Jornal Público
online, 29/1/2014, por Pedro Crisóstomo
Medir
impactos, reconhecer obstáculos e apontar caminhos para o Estado português
desencadear um processo de renegociação da dívida pública, sem que a iniciativa
parta do lado dos credores — o repto foi lançado em Maio de 2013 numa petição
da Iniciativa para uma Auditoria Cidadã (IAC) à Dívida Pública e chega agora ao
Parlamento com a entrega de mais de seis mil assinaturas.
Ao
vice-presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, o movimento vai
entregar, numa audição agendada para a tarde de quinta-feira não só a petição
(Pobreza não paga a dívida – Renegociação já!), mas também documentação técnica
para justificar a “urgência” que a IAC vê na renegociação da dívida com “todos
os credores privados e oficiais”.
Como a
petição ultrapassou as quatro mil assinaturas, o tema passa para o lado dos
deputados e deverá ser apreciado em plenário (a 11 de Janeiro havia 6493
subscrições, mas só ao final da tarde desta quarta-feira é apurado o número
exacto).
No relatório
que acompanha a petição, “são apontados os desafios, as dificuldades e os
obstáculos que têm de ser tidos em conta num [eventual] processo de
reestruturação”, ou seja, um corte na dívida do Estado que faça recuar o seu
rácio em percentagem do PIB para níveis considerados sustentáveis, diz ao
PÚBLICO o economista e investigador do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra José Castro Caldas, que esteve directamente envolvido
na elaboração do documento como membro do movimento e como subscritor.
No texto,
refere, são cruzados números sobre a trajectória da dívida pública (204,3 mil
milhões de euros previstos para o final do ano passado, equivalente a 127,8% do
PIB, segundo os critérios de Bruxelas), descritas algumas implicações de um
processo de renegociação — nomeadamente a necessidade que o movimento vê em
proteger os pequenos aforradores e a Segurança Social das perdas a assumir com
um corte da dívida — e é ainda defendido que nem todo o tipo de reestruturações
serve o interesse de Portugal.
Estudar
soluções
O movimento
não está comprometido com uma proposta — a ideia é abrir o debate, até porque
este é um “processo de tensão”, “complexo” e que “não é linear”, completa
Isabel Castro, membro da comissão da IAC. São colocados cenários em cima da
mesa, mas apenas para se perceber o contexto da renegociação. Cenários “para os
quais o Estado deveria estar a preparar-se”, porque, sustenta Castro Caldas,
mais cedo ou mais tarde a questão vai acabar por colocar-se. Por isso, defende
que deve ser o Estado a desencadear o processo de negociação, para não serem
credores a tomar a iniciativa e a organizar-se “nos termos que mais lhes
convêm”.
Para Isabel
Castro, ex-deputada do PEV, as reestruturações de dívida pontuais que ocorreram
já depois da entrada da troika em Portugal (como trocas de dívida, reduções das
taxas de juro dos empréstimos ou a extensão dos prazos de reembolso das
tranches garantidas pela União Europeia) não são suficientes e é preciso
discutir abertamente uma solução que faça baixar a dívida, mesmo admitindo
riscos no curto prazo. “Não podemos estar a cortar em serviços públicos e a
exigir sacrifícios que atingem a dignidade humana, quando todo o dinheiro dos
brutais sacrifícios é para pagar uma dívida a que estamos amarrados.” Tal
cenário, diz, poderia implicar a declaração de uma moratória ao serviço da
dívida, ou seja, a suspensão temporária do pagamento dos juros e das
amortizações.
Há campo
para várias soluções, mas “nem todas servem a Portugal”, completa Castro
Caldas, dando como exemplo o caso da Grécia, onde o corte da dívida pública
abrangeu apenas a dívida que estava nas mãos do sector privado. Uma vez que o
corte no montante da dívida “que afecta só os credores privados” implica que
estes assumam perdas em proporções maiores, defende o envolvimento de todos os
credores, com excepção dos pequenos aforradores, a Segurança Social e outros
investidores públicos. É que, com a concessão do empréstimo da troika, os
chamados "credores oficiais" (FMI e UE) assumiram um peso significativo
no total da dívida do Estado, reduzindo a exposição dos privados em termos
percentuais.
Para reduzir
a dívida para “um nível sustentável”, disse, foi equacionado um corte de 50% na
dívida do Estado, ou seja, a anulação de metade dos 204,3 mil milhões de euros
de dívida. Mas, para poupar os pequenos aforradores e a Segurança Social, o
corte total a aplicar teria de se situar entre 50% a 60%, explica Castro
Caldas.
Que perdas
para a banca?
O movimento
reconhece que a reestruturação teria implicações no curto prazo e tem em conta
alguns impactos negativos nos balanços dos bancos e nos indicadores de saúde
financeira das instituições: o rácio de solvabilidade (que deve ser superior a
10% dos activos, segundo os critérios do Banco de Portugal) e a liquidez. Mas,
de acordo com Castro Caldas, mesmo que a renegociação implicasse para as
instituições financeiras uma perda de valor em carteira de 66%, os sete maiores
bancos a operar em Portugal conseguiriam manter a sua posição líquida positiva.
E acrescenta que a poupança pública seria superior à amplitude do reforço de
capitais que os bancos tivessem de assumir.
Um estudo
anterior do economista Miguel Coelho alertava, porém, que uma reestruturação da
dívida, mas apenas para reduzir metade da dívida detida através de obrigações
do tesouro, pouparia ao Estado 1655 milhões de euros por ano em juros (cerca de
1% do PIB), mas implicaria cerca de 11 mil milhões de perdas para a banca e
significaria que o corte ficaria concentrado em investidores nacionais.
Isabel
Castro diz que no movimento “há grande diversidade de abordagens” em relação a
diferentes propostas — quem defenda que é preciso “repensar a posição de
Portugal” na zona euro ou quem fale na necessidade de a moeda única ter uma
arquitectura diferente que “permita compensar diferentes ritmos, nomeadamente a
algumas economias da periferia”.
Os temas
serão abordados num debate na tarde desta quarta-feira no Centro de Informação
Urbana de Lisboa. Isabel Castro explica que a “a petição anda à volta de uma constatação:
a de que a austeridade não é capaz de resolver o problema do endividamento e
que, considerada a situação [portuguesa] desde 2010 e de forma mais nítida com
a intervenção da troika, o que se verifica é que os sucessivos cortes se estão
a traduzir em desigualdades sociais, empobrecimento, emigração e fuga de massa
crítica”, sem que a dívida tenha sido reduzida.
A petição
insta ainda o Parlamento a criar, dentro das suas competências, uma entidade
que possa acompanhar uma auditoria à dívida, com a garantia de que essa
estrutura será aberta à participação dos cidadãos (na composição e
funcionamento).
Entre os
signatários da petição estão, entre outros, o constitucionalista Jorge Miranda,
os historiadores Irene Pimentel e Manuel Loff, o politólogo André Freire, os
economistas Ricardo Paes Mamede, João Rodrigues, Eugénia Pires e Eugénio Rosa,
os escritores Mário de Carvalho, Hélia Correia, Alice Vieira, o encenador Jorge
Silva Melo e os realizadores João Botelho e Teresa Villaverde Cabral.
Fonte: http://auditoriacidada.info/article/peti%C3%A7%C3%A3o-pela-%E2%80%9Curg%C3%AAncia%E2%80%9D-da-renegocia%C3%A7%C3%A3o-da-d%C3%ADvida-chega-ao-parlamento
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