PARTIDOS
POLÍTICOS
Podemos
definir democracia racionada como uma
forma semilegal em que a violência
contra os pobres e os opositores se combina com ações autoritárias dentro da
legalidade, e os
escassos direitos são distribuídos a conta-gotas para os setores mais moderados
da oposição
por
Lincolm Secco
Depois das
jornadas de junho de 2013, a crise dos partidos voltou ao debate público. A
presidente Dilma Rousseff despencou nas pesquisas e, com ela, todos os seus
concorrentes tradicionais. Mais tarde, ela voltou a subir. Os protestos
continuaram, mas diluídos. Todavia, Dilma
não recuperou a totalidade das intenções de voto que tinha antes de junho!
Parece que algo ali se perdeu.
A hipótese
que quero propor ao leitor é que as
jornadas de junho podem indicar o esgotamento do ciclo político da transição
democrática, iniciado em fins dos anos 1970. Depois de junho, é possível
que estejamos perante uma zona cinzenta,
politicamente indecisa. Ou consolidamos um regime
democrático, ou recuamos para formas semiditatoriais, como no período de 1946 a
1964.
Naquela época, havia eleições diretas (sem os
analfabetos), presidentes assumiam (mas sofriam sucessivos golpes), tínhamos um
sistema partidário (sem o PCB) e tribunais independentes (que permitiam a
repressão política). O governo Dutra matou quase uma centena de comunistas.
Carlos Marighella denominava esse tipo de regime
de “democracia racionada”. Uma ideia que merecia se tornar um conceito explicativo dos
regimes brasileiros que não são exatamente uma ditadura
aberta, mas também não se tornam democráticos. Assim, podemos
definir a democracia racionada como uma
forma semilegal em que a violência contra os pobres e os opositores se combina
com ações autoritárias dentro da legalidade, e os escassos direitos são
distribuídos a conta-gotas para os setores mais moderados da oposição.
Dessa
maneira, as classes dominantes usam aparatos paraestatais ou mesmo
estatais para a repressão política, a tortura e a eliminação física de
adversários e pobres em geral, sem nunca assumir isso publicamente.
Por outro lado, a Constituição é negada pela
legislação infraconstitucional e por interpretações sempre desfavoráveis aos
movimentos inconformistas.
A história
republicana do Brasil se resume, portanto, a
ciclos em que a democracia racionada é substituída por ditaduras abertas que
rasgam as garantias constitucionais quando o movimento popular aparece como
ameaça à ordem.
Ciclo da
transição
As greves
do ABC paulista, a anistia e o surgimento de novos movimentos sociais mudaram a
política nacional, e o país viveu um novo ciclo político a partir de 1978-1980.
Entre 1984 e 1989 tivemos uma verdadeira revolução
democrática de massas, que foi canalizada infelizmente para uma Constituinte
congressual e não exclusiva e para eleições manipuladas pela Rede Globo.
Os políticos profissionais bloquearam a mudança e
eternizaram o regime semiditatorial (ou semidemocrático, se alguém preferir). A
transição prolongada (como a chamou Florestan Fernandes) frustrou o maior
movimento de massas da história do Brasil.
O líder daquele movimento foi, malgrado a
indecisão de seus dirigentes, o PMDB. Ele colheu o fruto da árvore do conhecimento, mas perdeu o da árvore da
vida. Conseguiu a proeza de
sustentar todos os presidentes desde Sarney, mas se tornou um vazio
programático e perdeu a liderança que desfrutara. Assim, jamais conquistou a
Presidência da República. Mas nem sempre foi assim.
O antigo MDB, que não era um partido de esquerda, acabou por receber em
suas fileiras militantes esquerdistas. Nos anos 1980, uma equipe de
intelectuais pemedebistas como Luiz Carlos Bresser Pereira, Fernando Henrique
Cardoso, Fernando Morais, Maria da Conceição Tavares e Dilson Funaro formulou
as principais propostas debatidas no país. Herdeiro do bipartidarismo, o PMDB
manteve apoio a setores médios contrários à ditadura militar e a amplos
segmentos populares. Em São Paulo, o partido tinha cerca de 40 mil filiados em
1980 (quase 40% na periferia). Além disso,
abrigava organizações de esquerda autênticas, como o PCB, o PCdoB e o MR-8.
Durante
muitos anos o partido manteve a preferência partidária de parte significativa
dos eleitores. Se considerarmos que em média apenas metade da população relata
preferir algum partido, o PMDB sustentou
taxas invejáveis superiores a 20% do eleitorado.
A derrota
da Revolução Democrática (1984-1989) deu lugar à tentativa de superar a
democracia racionada por meio de dois partidos. O PSDB, fundado em 1988, às
vésperas da promulgação da Constituição, apareceu como uma dissidência à
esquerda do PMDB. Chegou ao poder em
1995, aderiu à terceira via de Blair e Schröder e mudou a estrutura patrimonial do capital ao promover as grandes
privatizações.1 Mas seu
fracasso social foi estrondoso e, felizmente, a população mais pobre passou a
rejeitá-lo nas urnas.
O PT parou as grandes privatizações, aumentou o
ritmo da extensão dos programas sociais e apoiou a centralização e concentração
de capitais em algumas empresas privadas. Ao manter boa parte da política
econômica do antecessor, Lula acalmou o
setor financista e rentista e isolou seu único adversário de peso social: a
classe média tradicional. Foi o colapso para o PSDB.
O ciclo lulista, contudo, não destruiu a democracia racionada, apesar dos
inegáveis avanços sociais. A tutela militar, a violência
das PMs e até o julgamento político dos principais dirigentes do PT são
exemplos disso. A ideologia lulista que orienta a maioria do PT traz a crença
de que o povo brasileiro é conservador, desorganizado e só aceita mudanças
lentas que não abalem a ordem. Ainda que fosse verdade, o PT
teria de admitir que suas próprias políticas sociais mudaram a vida de milhões
de brasileiros e, portanto, a situação não seria mais a mesma.
O novo
ciclo
A grande questão que junho nos propôs é a
seguinte: a atual democracia racionada se esgotou? A resposta será crucial
para o futuro democrático do Brasil. Uma regressão, tal qual em outras etapas
de nossa história, não seria exatamente como antes. As condições internacionais
são outras (os Estados Unidos não apoiam por enquanto ditaduras
abertas como em 1964). A tecnologia informática abalou as
organizações tradicionais. Se por um lado as novas tecnologias permitem a
espionagem e o monitoramento sofisticados por parte do Estado, por outro
desgastam a imagem da repressão em tempo real. Contudo, elas não determinam por
si mesmas novas formas de luta. A tática
black bloc, que tanta discussão causou no Brasil em 2013, é um exemplo disso.
Ela surgiu na Alemanha Ocidental em 1980, quando não havia internet. A questão
é eminentemente política. O lulismo não parece ter
esgotado sua vitalidade eleitoral e, se não houver outra insurreição em 2014,
talvez seja vitorioso, mas, como o PMDB antes, ele não empolga mais a juventude
militante.
O PT não
tem mais o que apresentar de novo porque isso significaria dar o passo
seguinte: desagradar ao capital financeiro e substituir a democracia racionada
pelo regime da abundância de direitos. Também não pode continuar
indefinidamente com sua política de conciliação de classes. A
democracia racionada dos partidos não consegue mais comportar em seu estreito
círculo as contradições sociais que ela mesma engendrou. Uma vez mais estamos diante do dilema: mais democracia ou mais um passo
atrás.
Lincolm
Secco
Professor
de História Contemporanêa na Universidade de São Paulo e autor do livro
História do PT (Ateliê Editorial, Cotia-SP, 2011)
1. Sobre
os tucanos, remeto o leitor para o artigo "A crise do PSDB", Le Monde
Diplomatique Brasil, Abril de 2012
http://diplomatique.org.br/artigo.php?id=1144
02 de
Dezembro de 2013
Palavras
chave: Brasil, democracia, partidos, violência, legalidade, Congresso, TSE,
eleição, PT, PSDB, Junho de 2013, protestos, manifestação, crise,
representatividade, Dilma Houssef, Carlos Mariguella, ditadura, Golpe de
Estado, Constituição, PMDB, Lulismo, Lula, direitos.
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