“Não é
de hoje que estudos, auditorias e investigações denunciam que a dívida pública,
ao invés de aportar recursos ao Estado, vem desviando recursos (que deveriam se
destinar a áreas sociais) para o pagamento de juros e amortizações de uma dívida cuja contrapartida não se conhece,
pois não existe a devida transparência.”
Fonte:
Centro de Estudos Vitor Meyer
A crise da
dívida dos Estados Unidos da América do
Norte, maior economia do planeta, escancara
a usurpação do instrumento de endividamento público e a sua utilização em benefício do setor financeiro bancário.
Sabemos que o endividamento público é um importante
instrumento de financiamento dos
Estados, por isso todas as nações são autorizadas a endividar, dentro de
certos limites e condições. As dívidas contraídas deveriam aportar
recursos aos cofres públicos, complementando os recursos arrecadados por meio
de tributos, de forma que o Estado possa cumprir seu papel e garantir vida digna
ao seu povo.
Não é de
hoje que estudos, auditorias e investigações denunciam que a dívida pública, ao invés de aportar recursos ao Estado, vem
desviando recursos (que deveriam se destinar a áreas sociais) para o pagamento
de juros e amortizações de uma dívida cuja contrapartida não se conhece, pois
não existe a devida transparência.
Assim, o
problema central é que o instrumento do
endividamento público tem sido utilizado como um sistema de desvio de recursos
públicos que, para operar, conta com arcabouço de privilégios e possui diversas
ramificações que constituem o que batizamos de “Sistema da Dívida”.
Nos EUA, esse sistema operou, recentemente, para
salvar grandes bancos em risco de quebra. Até a semana passada, não se sabia o tamanho
dessa ajuda, pois as informações eram vagas e conflitantes, até que no último
dia 21 de julho o Senador Bernie Sander publicou o seguinte:
Auditoria
inédita realizada pelo Departamento de Contabilidade Governamental
norteamericano revelou que US$ 16 trilhões foram secretamente repassados pelo
Banco Central dos Estados Unidos – FED, Federal Reserve Bank - para bancos e
corporações norteamericanas, bem como para alguns bancos estrangeiros de
diversos países.
Os registros
de tais repasses haviam sido anotados
pelo FED sob a modalidade de empréstimos com juros próximos de zero,
realizados no período de dezembro/2007 e
junho/2010, que abrange tanto a administração Bush (republicanos) como Obama (democratas).
Assim,
volumosa dívida pública foi contabilizada para garantir ajuda aos maiores
bancos do país e do exterior. Lista de instituições que receberam a maior parte
dos recursos do Federal Reserve está registrada na página 131 do Relatório de
Auditoria Governamental, resumida a seguir:
Citigroup: $2.5 trillion ($2,500,000,000,000)
Morgan Stanley: $2.04 trillion ($2,040,000,000,000)
Merrill Lynch: $1.949 trillion ($1,949,000,000,000)
Bank of America: $1.344 trillion ($1,344,000,000,000)
Barclays PLC (United Kingdom): $868 billion
($868,000,000,000)
Bear Sterns: $853 billion ($853,000,000,000)
Goldman Sachs: $814 billion ($814,000,000,000)
Royal Bank of Scotland (UK): $541 billion ($541,000,000,000)
JP Morgan Chase: $391 billion ($391,000,000,000)
Deutsche Bank (Germany): $354 billion
($354,000,000,000)
UBS (Switzerland): $287 billion ($287,000,000,000)
Credit
Suisse (Switzerland): $262 billion ($262,000,000,000)
Estas cifras estratosféricas evidenciam a
utilização do instrumento do endividamento público para fins totalmente
diversos do que se poderia considerar justificável, pois enquanto bancos
receberam ajuda de US$ 16 trilhões - soma superior ao PIB do país - o peso
dessa “dívida pública” tem recaído sobre o povo, provocando desemprego recorde,
restrições a serviços de saúde e demais benefícios do seguro social,
transformado radicalmente a realidade social naquele país, e para pior.
As revelações dessa auditoria governamental
são tão alarmantes que levam à necessidade de aprofundamento das investigações,
tendo em vista que o volume de recursos emprestados aos bancos, de US$ 16
trilhões, supera o atual saldo da dívida
pública estadunidense, de US$ 14,5 trilhões.
Além desses
repasses feitos pelo FED, o Tesouro também destinou grandes somas de recursos
aos bancos, tanto sob a forma de repasses diretos como por meio de programas de
salvamento bancário que consumiram grande parte da arrecadação tributária do
país.
A crise que
atinge a maior economia do planeta também provoca conseqüências para o resto do
mundo, mas antes de entrar nessa abordagem, cabe questionar porque razão o FED
teria repassado tamanho volume de recursos aos maiores bancos do país e do
mundo?
Possivelmente,
a cumplicidade do governo norte-americano de não coibir a emissão descontrolada
de produtos financeiros que se revelaram verdadeiro “lixo”, seguida de
tentativas de empurrar esse lixo para debaixo do tapete com a criação dos
chamados “bad banks” - instituições que se prestariam a acatar volumes
expressivos desses papéis podres, realizando uma “faxina” para aliviar o
sistema financeiro americano - e talvez
até garantias governamentais a certas operações, pesaram em favor da decisão
política de salvar os bancos mediante a emissão de trilhões de títulos da
dívida, transformando a crise financeira em crise da dívida.
Adicionalmente, a desregulamentação do mercado
financeiro internacional contou com a cumplicidade das principais nações, já
que em reunião do G-20 realizada em abril/2009 a proposta de regulamentação do
setor não passou.
No ano seguinte, o G-20 apenas discutiu
a necessidade de regulação mais rigorosa para grandes instituições financeiras,
consideradas “grandes demais para quebrar”, admitindo que tal regulação seria
uma medida para evitar que novas eventuais falências não tivessem que ser
resolvidas pelos governos, aprofundando a dívida pública e colocando economias
inteiras em risco.
Portanto, a origem da crise deflagrada desde 2008 nos
EUA reside no setor financeiro bancário e sua excessiva “criatividade” na
produção de séries e mais séries de derivativos sem lastro e outros produtos
financeiros sem respaldo e sem valor algum - chamados de “ativos tóxicos” pela
grande mídia.
Derivativos
são meras apostas baseadas em outro ativo real. Por exemplo, se determinado
conjunto de ações de determinada empresa vale R$ 1.000, faço uma aposta de que
aquele conjunto pode valer mais, por exemplo R$ 1.500, e emito um derivativo no
valor de R$ 500.
Enquanto
existem diversas restrições legais e normativas para a colocação de ativos
reais no mercado financeiro, a emissão de derivativos não é controlada, o que
deu margem para que essas emissões se tornassem um negócio altamente rentável,
pois o custo de produção de um derivativo era praticamente nulo.
Como os
derivativos são meras apostas especulativas que podem vir a se concretizar ou
não, esses papéis deram margem ao surgimento de outros papéis que funcionam
como “seguros” para garantir o investidor contra o risco inerente àquelas
apostas, também vendidos em larga escala pelos bancos. Esses papéis inundaram o
mercado financeiro mundial e foram repassados a fundos de investimento, fundos
de pensão, fundos soberanos e toda espécie de investimentos mundo afora.
Na medida em
que as apostas especulativas foram se frustrando, o tremendo volume de seguros
começou a ser acionado, levando os bancos a sérios problemas financeiros. Cabe
ressaltar que quanto maior e mais famoso o banco, maior a facilidade de
colocação de seus derivativos no mercado, e mais amplo o acesso a mercados
secundários em todas as partes do mundo, inclusive paraísos fiscais, o que
explica a destinação de volumes de recursos mais expressivos para os maiores
bancos, conforme lista divulgada pela auditoria governamental.
Apesar da
gravidade dessa questão relacionada à origem da crise e ao salvamento dos
bancos, as discussões predominantes no parlamento norte-americano nos últimos
dias limitaram-se à necessidade de elevar o limite legal para o endividamento -
atualmente fixado em US$ 14,3 trilhões - bem como ao corte de gastos sociais
para que sobrem mais recursos para o pagamento de compromissos financeiros da
dívida.
Essa crise
propiciou acalorados debates e exploração de desgastes políticos inerentes ao
período pré-eleitoral estadunidense que até o Secretário de Tesouro Timothy
Geithner chamou de “espetáculo”, manifestando sua preocupação de dano à
confiança nos Estados Unidos e à cotação dos títulos pelas agências de risco.
Parlamentares
debateram também a iminência de uma moratória, o risco de colapso do dólar e de
inflação galopante, engenharia financeira, dentre outros problemas estruturais
da economia dos EUA, mas o foco da origem da crise – que reside na atuação do
setor bancário que inundou o mercado financeiro de papéis sem lastro- não foi
devidamente atacado, muito possivelmente em reconhecimento à generosidade do
setor financeiro no financiamento de campanhas eleitorais.
Democratas e
republicanos acabaram chegando a um acordo para aprovar, por 74 contra 26
votos, um pacote de “legislação de emergência” que de imediato eleva o limite legal de
endividamento em mais US$ 400 bilhões, seguido de mais uma elevação de US$ 500
bilhões, o que permitirá a emissão de mais 900 bilhões de dólares em títulos que
cobrirão dívidas anteriores, reduzindo o déficit. Os cortes de gastos sociais
serão objeto de cortes drásticos de US$ 2 trilhões em uma década e atingirão
principalmente gastos com aposentadorias, assistência médica e subsídios
agrícolas.
A solução
encontrada é paliativa e o problema real está longe de ser resolvido, pois não
está sendo enfrentado: a economia mundial padece da contaminação de imensa
quantidade de papéis sem lastro; verdadeiro “lixo” estimado em cerca de 10
vezes o PIB mundial que as nações mais ricas do mundo, principalmente os
Estados Unidos, decidiram reciclar mediante a sua troca por dívida pública.
Países da
Europa também decidiram salvar os bancos
que se encontravam em risco de quebra por terem emitido papéis
financeiros sem respaldo, transformando a crise financeira em crise da dívida
naquele continente.
Na
realidade, o salvamento do sistema bancário e o acobertamento das operações que
de fato provocaram a crise financeira nos EUA e Europa estão relacionados à
evidente tentativa de transferir os papéis podres para o resto do mundo. O
Brasil não está imune de absorver esse lixo, mas as conseqüências da crise da
dívida norte-americana vão muito além desse risco.
Devido à
aceitação mundial do dólar em transações comerciais e financeiras, diversos
países aplicam suas reservas internacionais em títulos da dívida dos EUA. O Brasil é um destes países,
tendo acumulado mais de 200 bilhões de dólares em títulos do Tesouro
estadunidense nos últimos 6 anos, embora tal aplicação não renda quase nada ao
país. O mais grave é que a compra dessas reservas internacionais (que não
rendem quase nada) foi feita mediante a emissão de títulos da dívida interna
brasileira que pagam os juros mais elevados do mundo. Essa diferença de
rendimentos agravada pela forte desvalorização do dólar frente ao real resultou
em mega prejuízo ao Banco Central do Brasil, da ordem de R$ 147 bilhões em 2009
e R$ 50 bilhões em 2010, que é arcado pelo Tesouro Nacional, isto é, por toda a
sociedade. O endividamento brasileiro já atinge quase R$ 3 trilhões e em 2010
consumiu 44,93% dos recursos do orçamento da União, sacrificando os
investimentos em saúde, educação e todas as demais áreas. Desta forma, o povo
brasileiro também já está pagando, há algum tempo, a conta da crise da dívida
norte-americana.
Outros
impactos advirão das medidas aprovadas nesse 2 de agosto de 2011: a demanda
norte-americana por produtos de outros países deverá ser fortemente abalada
pelas medidas recessivas que estão sendo adotadas para reduzir gastos e fazer
sobrar mais recursos para o pagamento da dívida. Além de afetar, em cascata, o
comércio de diversos países, tais medidas recessivas provocarão o agravamento
da própria crise, inibindo investimentos reais, produtividade e geração de
empregos. Por isso outro impacto deverá ser o aumento da pressão para a
colocação de produtos norte-americanos em todos os mercados, afetando
indústrias locais.
Segundo
Michel Chossudovsky, para financiar o salvamento dos bancos o governo dos EUA
recorreu a empréstimos junto a esses mesmos bancos. Assim, como num passe de
mágica, os bancos falidos foram salvos e ainda transformados em credores do
Estado! Por isso, o autor defende a ANULAÇÃO destas dívidas, o retorno dos
recursos ao Tesouro dos EUA, e o confisco dos bens dos especuladores, proposta
bem distinta da recentemente aprovada no parlamento norte-americano.
A atual
crise expôs a dominância do setor financeiro e impõe a necessidade de revisão
desse modelo de desenvolvimento e de acumulação capitalista que privilegia o
setor bancário. Especialmente nos Estados Unidos, o privilégio de impressão de
moeda e emissão de títulos da dívida para financiar investimentos, mas também
especulação e guerras, se esgotou.
Notas da
autora:
- PIB =
Produto Interno Bruto; soma de todas as riquezas produzidas no país no período
de 1 ano. O PIB dos EUA é o maior do mundo e equivale atualmente a US$ 14,12
trilhões.
- A emissão
descontrolada desses papéis “tóxicos” foi possibilitada porque os controles existentes,
determinados pela SEC - Securities and Exchange Commission, Estados Unidos
da América -
órgão criado logo após a crise de 1929 e que desde então exercia o papel de controlar
a qualidade e autenticidade dos papéis negociados no mercado financeiro – foram
desrespeitados por diversas grandes instituições financeiras (O documentário
Inside Job, disponível na internet, ilustra bem esse mecanismo).
- Em inglês:
Toxic assets, termo empregado para papéis completamente podres, que não possuem
valor algum. Outra denominação é dada para papéis também problemáticos, mas que
ainda teriam algum valor; são os chamados Iliquid assets. (5/8/2011)
∗ Maria Lucia Fattorelli é coordenadora da
Auditoria Cidadã da Dívida no Brasil desde 2001, foi membro da Comissão para a
Auditoria Integral Equatoriana (CAIC) entre 2007 e 2008 e Assessora da Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) da Dívida Pública na Câmara dos Deputados do
Brasil entre 2009 e 2010.
Fonte:
Correio Caros Amigos
Fonte:
http://artigoseentrevistasdafattorelli.blogspot.com.br/2012/02/crise-da-divida-dos-eua.html
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