A DEMOCRACIA QUE TEMOS
Em termos muito singelos, o despotismo indireto é a representação política tornada incapaz de se exercer no interesse dos representados, mas voltada exclusivamente ao dos próprios representantes
Em termos muito singelos, o despotismo indireto é a representação política tornada incapaz de se exercer no interesse dos representados, mas voltada exclusivamente ao dos próprios representantes
por Cicero
Araujo
"Despotismo indireto”: valemo-nos de uma
expressão batizada pelo Marquês de
Condorcet para discutir as
possibilidades de degradação do governo representativo. Ela foi resgatada
pela cientista política italiana Nadia Urbinati, que, em conhecido livro sobre
“os princípios e a genealogia” das democracias contemporâneas, foi buscar seus
fundamentos normativos nos pensadores revolucionários do último quartel do
século XVIII, entre os quais Condorcet. Nós mesmos queríamos usá-la neste
espaço para falar das dificuldades enfrentadas pela representação democrática
no Brasil contemporâneo.
Nosso país
acaba de completar 25 anos da promulgação de sua Constituição Federal. Sem
dúvida, algo a comemorar, uma vez que nossa experiência pregressa de uma
Constituição democrática havia durado apenas dezoito anos (1946-1964), ainda
assim entremeada por crises políticas sucessivas e de extrema gravidade, que
culminaram em um golpe militar e em um regime autoritário que prevaleceu por
cerca de 20 anos. O que temos desde
1988, ao contrário, é uma Constituição que não só perdura, mas esteia um
conjunto de práticas políticas que se decantaram nos limites de uma razoável
estabilidade institucional. Ademais, práticas que, enquanto se decantavam,
resistiam a crises políticas mais ou menos importantes, como a que levou ao
impeachment do presidente Fernando Collor em 1992, e a crises econômicas
agudas, como a da hiperinflação, debelada a partir de 1994.
Contudo, fatos recentes e outros nem tanto – mas que
não serão esmiuçados aqui – parecem pressagiar nuvens cinzentas sobre essa
história de sucesso. Percebemo-los
nas observações crescentemente céticas, ou mesmo pessimistas, de boa parte dos
comentaristas políticos, que vão além das falas agourentas desse ou daquele
cronista, que desde sempre existiram; e
nos sentimentos difusos da opinião pública, que das expressões de mau humor cada
vez mais ácidas dos últimos anos acabaram desaguando em protesto aberto,
eventualmente maciço e não raro violento, como o que se verifica desde
junho em todo o país. Mas também,
por outro lado, na própria conduta
contraditória dos detentores de cargos públicos e das altas burocracias do
Estado, que, no mesmo compasso em que vêm manifestando o desejo de “ouvir as
ruas”, permanecem incapazes de lhes dar uma resposta firme e concreta.
Há quem veja nesses eventos, ainda um tanto
confusos, a expressão extrainstitucional de uma disputa pela condução do poder
do Estado que alinharia, num campo, as forças e os interesses sociais que
apoiam o atual governo e, em outro, os diversos aglomerados da oposição. Seu foco continuaria situado nos arranjos
institucionais – particularmente nos
partidos e na competição eleitoral –, que,
porém, acabaram se ramificando pelos corpos intermediários da sociedade civil:
a mídia, as representações de classe e os movimentos sociais, com suas
capacidades relativas de engajar a massa dos cidadãos, seja para incrementar,
seja para solapar a legitimidade das iniciativas governamentais. Essa
percepção corresponde em parte aos fatos, na
medida em que observamos as lideranças
político-partidárias e a imprensa interessada disputarem os rugidos de
insatisfação da opinião pública segundo a linha que divide binariamente o
conflito político em “situação” e “oposição”. Mas é, ao mesmo tempo, uma descrição muito simplista do conjunto,
deixando escapar o ponto a nosso ver mais relevante: o sentimento, mais e mais
fortemente disseminado, de alienação para com os próprios conflitos encenados
na arena institucional. É como se a seta que buscava orientar os embates ao
longo do plano que vai da “situação” à “oposição”, ou vice-versa, não
conseguisse atravessar e ecoar esse sentimento. Por isso mesmo, levanta uma
questão que nos leva menos ao jogo do poder em si e mais à capacidade da
representação política de dar inteligibilidade a esse jogo e, portanto, de
fazer as grandes extensões da cidadania tornarem-se parte dele, dando sentido público e social aos embates
representados.
E aqui reencontramos o problema do despotismo indireto.
Condorcet havia pensado num tipo de
governo que pudesse ser a expressão da soberania popular. Essa forma seria
o “governo representativo”, ao qual ele opunha não só as monarquias
hereditárias de seu tempo, mas também as democracias da Antiguidade, que teriam
sido formas de “governo direto” do povo. Como os antigos não conheciam o instituto da representação, Condorcet
esperava que o governo representativo, ou seja, uma forma de governo indireto,
pudesse tornar-se a versão moderna e superior da democracia. Mas tal como
os modelos antigos de governo, inclusive as democracias, inscreviam em suas
práticas a possibilidade de uma degradação, o pensador francês vislumbrou que
mesmo essa expressão avançada da soberania popular, o governo representativo, também poderia passar a uma forma degradada:
precisamente o despotismo indireto.
Em termos
muito singelos, o despotismo indireto é a representação
política tornada incapaz de se exercer no interesse dos representados, mas
voltada exclusivamente ao dos próprios representantes. No fundo, é o fracasso da ideia mesma de representação, que só teria como
funcionar em nível adequado se gerasse, nas palavras certeiras de Nadia
Urbinati, um “processo contínuo de circulação” entre sociedade e Estado,
durante e entre os embates eleitorais. Mas o contrário do governo
representativo não é, necessariamente, uma forma política destituída dos
institutos de representação. O século XX, aliás, conheceu várias experiências
de governo autoritário que preservaram tais institutos ladeados pela repressão
sistemática de dissidentes políticos. No Brasil, a ditadura militar que
antecedeu o atual regime assim o fez. Contudo, o despotismo indireto pode ou
não implicar as práticas de repressão que caracterizam todos os governos
autoritários. Eis o ponto que gostaríamos de destacar: estamos falando de um
conceito que resguarda o potencial semântico de lidar com experiências que vão
além do campo do autoritarismo, podendo envolver regimes democráticos. Isto é, regimes que, apesar de conservarem os direitos e as liberdades
democráticas típicas, além do sufrágio universal, têm suas práticas de
representação degradadas por um processo sutil de autorreferencialidade, vale
dizer, de fechamento para a voz dos representados. Trata-se,
portanto, de um conceito capaz de operar criticamente “por dentro” das práticas
democráticas, distinguindo-as segundo o desenvolvimento, apropriado ou inapropriado,
de seus institutos de representação.
Contudo, é muito difícil prever e apontar a partir
de que ponto um regime democrático passa a sofrer esse tipo de degradação.
Tal como pensado neste esboço, ela não
se faz anunciar por meio de um golpe de Estado ou por mudanças visíveis das
regras constitucionais. Em
princípio, todas as normas democráticas, assim como os direitos que as
acompanham, podem remanescer intactas, enquanto o processo de degradação avança
silenciosa e discretamente. O despotismo
indireto, nesse sentido, é o ponto
de chegada de um definhamento assintomático de qualquer variante saudável das
democracias constitucionais.
Longe afirmar que o Brasil contemporâneo já
vivencia esse ponto de chegada. O que se pretende nestas mal traçadas linhas é
apenas fazer uma advertência, na exata medida em que se aludiu, de modo tão
genérico quanto o espaço permite, à evolução recente dos acontecimentos
políticos do país. Essa evolução indica
tudo o que há de paradoxal no balanço que se poderia fazer dos 25 anos das
práticas calçadas em nossa atual Constituição Federal. Se, por um lado, há que comemorar, sim, esse
período inédito de desfrute do consenso democrático e da estabilidade
constitucional, por outro, é preciso examinar com mais cuidado se, e através de
que causas e a partir de quais circunstâncias históricas, nos interstícios
desse mesmo consenso e estabilidade, o arcabouço do regime não começou de fato
a se deixar contaminar pelo germe insidioso do despotismo indireto.
Cicero
Araujo
Professor
de Teoria Política do Departamento de Ciência Política da Universidade de São
Paulo (USP).
Fonte:
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1540
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