Por
ofício, estudei os recentes motins de jovens em Paris, durante 2005, e Londres,
em 2011. Perplexidade. Os melhores padrões de vida, as perfeitas democracias
O ministro
francês – que pedia a expulsão dos ciganos e dos africanos – fala nos jornais
da ingratidão “escória”, “des scelerates”, “canailles” ... Em Londres a
poderosa BBC (envolvida em escândalos) fala na incompreensível revolta da “ the
mob” ... A televisão interrompe um senhor que falava em desemprego e no
fechamento dos centros sociais em Totenham... Não havia espaço na pauta para a
pobreza. A ordem é perfeita, a austeridade é necessária e o desemprego
inevitável.
Os
impostos públicos, enquanto isso, salvam os bancos. Revigoram as montadoras,
que exportam para a China ou os países árabes. A robótica substitui os
trabalhadores.
Silêncio.
Qual a taxa real de desemprego em Madrid, Paris ou Londres: 20, 25%? E entre os
jovens: em Tottenham, onde explodem os “motins”, em 2011, é de 40% e em Madrid
de 47%! Nos arredores de Paris as razias da polícia escolhem invariavelmente
negros, árabes e mestiços como alvos de prisões de “averiguação”.
No auge da
crise econômica global emerge o mal-estar, o medo entre as classes possuidoras.
A cura: “Tolerância Zero”. Formula genérica, barata e que dissolve ao bater. Do
coração da América, a fascistização das polícias emergem como garantia da
“ordem” e da “austeridade”. Tolerância zero, todos repetem. O que esquecem, o
que se cala, o que se esconde?
Brooklyn,
1998: Abner Louima, negro, casado, pai de uma menina, 29 anos, emigrante
haitiano legalmente nos EUA, encontrado em área “suspeita”, onde morava, é
torturado até a morte em uma delegacia de Nova York. Abner foi estuprado
inúmeras vezes dentro da delegacia. Os policias usavam um cabo de vassoura.
Bronx,
1999: Amadou Diallo, negro, emigrante, 22 anos, morto em frente ao seu prédio.
A polícia “entendeu” que um negro procurando uma chave nos bolsos era um
“invasor”. Foram disparados 41 tiros num jovem desarmado.
Mas, quem
lembra? Quem já ouviu falar nestes nomes? Os que pedem “Tolerância Zero?
Tudo
poderia ser um acidente, uma questão da conhecida polícia de Nova York.
Mas, não
foi, não é, assim.
Clichy-sur-Bois,
2005: Bouna Traoré, 15 anos e Zayed Benna, 17 anos, morrem durante uma
perseguição policial. Voltavam do futebol e iam sofrer uma “dura” da polícia.
Mais uma. Humilhação, ofensas, prisão. Acusações: desacato e auto de
resistência. Ambos mortos.
Tottenham,
bairro periférico de Londres: Mark Duggan, 29 anos, mestiço, desempregado e
torcedor do Tottenham ouve música alto. Abordagem policial. A “dura”. Mark é
morto. A polícia de Sua Majestade falsifica um “auto de resistência”,
desmascarado em dez horas... Londres, Manchester e Liverpool explodem. “Riots”,
motins, “the mob”, vandalismo.
Túnis,
2011: Tarek Mohamed Bouazizi vendia verduras com a mãe num carrinho pelas ruas.
Foi preso, espancado, humilhado. Perde o carrinho, o “ponto” e possibilidade de
ganhar 75 dólares por mês, com que sustentava sua família. Tarek, desesperado,
ateia fogo ao próprio corpo. Mas, é Túnis que queima...
Começava a
Primavera Árabe!
O
desemprego, a exclusão social e um forte viés racista e xenófobo são os
elementos centrais na revolta dos jovens no coração do Ocidente. No Oriente
Médio, o rastilho de pólvora acesso por Tarek incendia as ditaduras: Túnis, Alexandria,
Cairo, Benghazi, Trípoli, Rabat, Bahrein, Iêmen e, então, a explosão na Síria e
na Turquia.
Eram a
emergência de uma insuspeita “primavera” dos povos.
Velhas
ditaduras, regimes cleptocráticos, onde a corrupção, o puro e simples roubo dos
recursos públicos aliava-se com a opressão de Ben Alis, Moubaraks e Gadhafis.
Em todas as ocasiões a um elemento em comum, que une Londres a Benghazi, Paris
ao Cairo e Túnis a Nova York: a violência policial. Em todos os lugares: cops
fucks!
Bem perto
de nós, no Chile, os jovens, em especial secundaristas, já estavam nas ruas
desde 2011, protestando contra a segregação social embutida no “milagre
chileno” herdado dos tempos da ditadura de Pinochet. Para o
empresário-presidente, em baixa, são tão somente vândalos.
Pobres
países, pobre gente. No Brasil, um país pacífico e um povo bom, a coisa é
diferente. A índole pacifica, cristã e tolerante do povo brasileiro e o
jeitinho, a conversa “na boa”, o “sangue bom”, o chopp na esquina com o “irmão
de fé, camarada” nos fazem diferentes.
Numa manhã
de abril (de 2013) um colega da France Press me ligava e indagava da
possibilidade de uma “primavera brasileira”. Era estranha a pergunta: o país
vivia, e vive, um momento de quase pleno emprego, de ascensão de novos grupos sociais
e da possibilidade do governo, malgrado a crise, ainda podia distribuir
bondades sociais como a PEC do Trabalho Doméstico.
Além
disso, o movimento social, a sociedade organizada, é forte. Ao dizer tais
palavras, num francês de rua, elas me soavam tão vazias que eu mesmo me
desmentia: “... em fait, le mouvemment
populaire au Brésil a été domestique...” Aspas. “ASPAS”! Eu me pegava
estrangeiro, estranho, falso. Havia um outro lado, um lado oculto da Lua, onde
a luz do conforto não batia. Havia um espaço sombrio, onde viviam Diallo,
Louima, Mark e Tarek, logo aqui, na minha esquina.
Eu sabia.
A chamada sociedade organizada, que fora domesticada durante longos anos de
controle por partidos e organizações que agora são governos, também já sabia. E
quando o fogo começou, faltaram à missa!
“O Brasil Acordou”
“A gente
Acordou”
“O Gigante
desperta”
Eram
dezenas de cartazes na Avenida Paulista, na Cinelândia. Que pena, não houve
batismo, uns ficaram sem padrinhos e outros, viram só a banda passar!
Havia, é
claro, os donos da “Revolução”. De preferência ordeira, organizada em alas, com
porta bandeira e mestre sala, todos com cargos comissionados com crachá e boné.
Havia nostalgia. Havia raiva por perder o monopólio de 1968. Enfim, este ano
terminou, acabou e levou suas lendas. E que os vivos de 1968 enterrem os mortos
de 1968.
Quantos
mortos dirigem o Estado? Quantos são senadores e deputados, governadores e
prefeitos e pontificam: “- conosco era diferente: tínhamos uma agenda, líderes
e organização”. E converteram o sonho em rotina, a transformação em cooptação,
o novo em velho-novo e o passado em anistia!
Emprego,
ascensão da “nova classe média”, Bolsa Família... Temos até a Copa do Mundo
aqui! Jogo jogado, havia trabalho e futebol. Panis et circus! Praia no fim de
semana e mesmo no boteco, uma boa cerveja. As ruas entupidas de carros
financiados a perder de vista...
Pois é,
mas havia outro lado: trens lotados, parados dia sim e outro também. Filas nos
hospitais. Crianças não atendidas, nas escolas e nas Upas. Erros, esperas,
filas... Descaso. Sopa na veia em vez de soro! Três horas de busão até o
trabalho. Passagens urbanas mais caras que em Paris ou Berlim.
“Que vergonha, Passagem mais cara que
maconha!”
E eis que
se erguem as “arenas”. Quem por diabo inventou isso? Estádio é estádio, o
Maraca é o Maracá, é pronto! Mas, lá se foi o Maracanã, lá se foi a aldeia dos
índios e lá se foi a escola, tudo triturado e cuspido em forma de um
estacionamento para a “arena” Mário Filho! Pessoas excluídas, espaço apropriado
e gerido para o outro.
Remoções,
aluguéis em espiral, expulsão para as periferias... Onde o busão não chega; o
trem atrasa. Quebra. Para. A Upa não atende e fecha no feriado nacional, na
esperança que a criança seja imune aos dias santos e de guarda.
Uma feroz
disputa se trava entre projetos concorrentes de gestão do espaço, dos serviços
e dos recursos gerados pelo trabalho do povo inteiro.
“Seu filho está doente?
Leve-o a
um estádio”
Ou
“Queremos
Hospital
Padrão
Fifa”
Que cidade
se quer? Um Rio-vitrine; um Rio-congressos internacionais; um Rio-de cais em
“Y” que rouba o céu e come o mar? Ou uma Sampa-escritórios; uma Sampa-feira
internacional; uma Sampa-fila-sem-fim-de-engarrafamentos?
E quem mora
aqui? Ou lá, ou acolá? Pouco importa: Bêagá, Rio, Sampa ou Poa! A luta é pelo
espaço, o território, transformado em negócio, limpo, asséptico, um “banho de
ordem”. O prefeito regula a mesa do bar. Regula o banco da praça. Regula o
bloco de carnaval. Regula o gado no trem. No metrô. No busão. Regula...
Explosão:
o passe livre! Subverte, altera, expõe, denuncia, explica: a distância é
dinheiro; distância é tempo; a distância é descanso. Lazer. Família. Estudo.
Sono: tudo se expropria para a periferia. No perverso, no roubo diário da vida,
emerge uma máfia que lucra. Cogumelos roxos, vermelhos e azuis. Nascem como
subproduto da expropriação: empresários da viação urbana! As palavras limpam a
sujeira. 80, 90, 120, 150 pessoas em pé no busão. Contato, fricção, humilhação.
Alguns
dormem, afinal na queda, só resta o paraíso... No trem, no metrô, o metro é
quadrado: na regra são 196 pessoas (em pé e sentados), na prática de Paciência,
Santa Cruz ou do Santíssimo vem 350 por vagão. Mas, o trem para. A porta não abre,
não há água, não há ventilação. Quantas pessoas Adolf Eichmann colocava por
vagão nos trens para Auschwitz?
Mas... Ah,
sim, tem mais: não tem vagão, o trem não vem... O tempo se alonga, a noite
avança. Pessoas se amontoam na Central do Brasil, no coração do Brasil, na
traseira do Brasil. O metrô, o ônibus bom, o taxi, a van, a ciclovia, a
bicicleta amarelo-surreal, a vida, só circulam para Copacabana!
“Não é por 20 centavos
É pela
Nação”
E o povo
brasileiro “guenta”, ah, claro que ele “guenta”, aguenta, releva, espera...
Enquanto, o juiz, o deputado, o ministro viajam em jatinhos que eu, que você,
que nos todos, pagamos! E se não “guenta”? Tem a Rota, o Core, o Bope, o cop, o
fuck!
Rocinha,
14 de junho: Amarildo de Souza, o boi, pedreiro, casado, pai: “levado para
interrogatório”, torturado até a morte num próprio público. Suas últimas
palavras: “-...me matem que eu não aguento mais!”. Pois é, Amarildo não
aguentou! A autoridade declara: “um ponto fora da curva!” Que merda! Quem
inventou esta frase deveria ir para uma UPP. Pacificadora!
P-A-C-I-F-I-C-A-D-O-R-A! A paz dos cemitérios!
Vila
Medeiros, 27 de outubro: São Paulo: Douglas Rodrigues, 17 anos, trabalhador e
estudante, passa pela rua com o irmão e o policial “em missão” atira. Ponto
fora da curva! Últimas palavras de Douglas: “Por que o senhor atirou em mim?”
Parque
Regina, Campo Limpo, Sampa, 26 de outubro: Severino Paulo, cabelereiro, é morto
com um tiro de fuzil durante uma “missão policial” dentro de seu local de
trabalho. Ponto fora da curva. Severino não falou antes de morrer.
Manguinhos,
área pacificada, com uma UPP: o jovem Paulo Roberto Pinheiro, 18 anos, com
passagens por uso de drogas, é encontro morto após interrogatório policial.
Registro: “sofreu uma queda!” Paulo morreu sozinho, não há registro de ter
falado qualquer coisa.
Ponto fora
da curva: o Caso de Marli Pereira Soares, 1979; a Chacina de Acari, O Caso
Marcellus Gordilho, em 1987; a Chacina de Vigário Geral, em 1993; a Chacina da
Candelária, em 1993; a chacina da Favela da Maré, 2013.
Num “post”
alguém diz: você errou, não foi “chacina’, foi “faxina”!
Que sorte
que o povo brasileiro é pacifico e só o black bloc é violento!
Francisco
Carlos Teixeira - Colunista da 'Carta Maior'
Nenhum comentário:
Postar um comentário