Nos
últimos meses, a preservação da Praça Portugal tem motivado acalorados debates.
Apesar da falta de consenso, a opção pela destruição da praça parece fato
consumado: fora tomada em gabinete, com base no Plano de Ações Imediatas de
Transporte e Trânsito, e comunicada publicamente às vésperas do início das
obras de engenharia na avenida Dom Luís.
Essa decisão política, da maneira que aconteceu,
cria um péssimo precedente para a tutela de espaços públicos destinados à
cultura ou ao lazer em Fortaleza. Por isso, não
se pode esquecer os argumentos expostos, já que estas discussões contribuirão
de algum modo para reflexão sobre a proteção futura de outros tantos bens de
uso comum que estejam no “meio do caminho”.
A busca de equilíbrio na valorização da
arquitetura doméstica e da memória coletiva, representada por edificações e marcos
urbanos que espelham a vida dos diferentes grupos formadores da população não é tema novo. Esse
debate começa a ser defendido com fundamento teórico na Europa, a partir de
1850, por Ruskin e Morris. Durante o século XX, foi consolidada a concepção de
que a idealização, a implantação e o teor de políticas públicas de reabilitação
urbana devem ter como pressuposto a valorização e o fortalecimento da
cidadania, em seus diversos aspectos. Daí porque a indicação de nova vocação de
espaço cultural deve ser sempre discutida com a comunidade.
Seguindo
essa linha, a Constituição brasileira de 1988 trouxe uma verdadeira revolução
para a dimensão e a gestão dos bens culturais, indicando um novo signo de
regência pautado na ideia de democracia pluralista. Assim, sob o viés da proteção jurídica do patrimônio cultural, a supressão da
Praça Portugal sem um processo decisório democrático e participativo é uma
afronta a pilares constitucionais como: patrimônio cultural como bem de todos;
respeito à diversidade de conteúdos culturais; oferta de instrumentos
preventivos para proteção dos bens culturais materiais e imateriais; dever de
informação estatal sobre usos dos bens culturais; e responsabilidade partilhada
entre Estado, sociedade, comunidades e indivíduos.
A previsão constitucional não foi suficiente
para proteger a Praça Portugal. Faltou à administração municipal um olhar
dedicado ao valor cultural do bem que será aniquilado. E o que predominou foi a
decisão tomada a “portas fechadas” por autoridades executivas, ancorada em
estudos técnicos que contemplam a perspectiva da melhor forma de ganhos de
velocidade e fluidez no trânsito.
Não deveria ser assim... A importância dada aos
bens culturais que servem de referência e estão ligados à memória de uma
comunidade é tal que a Constituição dispensa formalismos tradicionais e admite
outras formas de acautelamento e preservação (art. 216,§ 1° da Constituição).
Estas formas de tutela podem ser escolhidas com criatividade e liberdade pelo
Poder Público.
E o constituinte municipal de Fortaleza
não fugiu da tarefa de proteger as praças e outros espaços públicos: na Lei
Orgânica do município é previsto que “qualquer alteração do projeto
arquitetônico ou de denominação das praças será submetida à apreciação da
Câmara Municipal”.
A
legislação municipal evidencia que a praça é um bem cultural que goza de
proteção diferenciada. Por isso, a lei indica a necessidade de controle prévio
sobre como (e quando) as alterações em sua concepção, nomenclatura e destinação
originais podem ocorrer. O objetivo é levantar e avaliar os impactos que as
mudanças provocam tanto no acervo cultural e simbólico da cidade (e aí devem
pesar aspectos urbanísticos, paisagísticos, turísticos), como no acervo efetivo
da comunidade (valores de referência e sua importância para memória coletiva).
As praças,
deste modo, possuem um simbolismo duplo: são ao mesmo tempo patrimônio cultural
- genérica e legalmente protegidas como logradouros históricos - e ambiente de
democracia (um patrimônio comum a todos!).
Inês
Virgínia Prado Soares é doutora em Direito e autora de Direito ao (do)
Patrimônio Cultural Brasileiro.
Humberto
Cunha é doutor em Direito, professor da Unifor e do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Direitos Culturais.
Fonte: http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2014/04/26/noticiasjornalvidaearte,3241629/a-praca-no-meio-do-caminho.shtml
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