"Eu
sinto saudade do Brasil. Mas não era uma vida normal. Era só trabalho",
resume a boliviana Malena Aruquipo Rios, de 37 anos, 15 deles vividos em São
Paulo.
Após duas
passagens pela capital paulista (uma de quatorze anos e outra de um), ela está
de volta a El Alto, uma cidade satélite contígua à capital La Paz, desde 2013.
Com tradição
no setor têxtil, El Alto é o principal pólo de emigração para São Paulo, a
metrópole onde milhares de bolivianos são explorados em oficinas de costura.
Considerada
a capital mundial da etnia aymara – do presidente Evo Morales –, a cidade se
desenvolveu nos últimos anos, mas continua exportando mão de obra barata para o
Brasil.
A presidente
Dilma Rousseff desceu de seu avião no aeroporto de El Alto na última
quinta-feira quando esteve por apenas quatro horas na Bolívia para prestigiar a
posse do terceiro mandato de Evo Morales e reativar a relação entre os dois
países.
Malena veio
ao Brasil aos 20 anos de idade, em 1998, quando esse fluxo migratório começava
a se intensificar. Falando com voz tímida e jeito desconfiado, ela conta que
deixou a casa da sua família com objetivo de trabalhar um ano, juntar dinheiro
e voltar para estudar ou abrir um negócio.
Mas a
motivação econômica não foi a única razão que a levou a cruzar de ônibus os 2,9
mil km que separam as duas cidades – ela também tinha curiosidade.
"A
princípio não queria, (porque) eu estava namorando e estudando. Mas depois
pensei: por que não? Quem não quer conhecer outro país? Sempre gostei do idioma
quando ouvia na TV", recorda.
Foi seu pai
que sugeriu que ela trabalhasse como babá para uma família conhecida de
bolivianos. Mas a promessa de ganhar US$ 100 por mês (R$ 110 na época) não se
concretizou e boa parte da sua vida nos anos seguintes foi de escravidão,
segundo as leis brasileiras.
Ameaças
Em seu
primeiro trabalho, numa oficina de costura em Tucuruvi (norte de São Paulo), sua jornada começava às 7h da manhã e
terminava às 3h da madrugada, com apenas dois breves intervalos para refeições.
Além de cuidar das crianças, ela cozinhava e arrumava a oficina.
Depois que os costureiros terminavam seus
trabalhos, à 1h, Malena organizava o local: varria o chão, dobrava os tecidos e
separava as peças de roupa que eram levadas por coreanos, os intermediários
entre a oficina e as empresas de varejo.
Ao longo de seis meses nessa condição, tudo o que
recebeu foram R$ 50. Sua patroa ameaçava denunciá-la à imigração brasileira se
ela abandonasse o trabalho.
Certo dia, fugiu. "Uma noite, quando acabei
de trabalhar, fui andando até Santana (também no norte de São Paulo)",
lembra. Sem saber falar a língua, ficou perdida pelo bairro: "Eu chorava
sem parar."
De manhã,
foi socorrida por algumas pessoas na rua que sugeriram que ela deveria voltar
para casa, mas não quis retornar de mãos abanando. "Eu tinha ido para
juntar dinheiro e ainda não tinha conseguido nada. Então fiquei mais",
lembra.
Malena havia conseguido o contato de outra oficina
de bolivianos em Guarulhos. Lá, o trabalho era semelhante e ela recebia R$ 130.
"(A patroa) pagava certinho, mas muitas vezes não tinha comida e a gente
passava fome. E não podia sair para procurar outro emprego."
Nessa oficina, com dez trabalhadores bolivianos,
ela conheceu seu marido. Depois de um ano, o casal decidiu procurar outro local
para trabalhar. Quando saíram, os patrões se recusaram a pagar seu último
salário.
Ainda foram
costureiros em Santana, no Bom Retiro, em Itaquera e na Penha. Os patrões
costumavam ser brasileiros ou bolivianos. Em um desses lugares, sem alojamento,
chegou a dormir com sua filha Taina, de dois anos, no chão da cozinha. Também
era comum sofrer assédio dos donos das oficinas, conta.
Escravidão
O Código
Penal Brasileiro considera que uma atividade é "análoga à escravidão"
se houver qualquer um desses quatro elementos presentes: trabalho forçado,
jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho ou restrição à locomoção
por dívida.
A BBC Brasil perguntou a Malena se ela entendia
que estava sendo explorada como escrava. Na sua visão, isso só acontecia quando
não recebia. "No início sim, não me pagavam, a comida era muito ruim.
Depois melhorou."
No início da
vida em São Paulo, Malena mal saía na rua: além de coragem, também lhe faltavam
tempo e dinheiro. "Eu demorei três
anos para falar português e andar pela cidade sozinha", diz.
Em 2003, uma
oficina pagou ao casal com máquinas de costura e eles decidiram trabalhar por
conta própria com mais dois casais. Alugaram um apartamento de três quartos na
Armênia onde todos moravam e trabalhavam juntos.
Costurando
por conta própria, Malena conseguia ganhar até R$ 600, mas ela diz que a rotina
era até mais pesada.
"Tínhamos
que trabalhar mais para conseguir pagar as contas – aluguel, luz, água. Muitas
vezes nem dormíamos para entregar o serviço."
Ainda assim, preferia esse esquema por causa da
filha, que nasceu em 2000. "Na oficina em que a gente trabalhava antes, eu
tinha que deixar ela trancada num quarto. Os donos reclamavam."
Retorno
Em 2011, a
boliviana decidiu voltar com Taina para El Alto, após uma separação complicada
do marido. Pesou em sua decisão o futuro da filha – na Bolívia ela poderia ter
uma educação e um ambiente familiar melhor, perto dos avós e dos tios.
"As
amiguinhas que ela tinha no Brasil eram muito precoces. Com nove anos, ela
queria ir sozinha passear no shopping. Isso me preocupava."
Quatro anos
depois do retorno, Taina parece adaptada, mas o início foi difícil. "Ela
achava tudo feio aqui, a cidade, as pessoas", diz a mãe.
Malena ainda voltou sozinha para o Brasil por um
ano em 2013. Novamente trabalhou em oficina de costura, ganhando cerca de R$
500 por mês. Dessa vez, conseguiu cumprir seu objetivo de estudar – nos fins de
semana, fez um curso profissionalizante gratuito de manicure.
Apesar da vida difícil no Brasil, ela diz sentir
saudade de São Paulo. "Lá é muito bonito", diz, contrariando a fama
de feia da capital paulista. "Foram 15 anos…", repete, justificando o
sentimento.
Acordo
Um acordo de 2012 do Mercosul, do qual a Bolívia
já é membro associado, dá direito a qualquer boliviano solicitar visto
permanente para morar e trabalhar no Brasil. O governo brasileiro entende que a
própria legalização dos bolivianos é uma forma de deixá-los menos vulneráveis à
exploração,
explica o diretor do Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça,
João Guilherme Granja.
Outra
prioridade, diz Granja, é melhorar o atendimento ao estrangeiro que chega ao
país. Ele cita a inauguração do Centro de Integração e Cidadania do Imigrante,
em São Paulo, que conta com atendimento da Defensoria Pública da União e terá
em breve um posto da Polícia Federal para regularização de papéis.
O local foi construído pelo governo estadual com
recursos de multas aplicadas em empresas que exploravam trabalho escravo e
também com R$ 6 milhões doados pela Zara, que em 2011 foi responsabilizada por
escravizar 16 bolivianos em duas oficinas de fornecedores.
"O imigrante não é um problema. Queremos que
ele seja bem tratado", afirma Granja.
No último
sábado, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva discursou para milhares de
bolivianos em uma praça no centro de São Paulo. Um vídeo postado em sua página
no Facebook mostra o momento em que, sob aplausos, ele parabeniza Morales e
afirma que "os imigrantes têm que ser tratados (no Brasil) como irmãos,
como brasileiros, como iguais".
A Embaixada
brasileira em La Paz informou à BBC que tem atuado junto a rádios locais de El
Alto para alertar a população sobre as redes de aliciamento de trabalho escravo
e explicar sobre a possibilidade de emigrar legalmente para o país.
Segundo a
Embaixada, estima-se que mais de um milhão de bolivianos vivam no Brasil, mas é
muito difícil saber precisamente, pois muitos não são registrados ou vão e
voltam com regularidade. Os números do Ministério da Justiça indicam que há 121
mil regularmente no país.
O valor crescente de recursos enviados do Brasil
para a Bolívia nos últimos anos são outro indicativo da expansão da imigração.
Segundo dados do Banco Central boliviano, em 2007, os reais representavam cerca
de 0,6% das remessas enviadas por bolivianos no exterior ao país – que somam
cerca de US$ 1 bilhão por ano. Já em 2014, eram 5% do total.
'Não quero
isso para minha filha'
Malena conseguiu
regularizar sua vida no Brasil ainda antes de completar um ano no país, mas
nunca obteve um trabalho de carteira assinada. Apesar disso, ela diz que não se
sentiu excluída do restante da sociedade. "Muitos chamavam os bolivianos
de bêbados, mas eu tinha amigas brasileiras também", conta.
Sua intenção
é fazer uma visita com a filha a São Paulo no fim do ano, mas voltar
definitivamente não está nos planos. A maior preocupação de Malena é a educação
de Taina. "Não quero que ela passe pelo sofrimento que eu passei."
Segundo a
procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) de São Paulo Christiane
Nogueira, há milhares de oficinas de costura em São Paulo. Devido à
fiscalização na cidade, o órgão tem notado o surgimento de oficinas em
municípios vizinhos e também em Minas Gerais e Santa Catarina.
"É
impossível fecharmos todas. Tem que ser feita uma discussão maior sobre a
terceirização do trabalho pelas empresas de moda. Há uma cegueira deliberada
das empresas, que fingem que não veem o trabalho escravo nos
fornecedores", afirma a procuradora.
Um balanço
divulgado pelo Ministério do Trabalho na quarta-feira mostra que 1,4 mil trabalhadores foram resgatados
de condições análogas à escravidão em 2014, sendo 82 deles de oficinas de
costura no estado de São Paulo.
No caso mais
recente, de novembro, a varejista Renner foi responsabilizada pela exploração
de 37 costureiros em uma oficina terceirizada em São Bernardo (SP).
Fonte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2015/01/150127_boliviana_escravizada_ms
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