar a desvantagem indicando generais influentes
nas decisões comerciais para receber condecorações como a Legião de Honra
francesa, caso por exemplo do general Moacyr Barcellos Potiguara, comandante do
IV Exército – em 1976 ele seria chefe do Estado Maior das Forças Armadas. Entre
as qualidades do general Barcellos, Aussaresses destaca sua atuação à frente da
divisão Material Bélico, quando trabalhou pela escolha do míssil francês Roland
que concorria com similares (britânico e americano). “Se a França conseguir
participar da reestruturação das indústrias brasileiras de armas e munições
será grandemente pela ajuda dele”, detalha em um dos documentos obtidos por
Rodrigo Nabuco.
Seja como
for, assim como aconteceu com as relações feitas em seus cursos de Batalha de
Argel nos Estados Unidos, Aussaresses aproveitará a rede construída na América
do Sul para se tornar comerciante de armas. Depois de deixar o cargo de adido
militar no Brasil, passa a trabalhar como representante da companhia francesa Thomson-Brant
na América Latina, reencontrando antigos oficiais amigos no Brasil, no Chile,
na Argentina, cada vez em postos mais elevados na hierarquia militar. Como
sempre, interessados no que o velho general tinha a oferecer.
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