LEGISLATIVO
E EXECUTIVO
Ocupantes
do Planalto e do Parlamento têm habitualmente respondido aos limites do atual arranjo institucional com
pragmatismo político que, não raro, se deteriora em barganhas inaceitáveis
por José
Garcez Ghirard
"A
presidente quis jogar a crise no colo do Congresso.” A recente irritação do
presidente do Senado, Renan Calheiros, contra Dilma Rousseff sintetiza as
tensões que vêm marcando a vida política brasileira pós-manifestações de junho.
Motivado pela reação da chefe do
Executivo à pressão das ruas, o episódio pode ajudar a compreender a
preocupante insatisfação dos brasileiros com a classe política. Pode também jogar luz sobre a lógica que informa
os recentes conflitos entre poderes. Na
raiz de ambos os fenômenos parece estar uma divergência de fundo sobre o
próprio sentido da
democracia no Brasil hoje.
O amuo de
Calheiros, longe de ser pontual, revela um desconforto mais amplo nas relações
entre Legislativo e Executivo. O
Congresso dá mostras de se ressentir daquilo que vê como perda relativa de
poder político e de prestígio social decorrente dos avanços do Planalto sobre
sua prerrogativa de legislar. Cada vez mais, o Parlamento tem tido de se ocupar
antes em reagir a propostas normativas do Executivo do que em elaborar projetos
próprios.
Como já
apontado diversas vezes, essa migração das principais iniciativas legislativas
para o Executivo tem se dado sobretudo pela utilização recorrente de medidas provisórias (MPs) pela Presidência da
República. Só no governo Dilma foram
editadas, até agora, mais de uma centena delas. Nesse ponto, a presidente
repete as gestões anteriores: também FHC e Lula se valeram prodigamente das
MPs, enviando, em média, cerca de três para avaliação do Congresso a cada mês.
Para além dos números, a relevância substantiva dos temas das MPs (orçamento,
infraestrutura, educação, saúde...) reforça a percepção do domínio do Executivo
sobre a pauta política do país, bem como da retração do espaço do Legislativo.
O fenômeno
do esgarçamento da relevância legislativa do Parlamento não é exclusividade
brasileira, é certo. Democracias presidencialistas como a dos Estados Unidos, por exemplo, têm exibido o
mesmo padrão de redefinição institucional. Também lá, o Legislativo tem tipicamente negociado com o Executivo as
condições para a aprovação dos projetos que dele recebe, mais do que avançado
agendas próprias.
No Brasil,
entretanto, essa negociação se dá em um contexto institucional muito
específico, celebremente definido por Sérgio Abranches como “presidencialismo de coalizão”. O chefe do Executivo, cujo partido em regra
não consegue maioria parlamentar suficiente para pôr em prática sua plataforma
política, precisa se unir, no Congresso, a outras agremiações partidárias –
frequentemente de perfil ideológico bastante diverso. Esse desenho institucional, que força a
negociação constante entre os poderes e dá ao Legislativo a palavra final para
a aprovação de projetos, nutre muitas vezes percepções do Congresso como
indefensável obstáculo à governabilidade. A proposta de minirreforma constitucional avançada pelo Executivo
incorporava esse diagnóstico negativo.
Ocupantes
do Planalto e do Parlamento têm habitualmente respondido aos limites desse
arranjo institucional com pragmatismo político que, não raro, se deteriora em
barganhas inaceitáveis. As tentações que emergem da busca de apoio político
sólido partindo de uma base partidária movediça foram notoriamente ilustradas
pelos episódios que culminaram na Ação Penal (AP) 470. O julgamento histórico
reuniu na mesma narrativa Judiciário, Executivo e Legislativo, oferecendo à
opinião pública uma oportunidade única de observar os meandros da relação entre
os poderes.
Para além
do maciço repúdio popular à corrupção, as reações fortemente antagônicas às
condenações resultantes – da celebração efusiva à desqualificação do Judiciário
como ideologicamente comprometido – evidenciam a coexistência, no Brasil, de
entendimentos distintos sobre o sentido de vida democrática e de seu valor
intrínseco.
Como
observa Alain Touraine, o discurso sobre
a democracia pode privilegiar aspectos diferentes do conceito. Logo após
períodos ditatoriais, a ênfase tende a cair sobre a democracia como regime que
garante a liberdade e a diferença. Em regimes democráticos mais consolidados,
entretanto, é frequente criticar-se a liberdade jurídica como insuficiente para
eliminar a desigualdade econômica e a exclusão social. Nesses casos, a ênfase
costuma recair sobre a democracia como sistema que deve promover a igualdade
entre os cidadãos.
É possível
arguir que as duas leituras, com variações pontuais, venham balizando o debate
político brasileiro ao longo das últimas décadas. A Constituição de
1988 abriga generosamente ambas as dimensões de valores.
Historicamente, entretanto, elas se alternaram como elemento prioritário para a
mobilização popular. Superadas as restrições à liberdade e à diferença
características do período militar, ganhou compreensível primazia em nosso
discurso político a perspectiva que acentua o objetivo democrático da
igualdade. O veículo privilegiado para
promovê-la são, como se sabe, as políticas públicas, cuja consecução demanda
agilidade decisória.
Decorre
daí o perigo da impaciência de alguns
setores com o funcionamento daquelas instâncias cuja lógica é dialogal, como
são o Parlamento e o Judiciário. A América
Latina tem colecionado exemplos dessa exasperação do Executivo com os outros
poderes, apresentados como contrários a interesses populares que seriam
defendidos precipuamente pelas políticas da administração. Essa diferença em tempos e dinâmicas, no
entanto, é essencial para a democracia. Legitimamente praticada, ela protege a
pluralidade de ideias, aperfeiçoa a formulação de políticas e traça, no limite,
a linha que separa modos democráticos e autoritários de promover a igualdade.
O desafio das democracias é conciliar
esses valores, garantindo eficiência de gestão e respeito à divergência.
O maniqueísmo tacanho que tem prevalecido em
nosso debate político arrisca fazer esquecer que tais valores são
complementares, não excludentes, e devem ser conciliados. Produzir tal conciliação, sempre difícil e
provisória, é tarefa primordial das instituições. Quando são incapazes de
fazê-lo, a democracia adoece.
As manifestações do meio do ano são índice
claro de que o povo brasileiro considera insatisfatória a forma como seus
representantes enfrentam essa tarefa. Elas condenam a aparente desconexão que eles têm com as demandas complexas
da heterogênea sociedade brasileira. O resultado
perigoso é o desgaste generalizado das instituições de governo e da crença no
valor da política, fundamentos da democracia.
Os poderes da República têm por função
promover e defender exatamente essas bases da vivência democrática. Seus conflitos recentes preocupam não pelas
tensões que revelam, mas porque parecem muitas vezes motivados pela defesa de
agendas e interesses cuja articulação com o bem coletivo nem sempre é evidente.
Preocupam porque parecem contribuir
muito pouco para a tarefa
urgente de revitalizar a democracia brasileira.
José
Garcez Ghirard
Professor
de Direito da FGV-SP.
02 de Dezembro
de 2013
Palavras
chave: Brasil, Legislativo, Executivo, democracia, Planalto, Parlamento,
governo, Estado, Congresso, Constituição, eleição, voto, FHC, Lula, história,
Fonte:
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1543
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