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terça-feira, 26 de novembro de 2013

Vândalos (Quando os jovens se rebelam)

Por ofício, estudei os recentes motins de jovens em Paris, durante 2005, e Londres, em 2011. Perplexidade. Os melhores padrões de vida, as perfeitas democracias
O ministro francês – que pedia a expulsão dos ciganos e dos africanos – fala nos jornais da ingratidão “escória”, “des scelerates”, “canailles” ... Em Londres a poderosa BBC (envolvida em escândalos) fala na incompreensível revolta da “ the mob” ... A televisão interrompe um senhor que falava em desemprego e no fechamento dos centros sociais em Totenham... Não havia espaço na pauta para a pobreza. A ordem é perfeita, a austeridade é necessária e o desemprego inevitável.
Os impostos públicos, enquanto isso, salvam os bancos. Revigoram as montadoras, que exportam para a China ou os países árabes. A robótica substitui os trabalhadores.

Silêncio. Qual a taxa real de desemprego em Madrid, Paris ou Londres: 20, 25%? E entre os jovens: em Tottenham, onde explodem os “motins”, em 2011, é de 40% e em Madrid de 47%! Nos arredores de Paris as razias da polícia escolhem invariavelmente negros, árabes e mestiços como alvos de prisões de “averiguação”.
No auge da crise econômica global emerge o mal-estar, o medo entre as classes possuidoras. A cura: “Tolerância Zero”. Formula genérica, barata e que dissolve ao bater. Do coração da América, a fascistização das polícias emergem como garantia da “ordem” e da “austeridade”. Tolerância zero, todos repetem. O que esquecem, o que se cala, o que se esconde?
Brooklyn, 1998: Abner Louima, negro, casado, pai de uma menina, 29 anos, emigrante haitiano legalmente nos EUA, encontrado em área “suspeita”, onde morava, é torturado até a morte em uma delegacia de Nova York. Abner foi estuprado inúmeras vezes dentro da delegacia. Os policias usavam um cabo de vassoura.
Bronx, 1999: Amadou Diallo, negro, emigrante, 22 anos, morto em frente ao seu prédio. A polícia “entendeu” que um negro procurando uma chave nos bolsos era um “invasor”. Foram disparados 41 tiros num jovem desarmado.
Mas, quem lembra? Quem já ouviu falar nestes nomes? Os que pedem “Tolerância Zero?
Tudo poderia ser um acidente, uma questão da conhecida polícia de Nova York.
Mas, não foi, não é, assim.
Clichy-sur-Bois, 2005: Bouna Traoré, 15 anos e Zayed Benna, 17 anos, morrem durante uma perseguição policial. Voltavam do futebol e iam sofrer uma “dura” da polícia. Mais uma. Humilhação, ofensas, prisão. Acusações: desacato e auto de resistência. Ambos mortos.
Tottenham, bairro periférico de Londres: Mark Duggan, 29 anos, mestiço, desempregado e torcedor do Tottenham ouve música alto. Abordagem policial. A “dura”. Mark é morto. A polícia de Sua Majestade falsifica um “auto de resistência”, desmascarado em dez horas... Londres, Manchester e Liverpool explodem. “Riots”, motins, “the mob”, vandalismo.
Túnis, 2011: Tarek Mohamed Bouazizi vendia verduras com a mãe num carrinho pelas ruas. Foi preso, espancado, humilhado. Perde o carrinho, o “ponto” e possibilidade de ganhar 75 dólares por mês, com que sustentava sua família. Tarek, desesperado, ateia fogo ao próprio corpo. Mas, é Túnis que queima...
Começava a Primavera Árabe!
O desemprego, a exclusão social e um forte viés racista e xenófobo são os elementos centrais na revolta dos jovens no coração do Ocidente. No Oriente Médio, o rastilho de pólvora acesso por Tarek incendia as ditaduras: Túnis, Alexandria, Cairo, Benghazi, Trípoli, Rabat, Bahrein, Iêmen e, então, a explosão na Síria e na Turquia.
Eram a emergência de uma insuspeita “primavera” dos povos.
Velhas ditaduras, regimes cleptocráticos, onde a corrupção, o puro e simples roubo dos recursos públicos aliava-se com a opressão de Ben Alis, Moubaraks e Gadhafis. Em todas as ocasiões a um elemento em comum, que une Londres a Benghazi, Paris ao Cairo e Túnis a Nova York: a violência policial. Em todos os lugares: cops fucks!
Bem perto de nós, no Chile, os jovens, em especial secundaristas, já estavam nas ruas desde 2011, protestando contra a segregação social embutida no “milagre chileno” herdado dos tempos da ditadura de Pinochet. Para o empresário-presidente, em baixa, são tão somente vândalos.
Pobres países, pobre gente. No Brasil, um país pacífico e um povo bom, a coisa é diferente. A índole pacifica, cristã e tolerante do povo brasileiro e o jeitinho, a conversa “na boa”, o “sangue bom”, o chopp na esquina com o “irmão de fé, camarada” nos fazem diferentes.
Numa manhã de abril (de 2013) um colega da France Press me ligava e indagava da possibilidade de uma “primavera brasileira”. Era estranha a pergunta: o país vivia, e vive, um momento de quase pleno emprego, de ascensão de novos grupos sociais e da possibilidade do governo, malgrado a crise, ainda podia distribuir bondades sociais como a PEC do Trabalho Doméstico.
Além disso, o movimento social, a sociedade organizada, é forte. Ao dizer tais palavras, num francês de rua, elas me soavam tão vazias que eu mesmo me desmentia:  “... em fait, le mouvemment populaire au Brésil a été domestique...” Aspas. “ASPAS”! Eu me pegava estrangeiro, estranho, falso. Havia um outro lado, um lado oculto da Lua, onde a luz do conforto não batia. Havia um espaço sombrio, onde viviam Diallo, Louima, Mark e Tarek, logo aqui, na minha esquina.
Eu sabia. A chamada sociedade organizada, que fora domesticada durante longos anos de controle por partidos e organizações que agora são governos, também já sabia. E quando o fogo começou, faltaram à missa!
 “O Brasil Acordou”
“A gente Acordou”
“O Gigante desperta”
Eram dezenas de cartazes na Avenida Paulista, na Cinelândia. Que pena, não houve batismo, uns ficaram sem padrinhos e outros, viram só a banda passar!
Havia, é claro, os donos da “Revolução”. De preferência ordeira, organizada em alas, com porta bandeira e mestre sala, todos com cargos comissionados com crachá e boné. Havia nostalgia. Havia raiva por perder o monopólio de 1968. Enfim, este ano terminou, acabou e levou suas lendas. E que os vivos de 1968 enterrem os mortos de 1968.
Quantos mortos dirigem o Estado? Quantos são senadores e deputados, governadores e prefeitos e pontificam: “- conosco era diferente: tínhamos uma agenda, líderes e organização”. E converteram o sonho em rotina, a transformação em cooptação, o novo em velho-novo e o passado em anistia!
Emprego, ascensão da “nova classe média”, Bolsa Família... Temos até a Copa do Mundo aqui! Jogo jogado, havia trabalho e futebol. Panis et circus! Praia no fim de semana e mesmo no boteco, uma boa cerveja. As ruas entupidas de carros financiados a perder de vista...
Pois é, mas havia outro lado: trens lotados, parados dia sim e outro também. Filas nos hospitais. Crianças não atendidas, nas escolas e nas Upas. Erros, esperas, filas... Descaso. Sopa na veia em vez de soro! Três horas de busão até o trabalho. Passagens urbanas mais caras que em Paris ou Berlim.
 “Que vergonha, Passagem mais cara que maconha!”
E eis que se erguem as “arenas”. Quem por diabo inventou isso? Estádio é estádio, o Maraca é o Maracá, é pronto! Mas, lá se foi o Maracanã, lá se foi a aldeia dos índios e lá se foi a escola, tudo triturado e cuspido em forma de um estacionamento para a “arena” Mário Filho! Pessoas excluídas, espaço apropriado e gerido para o outro.
Remoções, aluguéis em espiral, expulsão para as periferias... Onde o busão não chega; o trem atrasa. Quebra. Para. A Upa não atende e fecha no feriado nacional, na esperança que a criança seja imune aos dias santos e de guarda.
Uma feroz disputa se trava entre projetos concorrentes de gestão do espaço, dos serviços e dos recursos gerados pelo trabalho do povo inteiro.
 “Seu filho está doente?
Leve-o a um estádio”
Ou
“Queremos Hospital
Padrão Fifa”
Que cidade se quer? Um Rio-vitrine; um Rio-congressos internacionais; um Rio-de cais em “Y” que rouba o céu e come o mar? Ou uma Sampa-escritórios; uma Sampa-feira internacional; uma Sampa-fila-sem-fim-de-engarrafamentos?
E quem mora aqui? Ou lá, ou acolá? Pouco importa: Bêagá, Rio, Sampa ou Poa! A luta é pelo espaço, o território, transformado em negócio, limpo, asséptico, um “banho de ordem”. O prefeito regula a mesa do bar. Regula o banco da praça. Regula o bloco de carnaval. Regula o gado no trem. No metrô. No busão. Regula...
Explosão: o passe livre! Subverte, altera, expõe, denuncia, explica: a distância é dinheiro; distância é tempo; a distância é descanso. Lazer. Família. Estudo. Sono: tudo se expropria para a periferia. No perverso, no roubo diário da vida, emerge uma máfia que lucra. Cogumelos roxos, vermelhos e azuis. Nascem como subproduto da expropriação: empresários da viação urbana! As palavras limpam a sujeira. 80, 90, 120, 150 pessoas em pé no busão. Contato, fricção, humilhação.
Alguns dormem, afinal na queda, só resta o paraíso... No trem, no metrô, o metro é quadrado: na regra são 196 pessoas (em pé e sentados), na prática de Paciência, Santa Cruz ou do Santíssimo vem 350 por vagão. Mas, o trem para. A porta não abre, não há água, não há ventilação. Quantas pessoas Adolf Eichmann colocava por vagão nos trens para Auschwitz?
Mas... Ah, sim, tem mais: não tem vagão, o trem não vem... O tempo se alonga, a noite avança. Pessoas se amontoam na Central do Brasil, no coração do Brasil, na traseira do Brasil. O metrô, o ônibus bom, o taxi, a van, a ciclovia, a bicicleta amarelo-surreal, a vida, só circulam para Copacabana!
 “Não é por 20 centavos
É pela Nação”
E o povo brasileiro “guenta”, ah, claro que ele “guenta”, aguenta, releva, espera... Enquanto, o juiz, o deputado, o ministro viajam em jatinhos que eu, que você, que nos todos, pagamos! E se não “guenta”? Tem a Rota, o Core, o Bope, o cop, o fuck!
Rocinha, 14 de junho: Amarildo de Souza, o boi, pedreiro, casado, pai: “levado para interrogatório”, torturado até a morte num próprio público. Suas últimas palavras: “-...me matem que eu não aguento mais!”. Pois é, Amarildo não aguentou! A autoridade declara: “um ponto fora da curva!” Que merda! Quem inventou esta frase deveria ir para uma UPP. Pacificadora! P-A-C-I-F-I-C-A-D-O-R-A! A paz dos cemitérios!
Vila Medeiros, 27 de outubro: São Paulo: Douglas Rodrigues, 17 anos, trabalhador e estudante, passa pela rua com o irmão e o policial “em missão” atira. Ponto fora da curva! Últimas palavras de Douglas: “Por que o senhor atirou em mim?”
Parque Regina, Campo Limpo, Sampa, 26 de outubro: Severino Paulo, cabelereiro, é morto com um tiro de fuzil durante uma “missão policial” dentro de seu local de trabalho. Ponto fora da curva. Severino não falou antes de morrer.
Manguinhos, área pacificada, com uma UPP: o jovem Paulo Roberto Pinheiro, 18 anos, com passagens por uso de drogas, é encontro morto após interrogatório policial. Registro: “sofreu uma queda!” Paulo morreu sozinho, não há registro de ter falado qualquer coisa.
Ponto fora da curva: o Caso de Marli Pereira Soares, 1979; a Chacina de Acari, O Caso Marcellus Gordilho, em 1987; a Chacina de Vigário Geral, em 1993; a Chacina da Candelária, em 1993; a chacina da Favela da Maré, 2013.
Num “post” alguém diz: você errou, não foi “chacina’, foi “faxina”!
Que sorte que o povo brasileiro é pacifico e só o black bloc é violento!
Francisco Carlos Teixeira - Colunista da 'Carta Maior'

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