Uma catadora
de latinhas do Distrito Federal conseguiu passar em um concurso de nível médio
do Tribunal de Justiça estudando apenas 25 dias. Com isso, ela trocou uma renda
mensal de R$ 50 por um salário de R$ 7 mil. “Foi muito difícil. Hoje, contar
parece que foi fácil, mas eu venci”, afirma. Agora, ela diz que pensa em
estudar direito.
Sem dinheiro
nem para comprar gás e obrigada a cozinhar com gravetos, Marilene Lopes viu a
vida dela e a da família mudar em 2001, depois de ler na capa de um jornal a
abertura das inscrições para o concurso do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal.
Ela, que até
então ganhava R$ 50 por mês catando latinhas em Brazlândia, a cerca de 30
quilômetros de Brasília, decidiu usar os 25 dias de repouso da cirurgia de
correção do lábio leporino para estudar com as irmãs, que tinham a apostila da
seleção. Apenas Marilene foi aprovada.
“Minha mãe
disse que, se eu fosse operar, ela cuidava dos meninos, então fui para a casa
dela. Minha mãe comprou uma apostila para as minhas irmãs, aí dei a ideia de
formarmos um grupo de estudo. Íamos de 8h às 12h, 14h às 18h e de 19h às 23h30.
Depois eu seguia sozinha até as 2h”, explica.
O esforço de
quase 12 anos atrás ainda tem lugar especial na memória da família. Na época,
eles moravam em uma invasão em Brazlândia.
Marilene já
havia sido agente de saúde e doméstica, mas perdeu o emprego por causa das
vezes em que faltou para cuidar das crianças. Como os meninos eram impedidos de
entrar na creche se estivessem com os pés sujos, ela comprou um carrinho de mão
para levá-los e aproveitou para unir o útil ao agradável: na volta, catava as
latinhas de alumínio.
Segundo ela,
a situação durou um ano e meio, e na época a família passava muita fome. “Nunca
tinha nem fruta para comer. Eu me lembro que passei um ano com uma só calcinha.
Tomava banho, lavava e dormia sem, até secar, para vestir no outro dia. Roupas,
sapato, bicicleta [os filhos puderam ter depois da aprovação no concurso].
Nunca tive uma bicicleta”, conta.
Mesmo para
se inscrever na prova Marilene, que é técnica em enfermagem e em administração,
encontrou dificuldades. Ela lembra ter pedido R$ 5 a cada amigo e ter chegado à
agência bancária dez minutos antes do fechamento, no último dia do pagamento. E
o resultado foi informado por uma das irmãs, que leu o nome dela no jornal.
Ganhando
atualmente R$ 7 mil, a técnica judiciária garante que não tem vergonha do
passado e que depois de formar os cinco filhos pretende ingressar na faculdade
de direito. “Mesmo quando minhas colegas passavam por mim com seus carros e
riam ao me ver catando latinhas com o meu carrinho de mão eu não sentia
vergonha. E meus filhos têm muito orgulho de mim, da nossa luta. Eles querem
seguir meu exemplo.”“Tinha medo [de não passar] e ao mesmo tempo ficava
confiante. Sabia que se me dedicasse bem eu passaria, só precisava de uma
vaga”, diz. “Dei uma flutuada ao ver o resultado. Pedi até para minha irmã me
beliscar.”
Marilene já
passou pelo Juizado Especial de Competência Geral, 2ª Vara Cível, Órfãos e
Sucessões de Sobradinho, 2ª Vara Criminal de Ceilândia, 12ª Vara Cível de
Brasília e Contadoria. A trajetória dela inspira os colegas. Por e-mail, o
primeiro chefe, o analista Josias D’Olival Junior, é só elogios. “A sua
história de vida, a sua garra e o seu caráter nos tocavam e nos inspiravam
profundamente.”
A técnica
afirma ainda que não se arrepende de nada do que passou, nem mesmo de ter tido
cinco filhos – como diz terem comentado amigos. “Ainda hoje choro quando me
lembro de tudo. Eu não tinha gás e nem comida e não ia falar pra minha mãe. Se
falasse, ela me ajudaria, mas achava um abuso. Além de ficar 25 dias na casa
dela, comendo e bebendo sem ajudar nas despesas, ainda ia pedir compras ou o
dinheiro para o gás? Ah, não. Então assim, quando passei, foi como se Deus me
falasse ‘calma, o deserto acabou’.”
Da época de
catar latinhas, Marilene diz que mantém ainda a qualidade de ser
supereconômica. Ela afirma que não junta mais alumínio por não encontrá-los
mais na rua. “As pessoas descobriram o valor, descobriram que dá para vender e
juntar dinheiro”. Já as irmãs com quem estudou, uma se formou em jornalismo em
2011 e outra passou quatro anos depois no concurso do TJ de Minas Gerais, e foi
lotada em Paracatu.
Dificuldades
O primeiro
problema enfrentado por Marilene veio na posse do concurso. A cerimônia ocorreu
três dias após o nascimento do quinto filho, em um parto complicado. A médica
não queria liberá-la para a prova, mas só consentiu com a garantia de que ela
voltaria até 18h30. Por causa do trânsito, a catadora se atrasou em uma hora.
“A médica
chamou a polícia dizendo que eu tinha abandonado meu filho. É que eu estava de
alta, mas o bebê não, e ele precisava tomar leite no berçário enquanto eu
estivesse fora”, lembra. “A enfermeira ligou para a polícia do hospital e
explicou a situação e aí pararam de me procurar. A médica me deixou com o
problema e foi embora, no término do plantão dela.”
Resolvida a
situação, Marilene e a família viveram bem até 2003, quando o marido resolveu
sair de casa. O homem, que já havia sido preso por porte ilegal de arma, havia
“se deslumbrado” com a situação econômica da mulher. A casa e o carro comprados
a partir do salário do tribunal precisaram ser divididos.
Atualmente,
ela mora com os filhos na casa de um amigo, na Estrutural, enquanto aguarda a
entrega de um apartamento de três quartos em Águas Claras. Marilene tem uma
moto e, junto com uma das irmãs, está pagando um consórcio para comprar um
carro zero.
Fonte: https://concurseiro24horas.com.br/artigo/246/ex-catadora-de-latas-passa-em-concurso-do-tj.html
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