Enquanto
aqui no Brasil a comunidade científica praticamente ignora a presença de mais
de 200 revistas acadêmicas de reputação suspeita que foram aceitas no Qualis
Periódicos, fora do país já começaram discussões sobre essa base de dados que
serve para orientar pesquisadores, professores e pós-graduandos brasileiros a
escolher publicações científicas para seus trabalhos.
Tudo começou
na semana passada, quando o biblioteconomista Jeffrey Beall, professor da
Universidade do Colorado em Denver, nos Estados Unidos, enviou para uma lista
de discussão os links de alguns de meus recents posts sobre a aceitação dessas
publicações pela agência federal Capes (Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).
A postagem
de Beall gerou discussões e também sugestões de especialistas no tema da
comunicação científica por meio do acesso livre na internet. Apresentarei essas
sugestões assim que elas tiverem sido apreciadas pela Capes.
O Qualis abrange cerca de 30 mil títulos,
segundo a Capes. Sua classificação nos níveis A1, A2, B1, B2, B3, B4, B5 e C é
usada também em processos seletivos para contratações e promoções e em
avaliações individuais e institucionais para concessões de bolsas e auxílios.
Acesso livre
Os
periódicos predatórios são revistas acadêmicas editadas por empresas que
exploram sem rigor científico uma importante iniciativa de comunicação
científica que surgiu com a internet. Trata-se do Open Access (acesso aberto),
o modelo editorial de publicação de artigos em acesso livre, baseado na
cobrança de taxas de autores ou no custeio por parte de instituições
científicas.
Tanto no
Open Access como no modelo tradicional mantido por assinaturas anuais ou pela
cobrança por artigo baixado pela internet, os periódicos bem conceituados
demoram meses e até mais de um ano para analisar e aceitar artigos, ou
rejeitá-los.
Lixo
acadêmico
Os publishers predatórios não só reduzem a
poucas semanas o intervalo entre a apresentação e a aceitação de artigos, mas
também são menos seletivos e rigorosos nesse processo.
É importante
ressaltar que bons estudos também têm sido publicados em periódicos
predatórios. Mas isso só agrava o problema, pois significa que salários de
pesquisadores, seu tempo de trabalho e recursos para pesquisas acabaram se
transformando em artigos largados em publicações desprestigiadas e até mesmo
consideradas “lixo acadêmico” pela comunidade científica internacional. No caso
do Brasil, quase todo o dinheiro envolvido nessa atividade vem de cofres
públicos.
Avisos
Nas
entrevistas que realizei, cientistas de alto prestígio nacional e internacional
afirmaram que a inclusão dos chamados periódicos predatórios no Qualis era uma
falha grave por parte da Capes. Mas quase todos eles pediram para não serem
identificados.
No início
dessa apuração, o que me deixou intrigado foi o fato de que eu havia
selecionado pesquisadores não só com bons currículos, mas também que já haviam
assumido posicionamentos autênticos, críticos e firmes sobre questões em torno
da ciência no Brasil.
O total de
periódicos que listei em meu post “Pós-graduação brasileira aceita 201 revistas
“predatórias’” (9.mar) corresponde a 0,67% do total de 30 mil títulos. Isso não
seria motivo para tanta preocupação. [Atenção: a informação foi atualizada com
o post “Sobe para 235 a lista de predatórios da pós-graduação brasileira”
(3.abr)]
Maquiagem
O tamanho da
encrenca, porém, começou a ficar claro logo depois. Apesar de esse percentual
de predatórios no Qualis ser pequeno, ele mostra uma vulnerabilidade
indesejável dessa base de dados. Além
disso, esse problema começou a mostrar a conexão com outras aberrações, como a
realização de “eventos caça-níqueis”, em condições até anedóticas e
constrangedoras.
Outra
distorção que constatei foi a “maquiagem
serial” de trabalhos apresentados em conferências, como se eles fossem artigos
aprovados por peer review de
periódico. E isso aconteceu em um
evento na Unicamp, uma das melhores universidades brasileiras, a única com a
USP no ranking das melhores do mundo do Times
Higher Education.
Disparidades
Para
complicar, minha apuração dos periódicos predatórios do Qualis revelou uma
outra esquisitice que atinge dessa base de dados que pode prejudicar
publicações de boa reputação: uma mesma
revista pode ser classificada em diversos níveis de qualidade. Essa
variação não seria problemática se ela se restringisse a níveis de qualidade
próximos e envolvesse áreas de especialidades muito distintas.
Acontece que
há oscilações que vão desde o pior e
mais baixo nível de classificação —aplicável somente a publicações com
deficiências extremas— aos mais elevados, relativos a padrões de excelência. E,
o que é pior, entre áreas muito próximas
(“A avaliação ‘quântica’ de revistas científicas no Brasil”, 16.mar)
Estagnação
Como vimos
acima, a vulnerabilidade e a
inconsistência dessa base de dados indicam que o problema é maior que a
presença dos predatórios. Após a criação do Qualis em 1998, houve o crescimento
da publicação de trabalhos acadêmicos brasileiros, que na prestigiada base de
dados Web of Science quase
quadruplicou de 2000 a 2013.
No entanto,
os indicadores de qualidade dessas publicações mostraram estagnação nesse mesmo
período. Pior: esses índices cresceram em poucas instituições de pesquisa de
grande produção quantitativa. Isso matematicamente significa que o conjunto do restante da produção nacional não estagnou, mas caiu em
qualidade.
Iceberg
Nesse mesmo
período, currículos têm sido recheados
com base nesse crescimento quantitativo sem correspondência na qualidade. Isso influenciou não só contratações e
promoções, inclusive salariais —tudo por meio de concursos públicos—, mas
também avaliações de produtividade individuais e institucionais, concessões de
bolsas e auxílios.
O silêncio quase absoluto dos pesquisadores
brasileiros em relação aos predatórios não se deve apenas à cumplicidade ou ao
risco de constrangimentos com os que fazem uso
desse tipo de publicação. O problema maior são os buracos que eles
revelam no Qualis.
Esses buracos expõem uma parte importante de todo
um sistema de avaliação de desempenho. E, com base nesse sistema, nestes
últimos anos não só foram construídas carreiras e reputações acadêmicas, mas
também foram feitos investimentos e estabelecidas prioridades institucionais.
Limpeza
Remover do Qualis os periódicos predatórios
poderia certamente resultar em muitas reclamações e protestos. Isso levaria a
Capes e outras instituições a deixarem de contabilizar os artigos publicados
nessas revistas.
Mas acredito que de uma forma ou de outra é o que
acabará acontecendo.
E será muito mais rápido se a defesa da manutenção desses títulos depender dos
próprios publishers. (Muitas vezes tenho dificuldades para usar os próprios
argumentos deles como defesa, como “outro lado”.)
Acredito que
a eliminação dos predatórios acontecerá apesar desse silêncio da quase
totalidade dos pesquisadores brasileiros.
Muitos dos coordenadores e coordenadores adjuntos dos 48 comitês
assessores da Capes são pesquisadores respeitados em termos de excelência
acadêmica e reputação por seriedade. Conheço pessoalmente alguns que certamente
não compactuarão com essa avacalhação.
Mas não
acredito em uma reformulação que leve nosso sistema nacional de pós-graduação a
combater a tolerância com revistas de baixa qualidade. É grande demais o
contingente que nos últimos anos se formou, cresceu e adquiriu direitos,
inclusive trabalhistas, fazendo uso de publicações fracas e desprestigiadas. E
tudo isso aconteceu dentro de nossa tradição brasileira de apostar no
crescimento da quantidade com a promessa de um posterior aumento da qualidade
que nunca acontece.
Vespeiro
Com essas e outras, dá para entender muito bem o
motivo pelo qual alguns célebres pesquisadores não estavam dispostos a dar
entrevistas e arrumar mais um confronto na vida. O problema deles era “mexer
com um vespeiro”. O célebre “Epitáfio para M.”, de Berthold Brecht (1898-1956),
que em tradução livre transcrevo a seguir, ilustra bem o que poderia ser esse
embate.
Dos tubarões eu escapei
Os tigres eu matei
Fui devorado
Pelos percevejos.*
Entendo
eles. Eu mesmo muitas vezes tenho dito que o mais desgastante não é enfrentar
leões, mas os bandos de hienas. Felizmente alguns pesquisadores brasileiros já
estão passando da preocupação para a indignação.
* Den Haien
entrann ich
Die
Tiger erlegte ich
Aufgefressen
wurde ich
Von
den Wanzen.
Fonte: http://mauriciotuffani.blogfolha.uol.com.br/2015/04/01/o-qualis-e-o-silencio-dos-pesquisadores-brasileiros/
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