Sermão de Quarta-Feira de Cinza
(Padre Antônio Vieira -Em
Roma, na Igreja de S. Antônio dos Portuguêses. Ano de 1670).
Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris.
(Lembra-te homem, que és pó, e em pó te hás de converter)
I
O pó futuro, em que nos
havemos de converter, é visível à vista, mas o pó presente, o pó que somos,
como poderemos entender essa verdade? A resposta a essa dúvida
será a matéria do presente discurso.
Duas coisas prega hoje a
Igreja a todos os mortais, ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas
certas. Mas uma de tal maneira certa e
evidente, que não é necessário entendimento para crer: outra de tal maneira
certa e dificultosa, que nenhum entendimento basta para a alcançar. Uma é
presente, outra futura, mas a futura vêem-na os olhos, a presente não a alcança
o entendimento. E que duas coisas enigmáticas são estas? Pulvis es, tu in pulverem reverteris:
Sois pó, e em pó vos haveis de converter. — Sois pó, é a presente; em pó vos haveis de converter, é a futura. O
pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, vêem-no os olhos; o pó
presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o entendimento o alcança.
Que me diga a Igreja que hei de ser pó:
In pulverem reverteris, não é necessário fé nem entendimento para o crer. Naquelas sepulturas, ou abertas ou
cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas letras? Que cobrem aquelas
pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há é o nada
que havemos de ser: tudo pó. Vamos, para maior exemplo e maior horror, a
esses sepulcros recentes do Vaticano. Se perguntardes de quem são pó aquelas
cinzas, responder-vos-ão os epitáfios, que só as distinguem: Aquele pó foi
Urbano, aquele pó foi Inocêncio, aquele pó foi Alexandre, e este que ainda não
está de todo desfeito, foi Clemente. De
sorte que para eu crer que hei de ser pó, não é necessário fé, nem
entendimento, basta a vista. Mas que me diga e me pregue hoje a mesma
Igreja, regra da fé e da verdade, que não
só hei de ser pó de futuro, senão que já sou pó de presente: Pulvis es? Como o pode alcançar o
entendimento, se os olhos estão vendo o contrário? É possível que estes olhos
que vêem, estes ouvidos que ouvem, esta língua que fala, estas mãos e estes
braços que se movem, estes pés que andam e pisam, tudo isto, já hoje é pó: Pulvis es? Argumento à Igreja com a
mesma Igreja: Memento homo. A Igreja
diz-me, e supõe que sou homem: logo não sou pó. O homem é uma substância
vivente, sensitiva, racional. O pó vive? Não. Pois como é pó o vivente? O pó
sente? Não. Pois como é pó o sensitivo? O pó entende e discorre? Não. Pois como
é pó o racional? Enfim, se me concedem que sou homem: Memento homo, como me
pregam que sou pó: Quia pulvis es?
Nenhuma coisa nos podia estar melhor que não ter resposta nem solução esta
dúvida. Mas a resposta e a solução dela será a matéria do nosso discurso. Para
que eu acerte a declarar esta dificultosa verdade, e todos nós saibamos
aproveitar deste tão importante desengano, peçamos àquela Senhora, que só foi
exceção deste pó, se digne de nos alcançar graça.
Ave Maria.
II
O homem foi pó e há de ser pó, logo é pó, pois tudo o que vive não é o
que é, é o que foi e o que há de ser. O exemplo da vara de Arão que se converte
em serpente. Deus se definiu a Moisés como aquele que é o que é, porque só ele
é o que foi e o que há de ser. Se alguém puder afirmar o mesmo de si próprio
também é digno de ser adorado.
Enfim, senhores, não só havemos de ser pó, mas já somos pó: Pulvis es. Todos os embargos que se
podiam pôr contra esta sentença universal são os que ouvistes. Porém como ela
foi pronunciada definitiva e declaradamente por Deus ao primeiro homem e a
todos seus descendestes, nem admite interpretação nem pode ter dúvida. Mas como
pode ser? Como pode ser que eu que o digo, vós que o ouvis, e todos os que
vivemos sejamos já pó: Pulvis es? A
razão é esta. O homem, em qualquer
estado que esteja, é certo que foi pó, e há de tornar a ser pó. Foi pó, e há de
tornar a ser pó? Logo é pó. Porque tudo o que vive nesta vida, não é o que é: é
o que foi e o que há de ser. Ora vede.
No dia aprazado em que Moisés e os magos do Egito haviam de fazer prova
e ostentação de seus poderes diante do rei Faraó, Moisés estava só com Arão de
uma parte, e todos os magos da outra. Deu sinal o rei, mandou Moisés a Arão que
lançasse a sua vara em terra, e converteu-se subitamente em uma serpente viva e
tão temerosa, como aquela de que o mesmo Moisés no deserto se não dava por
seguro. Fizeram todos os magos o mesmo: começam a saltar e a ferver serpentes,
porém a de Moisés investiu e avançou a todas elas intrépida e senhorilmente, e
assim, vivas como estavam, sem matar nem despedaçar, comeu e engoliu a todas.
Refere o caso a Escritura, e diz estas palavras: Devoravit virga Aaron virgas eorum: a vara de Arão comeu e engoliu
as dos egípcios (Ex 7, 12) — Parece que não havia de dizer: a vara, senão: a
serpente. A vara não tinha boca para comer, nem dentes para mastigar, nem
garganta para engolir, nem estômago para recolher tanta multidão de serpentes.
A serpente, em que a vara se converteu, sim, porque era um dragão vivo, voraz e
terrível, capaz de tamanha batalha e de tanta façanha. Pois, por que diz o
texto que a vara foi a que fez tudo isto, e não a serpente? Porque cada um é o que foi e o que há de
ser. A vara de Moisés, antes de ser serpente, foi vara, e depois de ser
serpente, tornou a ser vara; a serpente que foi vara e há de tornar a ser vara
não é serpente, é vara: Virga Aaron.
É verdade que a serpente naquele tempo estava viva, e andava, e comia, e
batalhava, e vencia, e triunfava, mas como tinha sido vara, e havia de tornar a
ser vara, não era o que era: era o que fora e o que havia de ser: Virga.
Ah! serpentes astutas do mundo vivas, e tão vivas! Não vos fieis da
vossa vida nem da vossa viveza; não sois o que cuidais nem o que sois: sois o
que fostes e o que haveis de ser. Por mais que vós vejais agora um dragão
coroado e vestido de armas douradas, com a cauda levantada e retorcida
açoitando os ventos, o peito inchado, as asas estendidas, o colo encrespado e
soberbo, a boca aberta, dentes agudos, língua trifulca, olhos cintilantes,
garras e unhas rompentes, por mais que se veja esse dragão já tremular na
bandeira dos lacedemônios, já passear nos jardins das hespérides, já guardar os
tesouros de Midas, ou seja dragão volante entre os meteoros, ou dragão de
estrelas entre as constelações, ou dragão de divindade afetada entre as
hierarquias, se foi vara, e há de ser vara, é vara; se foi terra, e há de ser
terra, é terra; se foi nada, e há de ser nada, é nada, porque tudo o que vive
neste mundo é o que foi e o que há de ser. Só
Deus é o que é, mas por isso mesmo. Por isso mesmo. Notai.
Apareceu Deus ao mesmo Moisés nos desertos de Madiã; manda-o que leve a
nova da liberdade ao povo cativo, e perguntando Moisés quem havia de dizer que
o mandava, pare que lhe dessem crédito, respondeu Deus e definiu-se: Ego
sum qui sum: Eu sou o que sou
(Ex 3, 14). Dirás que o que é te manda: Qui est misit me ad vos? Qui est? O que
é? E que nome, ou que distinção é esta? Também Moisés é o que é, também
Faraó é o que é, também o povo, com que há de falar, é o que é. Pois se este
nome e esta definição toca a todos e a tudo, como a toma Deus só por sua? E se
todos são o que são, e cada um é o que é, por que diz Deus não só como
atributo, senão como essência própria da sua divindade: Ego sum qui sum: Eu sou o que
sou? Excelentemente S. Jerônimo, respondendo com as palavras do Apocalipse:
Qui est, et qui erat, et qui venturus est
[2], Sabeis por que diz Deus: Ego sum qui sum? Sabeis por que só Deus
é o que é? Porque só Deus é o que foi e o que há de ser. Deus é Deus, e foi
Deus, e há de ser Deus; e só quem é o que foi e o que há de ser. é o que é. Qui est, et qui erat, et qui venturus est.
Ego sum qui sum. De maneira que quem é o que foi e o que há de ser, é o que
é, e este é só Deus. Quem não é o que foi e o que há de ser, não é o que é: é o
que foi e o que há de ser: e esses somos nós. Olhemos para trás: que é o que fomos? Pó. Olhemos para diante: que é o
que havemos de ser? Pó. Fomos pó e havemos de ser pó? Pois isso é o que somos: Pulvis es.
Eu bem sei que também há deuses da terra, e que esta terra onde estamos
foi a pátria comum de todos os deuses, ou próprios, ou estrangeiros. Aqueles
deuses eram de diversos metais; estes são de barro, ou cru ou mal cozido, mas
deuses. Deuses na grandeza, deuses na majestade, deuses no poder, deuses na
adoração, e também deuses no nome: Ego
dixi, dii estis. Mas se houver, que pode haver, se houver algum destes
deuses que cuide ou diga: Ego sum qui sum,
olhe primeiro o que foi e o que há de ser. Se foi Deus, e há de ser Deus, é
Deus: eu o creio e o adoro; mas se não foi Deus, nem há de ser Deus, se foi pó,
e há de ser pó, faça mais caso da sua sepultura que da sua divindade. Assim lho
disse e os desenganou o mesmo Deus que lhes chamou deuses: Ego dixi, dii estis. Vos
autem sicut homines moriemini [3]. Quem
foi pó e há de ser pó, seja o que quiser e quanto quiser, é pó: Pulvis es.
III
Jó define-se como quem foi pó e há de ser pó: Abraão define-se como quem
é pó. O texto sagrado não diz: converter-vos-eis em pó mas tornareis a ser pó. O que chamamos vida não é mais que um
círculo que fazemos de pó a pó.
Parece-me que tenho provado a minha razão e a conseqüência dela. Se a
quereis ver praticada em próprios termos, sou contente. Praticaram este
desengano dois homens que sabiam mais de nós que nós: Abraão e Jó, com outro
memento como o nosso, dizia a Deus: Memento
quaeso, quod sicuit lutum feceris me, et in pulverem deduces me: Lembrai-vos, Senhor, que me fizestes de pó,
e que em pó me haveis de tornar (Jó 10, 9). —Abraão, pedindo licença ou
atrevimento para falar a Deus: Loquar ad
Dominum, cum sim pulvis et cinis: Falar-vos-ei
, Senhor, ainda que sou pó e cinza (Gn 18, 27). — Já vedes a diferença dos
termos que não pode ser maior, nem também mais natural ao nosso intento. Jó diz que foi pó e há de ser pó; Abraão
não diz que foi, nem que há de ser, senão que já é pó: Cum sim pulvis et cinis. Se um destes homens fora morto e outro
vivo, falavam muito propriamente, porque todo o vivo pode dizer: Eu fui pó, e
hei de ser pó; e um morto, se falar, havia de dizer: Eu já sou pó. Mas Abraão que disse isto, não estava
morto, senão vivo, como Jó; e Abraão e Jó não eram de diferente metal, nem de
diferente natureza. Pois se ambos eram da mesma natureza, e ambos estavam
vivos, como diz um que já é pó, e outro não diz que o é, senão que o foi e que
o há de ser? Por isso mesmo. Porque Jó foi pó e há de ser pó, por isso Abraão é
pó. Em Jó falou a morte, em Abraão falou a vida, em ambos a natureza. Um
descreveu-se pelo passado e pelo futuro, o outro definiu-se pelo presente; um
reconheceu o efeito, o outro considerou a causa; um disse o que era, o outro
declarou o porquê. Porque Jó e Abraão e qualquer outro homem foi pó, por isso
já é pó. Fôstes pó e haveis de ser pó como Jó? Pois já sois pó como Abraão: Cum sim pulvis et cinis.
Tudo temos no nosso texto, se bem se considera, porque as segundas
palavras dele não só contêm a declaração, senão também a razão das primeiras. Pulvis
es: sois pó. E por que? Porque in
pulverem reverteris: porque fostes pó e haveis de tornar a ser pó. Esta
é a forca da palavra reverteris, a
qual não só significa o pó que havemos de ser, senão também o pó que somos. Por isso não diz: converteris, converter-vos-eis em pó, senão: reverteris, tornareis a ser o pó que fostes. Quando dizemos que
os mortos se convertem em pó, falamos impropriamente, porque aquilo não é
conversão, é reversão: reverteris. É
tornar a ser na morte o pó que somos no nascimento; é tornar a ser na sepultura
o pó que somos no campo damasceno. E porque somos pó e havemos de tornar a ser
pó: In pulverem reverteris, por isso
já somos pó: Pulvis es. — Não é
exposição minha, senão formalidade do mesmo texto, com que Deus pronunciou a
sentença de morte contra Adão: Donec
revertaris in terram de qua sumptus es: quia pulvis es (Gn 3, 19): — Até que tornes a ser a terra de que
fostes formado, porque és pó.— De maneira que a razão e o porquê de sermos
pó: Quia pulvis es, é porque somos
pó, e havemos de tornar a ser pó: Donec
revertaris in terram de qua sumptus es.
Só parece que se pode opor ou dizer em contrário, que aquele donec: até que, significa tempo em meio
entre o pó que somos e o pó que havemos de ser, e que neste meio tempo não
somos pó. Mas a mesma verdade divina que disse: donec, disse também: pulvis
es. E a razão desta conseqüência está no revertaris, porque a reversão com que tornamos a ser o pó que fomos
começa circularmente, não do último senão do primeiro ponto da vida. Notai.
Esta nossa chamada vida não é mais que um círculo que fazemos de pó a pó: do pó
que fomos ao pó que havemos de ser. Uns fazem o círculo maior, outros menor,
outros mais pequeno, outros mínimo: De utero
translatus ad tumulum [4] Mas, ou o caminho seja largo, ou breve, ou
brevíssimo, como é círculo de pó a pó, sempre e em qualquer parte da vida somos
pó. Quem vai circularmente de um ponto para o mesmo ponto, quanto mais se
aparta dele tanto mais se chega para ele; e quem quanto mais se aparta mais se
chega, não se aparta. O pó que foi nosso princípio, esse mesmo, e não outro, é
o nosso fim, e porque caminhamos circularmente deste pó para este pó, quanto
mais parece que nos apartamos dele, tanto mais nos chegamos para ele; o passo
que nos aparta, esse mesmo nos chega; o dia que faz a vida, esse mesmo a
desfaz. E como esta roda que anda e desanda juntamente sempre nos vai moendo,
sempre somos pó. Por isso, quando Deus intimou a Adão a reversão ou resolução
deste círculo: Donec revertaris, das
premissas: pó foste, e pó serás, — tirou por conseqüência: pó és: Quia pulvis es. Assim que desde o
primeiro instante da vida até o último nos devemos persuadir e assentar
conosco, que não só somos e havemos de ser pó, senão que já o somos, e por isso
mesmo. Foste pó e hás de ser pó? És pó: Pulvis
es.
IV
Se já somos pó, qual a
diferença existente entre vivos e mortos? Os vivos são o pó levantado pelo
vento, os mortos são o pó caído. Adão, feito de pó, recebendo o vento do sopro divino
torna-se vivo. Nas Escrituras, levantar
é viver, cair é morrer. Assim, como distingue Davi, há o pó da morte e o pó da
vida.
Ora, suposto que já somos pó, e não pode deixar de ser, pois Deus o
disse, perguntar-me-eis e com muita
razão, em que nos distinguimos logo os vivos dos mortos? Os mortos são pó, nós
também somos pó: em que nos distinguimos uns dos outros? Distinguimo-nos os
vivos dos mortos, assim como se distingue o pó do pó. Os vivos são pó
levantado, os mortos são pó caído: os vivos são pó que anda, os mortos são pó
que jaz: Hic jacet. Estão essas praças no verão cobertas de pó; dá um
pé-de-vento, levanta-se o pó no ar, e que faz? O que fazem os vivos, e muitos
vivos. Não aquieta o pó, nem pode estar quedo: anda, corre, voa, entra por esta
rua, sai por aquela; já vai adiante, já torna atrás; tudo enche, tudo cobre,
tudo envolve, tudo perturba, tudo cega, tudo penetra, em tudo e por tudo se
mete, sem aquietar, nem sossegar um momento, enquanto o vento dura. Acalmou o
vento, cai o pó, e onde o vento parou, ali fica, ou dentro de casa, ou na rua,
ou em cima de um telhado, ou no mar, ou no rio, ou no monte, ou na campanha.
Não é assim? Assim é. E que pó, e que vento é este? O pó somos nós: Quia pulvis es; o vento é a nossa vida: Quia ventus es vita mea (Jó 7, 7). Deu o
vento, levantou-se o pó; parou o vento, caiu. Deu o vento, eis o pó levantado:
esses são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído: estes são os mortos. Os
vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado, os mortos pó caído; os vivos pó
com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade.
Esta é a distinção, e não há outra.
Nem cuide alguém que é isto metáfora ou comparação, senão realidade
experimentada e certa. Forma Deus de pó aquela primeira estátua, que depois se
chamou corpo de Adão. Assim o diz o texto original: Formavit Deus hominem de
pulvere terrae (Gn 2, 7). A figura era humana e muito primorosamente delineada,
mas a substância ou a matéria não era mais que pó. A cabeça pó, o peito pó, os
braços pó, os olhos, a boca, a língua, o coração, tudo pó. Chega-se pois Deus à
estátua, e que fez? Inspiravit in faciem
ejus: Assoprou-a (Gn 2, 7). E tanto que o vento do assopro deu no pó: Et factus est homo in animam viventem:
eis o pó levantado e vivo; já é homem, já se chama Adão. Ah! pó, se aquietaras
e pararas aí! Mas pó assoprado, e com vento, como havia de aquietar? Ei-lo
abaixo, ei-lo acima, e tanto acima, e tanto abaixo, dando uma tão grande volta,
e tantas voltas. Já senhor do universo, já escravo de si mesmo; já só, já
acompanhado; já nu, já vestido; já coberto de folhas, já de peles; já tentado,
já vencido; já homiziado, já desterrado; já pecador, já penitente, e para maior
penitência, pai, chorando os filhos, lavrando a terra, recolhendo espinhos por
frutos, suando, trabalhando, lidando, fatigando, com tantos vaivens do gosto e da
fortuna, sempre em uma roda viva. Assim andou levantado o pó enquanto durou o
vento. O vento durou muito, porque naquele tempo eram mais largas as vidas, mas
ao fim parou. E que lhe sucedeu no mesmo ponto a Adão? O que sucede ao pó.
Assim como o vento o levantou, e o sustinha, tanto que o vento parou, caiu. Pó
levantado, Adão vivo; pó caído, Adão morto: Et
mortuus est.
Este foi o primeiro pó, e o primeiro vivo, e o primeiro condenado à
morte, e esta é a diferença que há de vivos a mortos, e de pó a pó. Por isso na
Escritura o morrer se chama cair, e o viver levantar-se. O morrer cair: Vos
autem sicut hominas moriemini, et sicut
unus de principibus cadetis [5]. O viver, levantar-se: Adolescens, tibi dico, surge [6]. Se levantados, vivos; se caídos,
mortos; mas ou caídos ou levantados, ou mortos, ou vivos, pó: os levantados pó
da vida, os mortos pó da morte. Assim o entendeu e notou Davi, e esta é a
distinção que fêz quando disse: In
pulvere mortis deduxisti me: Levastes-me, Senhor, ao pó da morte. Não
bastava dizer: In pulverem deduxisti,
assim como: In pulverem reverteris?
Se bastava; mas disse com maior energia: In pulverem mortis: ao pó da morte,
porque há pó da morte, e pó da vida: os vivos, que andamos em pé, somos o pó da
vida: Pulvis es; os mortos, que jazem na sepultura, são o pó da morte: In
pulverem reverteris.
V
O memento dos vivos; lembre-se o pó levantado que há de ser pó caído. O
vento da vida e o vento da fortuna. A estátua de Nabucodonosor: o ouro, a
prata, o bronze, o ferro, tudo se converte em pó de terra. Significado do nome
de Adão. S. Agostinho e a glória de Roma. Roma, a caveira do mundo, ainda está
sujeita a novas destruições. Salomão e o espelho do passado e do futuro.
À vista desta distinção tão verdadeira e deste desengano tão certo, que
posso eu dizer ao nosso pó senão o que lhe diz a Igreja: Memento homo. Dois
mementos hei de fazer hoje ao pó: um memento ao pó levantado, outro memento ao
pó caído; um memento ao pó que somos, outro memento ao pó que havemos de ser;
um memento ao pó que me ouve, outro memento ao pó que não pode ouvir. O
primeiro será o memento dos vivos, o segundo o dos mortos.
Aos vivos, que direi eu? Digo que se lembre o pó levantado que há de ser
pó caído. Levanta-se o pó com o vento da vida, e muito mais com o vento da
fortuna; mas lembre-se o pó que o vento da fortuna não pode durar mais que o
vento da vida, e que pode durar muito menos, porque é mais inconstante. O vento
da vida por mais que cresça, nunca pode chegar a ser bonança; o vento da
fortuna, se cresce, pode chegar a ser tempestade, e tão grande tempestade que
se afogue nela o mesmo vento da vida. Pó levantado, lembra-te outra vez que hás
de ser pó caído, e que tudo há de cair e ser pó contigo. Estátua de Nabuco:
ouro, prata, bronze, ferro, lustre, riqueza, fama, poder, lembra-te que tudo há
de cair de um golpe, e que então se verá o que agora não queremos ver: que tudo
é pó, e pó de terra. Eu não me admiro, senhores, que aquela estátua em um
momento se convertesse toda em pó: era imagem de homem; isso bastava. O que me
admira e admirou sempre é que se convertesse, como diz o texto, em pó de terra:
In favillam aestivae areae (Dn 2,
35). A cabeça da estátua não era de ouro? Pois por que se não converte o ouro
em pó de ouro? O peito e os braços não eram de prata? Por que se não converte a
prata em pó de prata? O ventre não era de bronze, e o demais de ferro? Por que
se não converte o bronze em pó de bronze e o ferro em pó de ferro? Mas o ouro,
a prata, o bronze, o ferro, tudo em pó de terra? Sim. Tudo em pó de terra.
Cuida o ilustre desvanecido que é de ouro, e todo esse resplendor, em caindo,
há de ser pó, e pó de terra. Cuida o rico inchado que é de prata, e toda essa
riqueza em caindo há de ser pó, e pó de terra. Cuida o robusto que é de bronze,
cuida o valente que é de ferro, um confiado, outro arrogante, e toda essa
fortaleza, e toda essa valentia em caindo há de ser pó, e pó de terra: In favillam aestivae areae.
Senhor pó: Nimium ne crede colori
[7]. A pedra que desfez em pó a estátua, é a pedra daquela sepultura. Aquela
pedra, é como a pedra do pintor, que mói todas as cores, e todas as desfaz em
pó. O negro da sotaina, o branco da cota, o pavonaço do mantelete, o vermelho
da púrpura, tudo ali se desfaz em pó. Adão quer dizer ruber, o vermelho, porque
o pó do campo damasceno, de que Adão foi formado, era vermelho, e parece que
escolheu Deus o pó daquela cor tão prezada, para nela, e com ela, desenganar a
todas as cores [8]. Desengane-se a escarlata mais fina, mais alta e mais
coroada, e desenganem-se daí abaixo todas as cores, que todas se hão de moer
naquela pedra e desfazer em pó, e o que é mais, todas em pó da mesma cor. Na
estátua o ouro era amarelo, a prata branca, o bronze verde, o ferro negro, mas
tanto que a tocou a pedra, tudo ficou da mesma cor, tudo da cor da terra: In favillam aestivae areae. O pó
levantado, como vão, quis fazer distinções de pó a pó, e porque não pôde
distinguir a substância, pôs a diferença nas cores. Porém a morte, como
vingadora de todos os agravos da natureza, a todas essas cores faz da mesma
cor, para que não distinga a vaidade e a fortuna os que fez iguais a razão.
Ouvi a S. Agostinho: Respice sepulchra et
vide quis dominus, quis servus, quis pauper, quis dives? Discerne, si potes,
regem a vincto, fortem a debili, pulchrum a deformi [9]: Abri aquelas
sepulturas, diz Agostinho, e vede qual é ali o senhor e qual o servo; qual é
ali o pobre e qual o rico? Discerne, si potes: distingui-me ali, se podeis, o
valente do fraco, o formoso do feio, o rei coroado de ouro do escravo de Argel
carregado de ferros? Distingui-los? Conhecei-los? Não por certo. O grande e o
pequeno, o rico e o pobre, o sábio e o ignorante, o senhor e o escravo, o
príncipe e o cavador, o alemão e o etíope, todos ali são da mesma cor.
Passa S. Agostinho da sua África à nossa Roma, e pergunta assim: Ubi sunt quos ambiebant civium potentatus?
Ubi insuperabiles imperatores? Ubi exercituum duces? Ubi satrapae et tyranni
[10]? Onde estão os cônsules romanos? Onde estão aqueles imperadores e capitães
famosos, que desde o Capitólio mandavam o mundo? Que se fez dos Césares e dos
Pompeus, dos Mários e dos Silas, dos Cipiões e dos Emílios? Os Augustos, os
Cláudios, os Tibérios, os Vespasianos, os Titos, os Trajanos, que é deles? Nunc
omnia pulvis: tudo pó; Nunc omnia favillae: tudo cinza; Nunc in paucis versibus
eorum memoria est.: não resta de todos eles outra memória, mais que os poucos
versos das suas sepulturas. Meu Agostinho, também êsses versos que se liam
então, já os não há: apagaram-se as letras, comeu o tempo as pedras; também as
pedras morrem: Mors etiam saxis, nominibusque venit [11]. Oh! que memento este
para Roma!
Já não digo como até agora: lembra-te homem que és pó levantado e hás de
ser pó caído. O que digo é: lembra-te Roma que és pó levantado, e que és pó
caído juntamente. Olha Roma daqui para baixo, e ver-te-ás caída e sepultada
debaixo de ti; olha Roma de lá para cima, e ver-te-ás levantada e pendente em
cima de ti. Roma sobre Roma, e Roma debaixo de Roma. Nas margens do Tibre, a
Roma que se vê para cima, vê-se também para baixo; mas aquilo são sombras. Aqui
a Roma que se vê em cima, vê-se também embaixo, e não é engano da vista, senão
verdade; a cidade sobre as ruínas, o corpo sobre o cadáver, a Roma viva sobre a
morta. Que coisa é Roma senão um sepulcro de si mesma? Embaixo as cinzas, em
cima a estátua; embaixo os ossos, em cima o vulto. Este vulto, esta majestade,
esta grandeza é a imagem, e só a imagem, do que está debaixo da terra. Ordenou
a Providência divina que Roma fosse tantas vezes destruída, e depois edificada
sobre suas ruínas, para que a cabeça do mundo tivesse uma caveira em que se
ver. Um homem pode-se ver na caveira de outro homem; a cabeça do mundo não se
podia ver senão na sua própria caveira. Que é Roma levantada? A cabeça do
mundo. Que é Roma caída? A caveira do mundo. Que são esses pedaços de Termas e
Coliseus senão os ossos rotos e truncados desta grande caveira? E que são essas
colunas, essas agulhas desenterradas, senão os dentes, mais duros,
desencaixados dela! Oh! que sisuda seria a cabeça do mundo se se visse bem na
sua caveira!
Nabuco, depois de ver a estátua convertida em pó, edificou outra
estátua. Louco! Que é o que te disse o profeta? Tu rex es caput: Tu, rei, és a cabeça da estátua (Dn 2, 38). Pois
se tu és a cabeça, e estás vivo, olhe a cabeça viva para a cabeça defunta, olhe
a cabeça levantada para a cabeça caída, olhe a cabeça para a caveira. Oh! se
Roma fizesse o que não soube fazer Nabuco! Oh! se a cabeça do mundo olhasse
para a caveira do mundo! A caveira é maior que a cabeça para que tenha menos
lugar a vaidade, e maior matéria o desengano. Isto fui, e isto sou? Nisto parou
a grandeza daquele imenso todo, de que hoje sou tão pequena parte? Nisto parou.
E o pior é, Roma minha, se me dás licença para que to diga, que não há de parar
só nisto. Este destroço e estas ruínas que vês tuas, não são as últimas: ainda
te espera outra antes do fim do mundo profetizado nas Escrituras. Aquela
Babilônia de que fala S. João, quando diz no Apocalipse: Cecidit, cecidit Babylon (Ap 14, 8), é Roma, não pelo que hoje é,
senão pelo que há de ser. Assim o entendem S. Jerônimo, S. Agostinho, S.
Ambrósio, Tertuliano, Ecumênio, Cassiodoro, e outros Padres, a quem seguem
concordemente intérpretes e teólogos [12]. Roma, a espiritual, é eterna, porque
Portae inferi non praevalebunt adversus
eam [13]. Mas Roma, a temporal, sujeita está como as outras metrópoles das
monarquias, e não só sujeita, mas condenada à catástrofe das coisas mudáveis e
aos eclipses do tempo. Nas tuas ruínas vês o que foste, nos teus oráculos lês o
que hás de ser, e se queres fazer verdadeiro juízo de ti mesma pelo que foste e
pelo que hás de ser, estima o que és.
Nesta mesma roda natural das coisas humanas, descobriu a sabedoria de
Salomão dois espelhos recíprocos, que podemos chamar do tempo, em que se vê
facilmente o que foi e o que há de ser. Quid
est quod fuit? Ipsum quod futurum est. Quid est quod factum est? Ipsum quod
faciendum est: Que é o que foi? Aquilo mesmo que há de ser. Que é o que há
de ser? Aquilo mesmo que foi (Ecl 1, 9). Ponde estes dois espelhos um defronte
do outro, e assim como os raios do ocaso ferem o oriente e os do oriente o
ocaso, assim, por reverberação natural e recíproca, achareis que no espelho do
passado se vê o que há de ser, e no do futuro o que foi. Se quereis ver o
futuro, lede as histórias e olhai para o passado; se quereis ver o passado,
lede as profecias e olhai para o futuro. E quem quiser ver o presente, para
onde há de olhar? Não o disse Salomão, mas eu o direi. Digo que olhe juntamente
para um e para outro espelho. Olhai para o passado e para o futuro, e vereis o
presente. A razão ou conseqüência é manifesta. Se no passado se vê o futuro, e
no futuro se vê o passado, segue-se que no passado e no futuro se vê o
presente, porque o presente é o futuro do passado, e o mesmo presente é o
passado do futuro. Quid est quod fuit? Ipsum
quod futurum est. Quid est quod est? Ipsum
quod fuit et quod futurum est. Roma, o que foste, isso hás de ser; e o que foste, e
o que hás de ser, isso és. Vê-te bem nestes dois espelhos do tempo, e
conhecer-te-ás. E se a verdade deste desengano tem lugar nas pedras, quanto
mais nos homens. No passado foste pó? No futuro hás de ser pó? Logo, no
presente és pó: Pulvis es.
VI
O memento dos mortos: lembre-se o pó caído que há de ser pó levantado. O
pó que foi homem, há de tornar a ser homem. Jó compara-se à fênix e não à
águia. O autor não teme a morte, teme a imortalidade, já reconhecida pelos
filósofos pagãos. Nem vivemos como mortais, nem vivemos como imortais. A observação
de Sêneca.
Este foi o memento dos vivos; acabo com o memento dos mortos. Aos vivos
disse: lembre-se o pó levantado que há de ser pó caído. Aos mortos digo:
lembre-se o pó caído que há de ser pó levantado. Ninguém morre para estar
sempre morto; por isso a morte nas Escrituras se chama sono. Os vivos caem em
terra com o sono da morte: os mortos jazem na sepultura dormindo, sem movimento
nem sentido, aquele profundo e dilatado letargo; mas quando o pregão da
trombeta final os chamar a juízo, todos hão de acordar e levantar-se outra vez.
Então dirá cada um com Davi: Ego dormivi,
et soporatus sum, et resurrexi [14]. Lembre-se pois o pó caído que há de
ser pó levantado.
Este segundo memento é muito mais terrível que o primeiro. Aos vivos
disse: Memento homo quia pulvis es, et in
pulverem reverteris; aos mortos digo com as palavras trocadas, mas com
sentido igualmente verdadeiro: Memento
pulvis quia homo es, et in hominem reverteris: lembra-te pó que és homem, e
que em homem te hás de tornar. Os que me ouviram já sabem que cada um é o que
foi e o que há de ser. Tu que jazes nesta sepultura, sabe-o agora. Eu vivo, tu
estás morto; eu falo, tu estás mudo; mas assim como eu sendo homem, porque fui
pó, e hei de tornar a ser pó, sou pó, assim tu, sendo pó, porque foste homem, e
hás de tornar a ser homem, és homem. Morre
a águia, morre a fênix, mas a águia morta não é águia, a fênix morta é fênix.
E por que? A águia morta não é águia porque foi águia, mas não há de tornar a
ser águia. A fênix morta é fênix, porque foi fênix, e há de tornar a ser fênix.
Assim és tu que jazes nessa sepultura. Morto sim, desfeito em cinzas sim, mas
em cinzas como as da fênix. A fênix desfeita em cinzas é fênix, porque foi
fênix, e há de tornar a ser fênix. E tu desfeito também em cinzas és homem,
porque foste homem, e hás de tornar a ser homem. Não é a proposição, nem
comparação minha, senão da Sabedoria e Verdade eterna. Ouçam os mortos a um
morto que melhor que todos os vivos conheceu e pregou a fé da imortalidade. In nidulo meo moriar, et sicut phoenix
multiplicabo dies meos: Morrerei no meu ninho, diz Jó, e como fênix
multiplicarei os meus dias [15]. Os dias soma-os a vida, diminui-os a morte e
multiplica-los a ressurreição. Por isso Jó como vivo, como morto e como imortal
se compara à fênix. Bem pudera este grande herói, pois chamou ninho à sua
sepultura, comparar-se à rainha das aves, como rei que era.
Mas falando de si e conosco naquela medida em que todos somos iguais,
não se comparou à águia, senão à fênix, porque o nascer águia é fortuna de
poucos, o renascer fênix é natureza de todos. Todos nascemos pare morrer, e
todos morremos para ressuscitar. Para nascer antes de ser, tivemos necessidade
de pai e mãe que nos gerasse; pare renascer depois de morrer, como a fênix, o
mesmo pó em que se corrompeu e desfez o corpo, é o pai e a mãe de que havemos
de tornar a ser gerados. Putredini dixi:
pater meus es, mater mea, et soror mea vermibus [16]. Sendo pois igualmente
certa esta segunda metamorfose, como a primeira, preguemos também aos mortos,
como pregou Ezequiel, para que nos ouçam mortos e vivos (Ez 37, 4). Se dissemos
aos vivos: lembra-te homem que és pó, porque foste pó, e hás de tornar a ser pó
— brademos com a mesma verdade aos mortos que já são pó: lembra-te pó que és
homem porque foste homem, e hás de tornar a ser homem: Memento pulvis quia homo es, et in hominem reverteris.
Senhores meus, não seja isto cerimônia: falemos muito seriamente, que o
dia é disso. Ou cremos que somos imortais, ou não. Se o homem acaba com o pó,
não tenho que dizer; mas se o pó há de tornar a ser homem, não sei o que vos
diga, nem o que me diga. A mim não me faz medo o pó que hei de ser; faz medo o
que há de ser o pó. Eu não temo na morte a morte, temo a imortalidade; eu não
temo hoje o dia de cinza, temo hoje o dia de Páscoa, porque sei que hei de
ressuscitar, porque sei que hei de viver para sempre, porque sei que me espera
uma eternidade, ou no céu, ou no inferno. Scio
enim quod Redemptor meus vivit, et in novissimo die de terra surrecturus sum
[17]. Scio, diz. Notai. Não diz: Creio, senão, Scio, sei. Porque a verdade e
certeza da imortalidade do homem não só é fé, senão também ciência. Por ciência
e por razão natural a conheceram Platão, Aristóteles e tantos outros filósofos
gentios [18]. Mas que importava que o não alcançasse a razão onde está a fé?
Que importa a autoridade dos homens onde está o testemunho de Deus? O pó
daquela sepultura está clamando: De terra surrecturus
sum, et rursum circumdabor pelle mea, et in carne mea videbo Deum meum, quem
visurus sum ego ipse, et oculi mei conspecturi sunt, et non alius [19].
Este homem, este corpo, estes ossos, esta carne, esta pele, estes olhos, este
eu, e não outro, é o que há de morrer? Sim; mas reviver e ressuscitar à
imortalidade. Mortal até o pó, mas depois do pó, imortal. Credis hoc? Utique,
Domine [20]. Pois que efeito faz em nós este conhecimento da morte, e esta fé
da imortalidade?
Quando considero na vida que se usa, acho que não vivemos como mortais,
nem vivemos como imortais. Não vivemos como mortais, porque tratamos das coisas
desta vida como se esta vida fora eterna. Não vivemos como imortais, porque nos
esquecemos tanto da vida eterna, como se não houvera tal vida. Se esta vida
fora imortal, e nós imortais, que havíamos de fazer, senão o que fazemos? Estai
comigo. Se Deus, assim como fez um Adão, fizera dois, e o segundo fora mais
sisudo que o nosso, nós havíamos de ser mortais como somos, e os filhos de
outro Adão haviam de ser imortais. E estes homens imortais, que haviam de fazer
neste mundo? Isto mesmo que nós fazemos. Depois que não coubessem no Paraíso, e
se fossem multiplicando, haviam-se de estender pela terra, haviam de conduzir
de todas as partes do mundo todo o bom, precioso e deleitoso que Deus para eles
tinha criado, haviam de ordenar cidades e palácios, quintas, jardins, fontes,
delícias, banquetes, representações, músicas, festas, e tudo aquilo que pudesse
formar uma vida alegre e deleitosa. Não é isto o que nós fazemos? E muito mais
do que eles haviam de fazer, porque o haviam de fazer com justiça, com razão,
com modéstia, com temperança; sem luxo, sem soberba, sem ambição, sem inveja; e
com concórdia, com caridade, com humanidade. Mas como se ririam de nós, e como
pasmariam de nós aqueles homens imortais! Como se ririam das nossas loucuras,
como pasmariam da nossa cegueira, vendo-nos tão ocupados, tão solícitos, tão
desvelados pela nossa vidazinha de dois dias, e tão esquecidos, e descuidados
da morte, como se fôramos tão imortais como eles! Eles sem dor, nem
enfermidade; nós enfermos e gemendo; eles vivendo sempre, nós morrendo; eles
não sabendo o nome à sepultura, nós enterrando uns a outros; eles gozando o
mundo em paz, e nós fazendo demandas e guerras pelo que não havemos de gozar.
Homenzinhos miseráveis — haviam de dizer — homenzinhos miseráveis, loucos,
insensatos; não vedes que sois mortais? Não vedes que haveis de acabar amanhã?
Não vedes que vos hão de meter debaixo de uma sepultura, e que de tudo quanto
andais afanando e adquirindo, não haveis de lograr mais que sete pés de terra?
Que doidice, que cegueira é logo a vossa? Não sendo como nós, quereis viver
como nós? — Assim é. Morimur ut mortales, vivimus ut immortales: morreremos
como mortais que somos, e vivemos como se fôramos imortais [21]. Assim o dizia
Sêneca gentio à Roma gentia. Vós a isto dizeis que Sêneca era um estóico. E não
é mais ser cristão que ser estóico? Sêneca não conhecia a imortalidade da alma;
o mais a que chegou foi a duvidá-la, e contudo entendia isto.
VII
Cuidar da vida imortal. As duas portas da morte. Opinião de Aristóteles
. A escada do sonho de Jacó. No momento da morte não se teme a morte, teme-se a
vida. Resolução.
Ora, senhores, já que somos cristãos, já que sabemos que havemos de
morrer e que somos imortais, saibamos usar da morte e da imortalidade. Tratemos
desta vida como mortais, e da outra como imortais. Pode haver loucura mais
rematada, pode haver cegueira mais cega que empregar-me todo na vida que há de
acabar, e não tratar da vida que há de durar para sempre? Cansar-me,
afligir-me, matar-me pelo que forçosamente hei de deixar, e do que hei de
lograr ou perder para sempre, não fazer nenhum caso! Tantas diligências para
esta vida, nenhuma diligência para a outra vida? Tanto medo, tanto receio da
morte temporal, e da eterna nenhum temor? Mortos, mortos, desenganai estes
vivos. Dizei-nos que pensamentos e que sentimentos foram os vossos quando
entrastes e saístes pelas portas da morte? A morte tem duas portas: Qui exaltas
me de portis mortis [22]. Uma porta de vidro, por onde se sai da vida, outra
porta de diamante, por onde se entra à eternidade. Entre estas duas portas se
acha subitamente um homem no instante da morte, sem poder tornar atrás, nem
parar, nem fugir, nem dilatar, senão entrar para onde não sabe, e para sempre.
Oh! que transe tão apertado! Oh! que passo tão estreito! Oh! que momento tão
terrível! Aristóteles disse que entre todas as coisas terríveis, a mais
terrível é a morte. Disse bem mas não entendeu o que disse. Não é terrível a
morte pela vida que acaba, senão pela eternidade que começa. Não é terrível a
porta por onde se sai; a terrível é a porta por onde se entra. Se olhais para
cima, uma escada que chega até o céu; se olhais para baixo, um precipício que
vai parar no inferno, e isto incerto.
Dormindo Jacó sobre uma pedra, viu aquela escada que chegava da terra
até o céu, e acordou atônito gritando: Terribilis
est locus iste! Oh! que terrível lugar é este (Gn 18, 17)! E por que é
terrível, Jacó? Non est hic aliud nisi
domus Dei et porta caeli: Porque isto não é outra coisa senão a porta do
céu. — Pois a porta do céu, a porta da bem-aventurança é terrível? Sim. Porque
é uma porta que se pode abrir e que se pode fechar. É aquela porta, que se
abriu para as cinco virgens prudentes, e que se fechou para as cinco néscias:
Et clausa est janua (Mt 25, 10). E se esta porta é terrível para quem olha só
para cima, quão terrível será para quem olhar para cima e mais para baixo? Se é
terrível para quem olha só para o céu, quanto mais terrível será para quem
olhar para o céu e para o inferno juntamente? Este é o mistério de toda a
escada, em que Jacó não reparou inteiramente, como quem estava dormindo. Bem
viu Jacó que pela escada subiam e desciam anjos, mas não reparou que aquela
escada tinha mais degraus para descer que para subir: para subir era escada da
terra até o céu, para descer era escada do céu até o inferno; para subir era
escada por onde subiram anjos a ser bem-aventurados, para descer era escada por
onde desceram anjos a ser demônios. Terrível escada para quem não sobe, porque perde
o céu e a vista de Deus, e mais terrível para quem desce, porque não só perdeu
o céu e a vista de Deus, mas vai arder no inferno eternamente. Esta é a visão
mais que terrível que todos havemos de ver; este o lugar mais que terrível por
onde todos havemos de passar, e por onde já passaram todos os que ali jazem.
Jacó jazia sobre a pedra; ali a pedra jaz sobre Jacó, ou Jacó debaixo da pedra.
Já dormiram o seu sono: Dormierunt somnum
suum (Sl 75, 6); já viram aquela visão; já subiram ou desceram pela escada.
Se estão no céu ou no inferno, Deus o sabe; mas tudo se averiguou naquele
momento.
Oh! que momento, torno a dizer, oh! que passo, oh! que transe tão
terrível! Oh que temores, oh! que aflição, oh! que angústias! Ali, senhores,
não se teme a morte, teme-se a vida. Tudo o que ali dá pena, é tudo o que nesta
vida deu gosto, e tudo o que buscamos por nosso gosto, muitas vezes com tantas
penas. Oh! que diferentes parecerão então todas as coisas desta vida! Que
verdades, que desenganos, que luzes tão claras de tudo o que neste mundo nos
cega! Nenhum homem há naquele ponto que não desejara muito uma de duas: ou não
ter nascido, ou tornar a nascer de novo, para fazer uma vida muito diferente.
Mas já é tarde, já não há tempo: Quia
tempus non erit amplius (Apc 10, 6). Cristãos e senhores meus, por
misericórdia de Deus ainda estamos em tempo. É certo que todos caminhamos para
aquele passo, é infalível que todos havemos de chegar, e todos nos havemos de
ver naquele terrível momento, e pode ser que muito cedo. Julgue cada um de nós,
se será melhor arrepender-se agora, ou deixar o arrependimento para quando não
tenha lugar, nem seja arrependimento. Deus nos avisa, Deus nos dá estas vozes;
não deixemos passar esta inspiração, que não sabemos se será a última. Se então
havemos de desejar em vão começar outra vida, comecemo-la agora: Dixi: nunc caepi [23]. Comecemos de hoje
em diante a viver como quereremos ter vivido na hora da morte. Vive assim como
quiseras ter vivido quando morras. Oh! que consolação tão grande será então a
nossa, se o fizermos assim! E pelo contrário, que desconsolação tão
irremediável e tão desesperada, se nos deixarmos levar da corrente, quando nos
acharmos onde ela nos leva! É possível que me condenei por minha culpa e por
minha vontade, e conhecendo muito bem o que agora experimento sem nenhum
remédio? É possível que por uma cegueira de que me não quis apartar, por um
apetite que passou em um momento, hei de arder no inferno enquanto Deus for
Deus? Cuidemos nisto, cristãos, cuidemos nisto. Em que cuidamos, e em que não
cuidamos? Homens mortais, homens imortais, se todos os dias podemos morrer, se
cada dia nos imos chegando mais à morte, e ela a nós, não se acabe com este dia
a memória da morte. Resolução, resolução uma vez, que sem resolução nada se faz.
E para que esta resolução dure e não seja como outras, tomemos cada dia uma
hora em que cuidemos bem naquela hora. De vinte e quatro horas que tem o dia,
por que se não dará uma hora à triste alma? Esta é a melhor devoção e mais útil
penitência, e mais agradável a Deus, que podeis fazer nesta quaresma. Tomar uma
hora cada dia, em que só por só com Deus e conosco cuidemos na nossa morte e na
nossa vida. E porque espero da vossa piedade e do vosso juízo que aceitareis
este bom conselho, quero acabar deixando-vos quatro pontos de consideração para
os quatro quartos desta hora. Primeiro: quanto tenho vivido? Segundo: como
vivi? Terceiro: quanto posso viver? Quarto: como é bem que viva? Torno a dizer
para que vos fique na memória: Quanto tenho vivido? Como vivi? Quanto posso
viver? Como é bem que viva? Memento homo!
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