A PEC do
Trabalho Escravo, proposta de emenda constitucional que prevê o confisco de
propriedades rurais e urbanas em que esse crime for flagrado e sua destinação à
reforma agrária e a programas de habitação popular, está para ser votada no
Senado nesta semana.
Para quem
acompanha a ideia, apresentada pela primeira vez no Congresso Nacional há 18
anos, pode estar se perguntando: “ah, vá!
Mas não tem truque por trás dessa notícia boa?'' Tem sim, daí reside o
problema.
A pressão
de governo federal, parlamentares favoráveis à proposta, sociedade civil,
sindicatos, artistas e intelectuais e algumas entidades que reúnem empresas
conseguiu aprovar a proposta em segundo turno na Câmara, em maio do ano
passado, e a pautar o tema no Senado. A matéria teve que voltar para lá pois
sofreu modificações por deputados federais, em 2004, antes da aprovação em
primeiro turno.
Os
contrários à ideia, porém, bateram o pé: a PEC só seria colocada em votação
pelos senadores caso uma regulamentação fosse discutida antes, a fim de ser
aprovada logo após a votação da PEC. Ou seja, se os termos e procedimentos para
o confisco fossem colocados no papel. Até aí, tudo bem.
Mas, no
meio do caminho, o senador Romero Jucá (PMDB-RR), relator do projeto de lei
para a regulamentação, atendeu ao pedido da bancada ruralista e usou um
conceito diferente de trabalho escravo do que aquele que está no artigo 149 do
Código Penal. Uma definição mais restrita.
É,
garotada… É isso mesmo que vocês leram.
Para
ajudar a entender, façamos paralelos: aceita-se punir casos de estupro. Mas só
nos casos em que a vítima for ameaçada com arma de fogo. Caso contrário, não
vale. Ou aceita-se punir homicídios. Desde que o bandido tenha gravado um vídeo
com o assalto e postado no YouTube ou em seu Instagram. Enfim, aceitamos criar
uma nova lei para punir o crime desde que seja usada a nossa definição e não
aquela que está na lei vigente. Bizarro, né?
De acordo
com o artigo 149, são elementos que determinam trabalho análogo ao de
escravo: condições degradantes de trabalho
(incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos
fundamentais coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador), jornada
exaustiva (em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga
de trabalho que acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida), trabalho
forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico,
ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o
trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele).
(Um
pequeno parênteses: não é apenas a ausência de liberdade que faz um trabalhador
escravo, mas sim de dignidade. Todo ser humano nasce igual em direito à mesma dignidade. E,
portanto, nascemos todos com os mesmos direitos fundamentais que, quando
violados, nos arrancam dessa condição e nos transformam em coisas, instrumentos
descartáveis de trabalho.)
A
legislação brasileira, pasmem, é de vanguarda, pois leva isso em conta. Quando
um trabalhador mantém sua liberdade, mas é excluído de condições mínimas de
dignidade, temos também caracterizado trabalho escravo. Qualquer pessoa que
veja as fotos de um resgate de escravos entende isso perfeitamente. Mas alguns
senadores, não.
Vira e
mexe ouve-se o argumento de que fiscais do trabalho consideram como trabalho
escravo a pequena distância entre beliches, a espessura de colchões, a falta de
copos descartáveis. Cascata da grossa. Afinal de contas, qualquer fiscalização
do governo é obrigada a aplicar multas por todos os problemas encontrados. Mas
até uma ostra saudável sabe que não são essas as autuações que configuram
trabalho escravo.
Colega
jornalistas de Brasília, se ouvir esse bla-bla-blá, peça para o deputado
comentar sobre o teor de outras 30 autuações que o fazendeiro em questão deve
ter recebido. É esse conjunto, que exclui o trabalhador de sua dignidade que
configura trabalho escravo. Ou solicite-as à Secretaria Nacional de Inspeção do
Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego. Já fizemos uma aposta: qualquer
pessoa que provar que um caso de trabalho escravo se configurou apenas pelo
beliche ou o copo plástico, a gente encerra os trabalhos.
Ruralistas
também disseram que querem que o Brasil use a Organização Internacional do
Trabalho como referência. Ótimo, podem preparar a passagem do diretor geral da
organização, Guy Ryder, que fica em Genebra, na Suíça, que ele vai dizer que
apoia a definição brasileira. Ou batam na porta do escritório da instituição,
em Brasília, que a diretora, Laís Abramo, vai ratificar a mesma posição.
Ao mesmo
tempo, os ruralistas entortaram uma
declaração descontextualizada da armênia Gulnara Shahinian, relatora para
formas contemporâneas de escravidão das Nações Unidas, para afirmar que o
Brasil precisa deixar claro a definição de escravidão. Outra conversa para boi
dormir. Sabendo que suas palavras estavam sendo distorcidas, ela enviou um
comunicado ao Brasil, apoiando o conceito brasileiro, repudiando as ditorções
sobre sua opinião e solicitando a aprovação da PEC, dizendo que ela é a mais
importante lei brasileira para erradicar a escravidão, usando-se, é claro, o
conceito existente na legislação.
Tentando
essas manobras, a bancada ruralista promove “insegurança jurídica'' no campo e
na cidade – expressão que o grupo de parlamentares que defende os interesses de
fazendeiros tanto gosta de usar. Eles afirmam que não há clareza sobre o
conceito de trabalho escravo, porque não concordam com o conceito de trabalho
escravo. Há até um manual do Ministério do Trabalho e Emprego explicando o que
é e o que não é trabalho escravo, reunindo as normas e instruções normativas a
respeito, que estão acessíveis a todos os empresários para download na
internet. Para lê-lo, basta clicar aqui.
Mais de 3
mil propriedades foram fiscalizadas por denúncias de trabalho escravo desde
1995, quando o Brasil criou o seu sistema de combate ao crime. O país tem mais
de 4,5 milhões de propriedades rurais. Mais de 44 mil pessoas ganharam a
liberdade desde então, em um universo de quase 18 milhões de trabalhadores no
campo. Se a grande maioria de empresários, no campo e na cidade, segue a lei e
não utiliza trabalho escravo, a quem interessa tornar a legislação mais frouxa?
A quem
interessa proteger quem promove a concorrência desleal e o dumping social,
cortando custos ilegalmente para ganhar competitividade através da exploração
de seres humanos. E, de lambuja, manchar o nome dos nossos produtos no
exterior?
O ponto é
o seguinte: ninguém em sã consciência defende trabalho escravo. Mesmo as mais
aguerridas lideranças ruralistas no Senado Federal repudiam isso. E, tenho
certeza, no seu íntimo ficam possessos quando vêem alguns “empresários'' usando
desse expediente espertinho para passar a perna nos outros que penam, mas
seguem a lei. Creio que alguns desses senadores não podem se insurgir contra
isso, porque representam um setor que tem bons e maus, como todo o setor
econômico. Porém, nivelam por baixo, ao invés de isolar os que cometem atos
criminosos.
Além
disso, o que está em jogo é a propriedade da terra, considerada inviolável por
parte dos seus representados – os proprietários rurais. Dessa forma, a PEC
57A/1999 é vista (através de uma análise muito simplista) como um risco à
existência da própria classe ruralista e, portanto, lutar contra a sua
aprovação ou pela sua aprovação enfraquecida é fundamental. Isso coloca, lado a
lado, empresários que atuam dentro da lei e os que cometem crimes, os que pagam
impostos e os que os sonegam, os que cumprem contratos de trabalho e aqueles
que nem os têm. Os que atuam dentro das regras do mercado e os que preferem a
anomia.
Se
analisarmos o Código Penal brasileiro, veremos que o direito à vida e a
dignidade, na média, valem menos que o direito à propriedade. Só assim, no
campo simbólico, é que se pode compreender a importância do trâmite dessa
proposta por ambos os lados da questão. Pois, na prática, a aplicação da lei
encontrará várias dificuldades nos tribunais, sendo menos ampla do que desejam
as entidades que atuam no combate ao trabalho escravo.
Governo
federal e parlamentares vão tentar corrigir a proposta de regulamentação
deturpada do senador Romero Jucá após a aprovação da PEC do Trabalho Escravo
para que a medida não se torne um ovo de serpente. Poucas vezes a aprovação de
uma medida tão simples representou tanto simbolicamente.
É só uma
regulamentação, mas nela repousa a luta entre o respeito à dignidade humana e a
barbárie.
Agora, se
o conceito de trabalho escravo que leve em conta a dignidade do ser humano, que
leve em conta ele não ser tratado como instrumento descartável de trabalho,
continuar incomodando, podemos também discutir a revogação do artigo 149 do
Código Penal, que trata do tema. Ou, melhor, por que não revogamos de uma vez a
lei assinada por Isabel em 13 de maio de 1888?
Fazer
algumas emendas à Lei Áurea seria apenas um pequeno sacrifício dos
trabalhadores para reduzir a “insegurança jurídica'' e impulsionar o progresso.
Fonte:
http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2013/11/03/prepara-se-no-senado-um-golpe-contra-os-trabalhadores-do-pais/
Nenhum comentário:
Postar um comentário