Homem prestou vestibular após filho
questionar se família não teria carro.
O
sonho de ser chamado de "doutor" chegou bem mais cedo que o esperado
para um lavador de carros do Distrito Federal. Prestes a começar o último semestre de direito em uma faculdade de
Taguatinga, o bolsista Flávio Dias da Silva, de 36 anos, foi aprovado no exame
da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O resultado coroou uma batalha
iniciada há 18 anos, quando o piauiense chegou à capital do país em busca de
uma vida melhor.
"Nasci
em Floriano, no interior [do Piauí]. Não
era uma cidade tão desenvolvida como hoje. Minha mãe criou a mim e meus
quatro irmãos sozinha desde que meu pai nos abandonou. Ela era professora da
rede estadual, então o salário não era muito, e sempre havia alguma
dificuldade. Só que nossa base de estudo era forte, e ela investiu muito em
mim. Estudei em escola particular a vida toda e vendia picolé para ajudá-la a
pagar a mensalidade", lembra Silva.
Com o
ensino médio concluído e a poucos dias
de completar a maioridade, o homem decidiu buscar em Brasília alguma
oportunidade. O objetivo era
colaborar com a mãe no custeio das despesas da família e com a então namorada,
que havia acabado de descobrir que estava grávida.
O primeiro emprego de Silva foi como
balconista de uma padaria, substituído meses depois pelo de garçom. Ao
todo, foram 5 anos no ofício, ganhando
um salário mínimo e aguentando todo tipo de "decepção". "Havia
toda exigência de patrão e clientes, e o que eu recebia simplesmente não
rendia. Acabava o dinheiro antes do mês", revela.
O auge da frustração veio no dia em que o
piauiense precisou de apenas R$ 1 para uma despesa da qual ele já nem se lembra
mais. Sem sobras no salário, Silva pediu a quantia emprestada a um vizinho e
acabou recebendo o primeiro "chacoalhão" que o levaria a mudar de
vida.
"Ele me pagou um sermão, e eu juro que
isso não me deixou magoado. 'Que idade você tem? Rapaz, você tem que parar de
depender dos outros para ter dinheiro. Caça um lote para capinar, um carro para
lavar', foi o que ele me disse", conta. "Eu fiquei envergonhado, mas
aquilo mexeu comigo. Aí me vi obrigado a correr atrás de algo diferente."
A ideia de lavar carros ganhou força com o
incentivo de um amigo, que já tinha montado um "ponto" na CNA 2, em Taguatinga.
Silva passou algum tempo dividindo os lucros do serviço com o colega, mas de
novo sentiu que o rendimento era pouco para as muitas horas de trabalho – das
7h até quando houvesse demanda. A partir daí, já com 25 anos, ele passou a
exercer a atividade por conta própria.
O local escolhido foi a CNA 1, perto do
Cartório do 5° Ofício de Notas. O tabelião e outros funcionários da
instituição, assim como donos de lojas próximas, viraram clientes fieis de
Silva. O rendimento chegava a R$ 600
por mês – bem superior ao que até então
ganhava nas demais atividades. E o jovem mantinha religiosamente uma
preocupação: pagar o INSS.
Seis anos depois, quando já tinha um
segundo filho, com uma gari, veio o segundo chacoalhão. O lavador de carros
estava deixando o pequeno Rodrigo, de então 4 anos, em uma creche de Ceilândia
e ouviu uma pergunta perturbadora. "Ele falou: 'Pai, quando você vai
comprar um carro para me trazer, que nem os outros pais fazem com meus
coleguinhas?'. Não vou mentir, aquilo me doeu. Ele via essa cena todos os dias. E é
triste uma criança te pedir algo e você não poder dar", diz.
Impulsionado pelo cliente Francisco de
Assis Brito, dono de uma loja de materiais metálicos que fica em frente ao
local onde lavava carros, Silva decidiu arregaçar as mangas e, em segredo,
prestar vestibular em uma faculdade particular. "Fico muito orgulhoso de
ver o resultado, ele é como um filho para mim. E eu dei um empurrão. Lembrei
que ele tinha 2° grau, que tinha feito curso técnico, que tinha inteligência.
Ele tinha todas as chances de sair daquela vida", analisa o empresário.
O lavador de carros marcou duas opções para
a prova: direito, em primeiro lugar, e pedagogia, em segundo. Os cursos foram
inspirados nas pessoas com quem tinha convívio e admirava, como o tabelião e a
própria mãe. A aprovação, segundo Silva, foi uma surpresa.
"Eu
pensava que, se não desse em um, daria em outro. Só que, ao mesmo tempo, duvidava
que, tantos anos depois de ter saído de uma sala de aula, conseguiria
passar", afirma. "Foi um
prêmio para mim. Não tão gostoso quanto o da OAB, claro, mas ali vi todo o
caminho que eu pretendia e ainda pretendo alcançar."
Só
que o resultado trouxe uma nova dificuldade. Os lucros com a lavação de carros não eram suficientes para manter a
família e pagar a graduação. Depois de pedir um tempo ao tabelião "para um
conselho", ele deu plantão na reitoria da faculdade para negociar um
desconto. De cara, garantiu uma bolsa de 50%. Depois de 5 semestres, a
faculdade concedeu o benefício integral.
"Não queria me menosprezar por ser
negro e pobre, mas fui sincero. Se não fosse desse jeito, eu não teria condição
de pagar. E eu falei para o reitor que queria mudar o meu futuro e o da minha
família. Aquela era a chance que eu tinha. Deixei claro que minha intenção era
não precisar depender disso, que eu sabia que ele era um homem muito ocupado,
mas que eu não tinha opção mesmo",
conta.
Ainda no começo da faculdade, o lavador de
carros, que tinha a confiança do tabelião do Cartório do 5° Ofício de Notas,
ganhou mais uma oportunidade: entrou para o setor de limpeza da instituição.
Depois, passou para a área de segurança e hoje é auxiliar notarial. A atividade
é conciliada com os cuidados com os automóveis dos clientes, aos fins de
semana.
"Hoje, essa não é a minha atividade
principal [lavação de carros], digamos assim, mas é muito importante para mim.
Eu não ganho menos que R$ 90 em um sábado, e isso me ajuda muito a completar a
renda. A soma do que eu e minha mulher ganhamos não é alta, então esse dinheiro
a mais ajuda muito. E eu gosto de lavar carros, me distrai. Foi o que me deu
sustento por muito tempo e ainda me ajuda a queimar calorias", brinca. "Meu
peso ideal é 87 kg, mas estou com 100 kg. Não vou parar tão cedo."
Os lucros obtidos exclusivamente por meio
da limpeza dos carros, inclusive, o permitiram atender ao pedido do filho.
Silva juntou R$ 9 mil e conseguiu comprar um automóvel usado de um cliente. O
rapaz, que atualmente também trabalha no cartório, não acreditou quando o
lavador perguntou em junho do ano passado quanto ele queria pelo veículo.
"Havia
um colega que queria comprar, e eu meio que atravessei", afirma, às
gargalhadas. "Mas na hora doeu um
pouco, porque parecia que não acreditavam que eu, que tantos anos lavei aquele
carro sem nunca saber que um dia seria meu, teria condições de comprá-lo.
Acharam que era brincadeira. Isso até ofende, sabe. Mas eu me limitei a pedir o número da conta e a voltar 2 horas depois
com a comprovação da transferência. O cara ficou surpreso e perguntou se podia
me entregar só no outro dia, porque ele não esperava vender. Ali eu podia ter dado uma cutucada, mas fui
discreto. Só disse para tomar cuidado e não bater, que eu já tinha pagado."
A reação do caçula ao "presente"
também surpreendeu. Silva parou o carro na porta de casa e chamou a família
para ver a novidade que ele havia trazido. Rodrigo foi direto, lembra o homem.
"Ele logo soltou: 'Pai, eu não acredito, mas
é muito feio esse carro'. Ele adora carros, mas o negócio dele é Lamborghini, é
carrão. Só que pouco depois, ele veio: 'Pai, eu estava brincando'. E ele ama,
né? Antes, para irmos ao Nicolândia [no Parque da Cidade, no Plano Piloto],
pegávamos ônibus e metrô. Hoje, é só trocar de roupa e aproveitar um tempo bem
mais curto e um jeito bem mais confortável de chegar", diz.
"Maior prêmio"
Assim como fez com o vestibular, Silva se
inscreveu em segredo para o exame da OAB. A
preparação para a primeira etapa ocorreu toda em casa. Já para a segunda fase,
o lavador decidiu optar por um reforço e pagou um cursinho on-line. Foram 3
meses conciliando o sonho com as aulas da faculdade, o início da monografia e o
trabalho.
"Nos últimos 45 dias, eu estudava
feito louco. Ficava até as 3h respondendo exercícios, me mantinha com
energético. Às 8h, chegava ao cartório caindo de sono. Foi puxado, mas valeu a
pena. Eu sabia tudo de cabeça no dia da prova. Abri um sorriso daqui a ali ao
ler o teste. Eu me senti em casa e tive confiança de que tudo daria
certo", afirma.
O
resultado saiu no dia 24 de junho. O lavador de carros havia ficado com a
responsabilidade de fechar o cartório e aproveitou o momento sozinho para
consultar o desempenho na prova. Antes
de abrir o site, fez uma oração. E, de fato, havia dado certo: ele acertou 57%
da prova objetiva.
"Eu
gritei e chorei de felicidade. Saí ligando para familiares, amigos, conhecidos,
postei no Facebook. Essa vitória é tudo. Foi um exemplo para as pessoas –
muitas me dizem que eu as inspirei, que vão tentar os sonhos delas também",
recorda Silva. "Foi uma forma de mostrar à sociedade, mas principalmente
de me mostrar, que não sou menos do que ninguém, que sou muito capaz."
Com
uma preocupação a menos para o último semestre de faculdade, o homem já traça
novos planos. Os objetivos futuros são fazer uma especialização na área de
processo civil e dar aulas, além de prestar concursos de direito e dar à mulher
a oportunidade de estudar. "Agora, quero ajudar pessoas iguais a mim e até
outras, com trajetórias diferentes, a abrir a cabeça e crescer", conclui.
21/07/2014
07h00 - Atualizado em 21/07/2014 14h59
Fonte:
http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2014/07/bolsista-lavador-de-carros-do-df-passa-na-oab-antes-de-se-formar.html
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