LEI Nº 8.112, DE 11 DE
DEZEMBRO DE 1990 (Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis
da União, das autarquias e das fundações públicas federais): Art. 134. Será cassada a aposentadoria ou a
disponibilidade do inativo que houver praticado, na atividade, falta punível
com a demissão.
Por Maria
Sylvia Zanella Di Pietro
A cassação
de aposentadoria tem sido prevista como penalidade nos Estatutos dos Servidores
Públicos. Na esfera federal, a Lei
8.112/1990, no artigo 134, determina
que “será cassada a aposentadoria ou a disponibilidade do inativo que houver
praticado, na atividade, falta punível com a demissão”. A justificativa para a
previsão de penalidade dessa natureza decorre do fato de que o servidor público
não contribuía para fazer jus à aposentadoria. Esta era considerada como direito decorrente do exercício do cargo,
pelo qual respondia o Erário, independentemente de qualquer contribuição do
servidor. Com a instituição do regime previdenciário contributivo, surgiu a
tese de que não mais é possível a aplicação dessa penalidade, tendo em vista
que o servidor paga uma contribuição, que é obrigatória, para garantir o
direito à aposentadoria.
O regime previdenciário contributivo para o
servidor público foi previsto nas Emendas Constitucionais 3/1993 (para
servidores federais), 20/1998 (para servidores estaduais e municipais, em
caráter facultativo) e 41/2003 (para servidores de todas as esferas de governo,
em caráter obrigatório). No entanto, mesmo antes da instituição desse regime, já havia
algumas vozes que se levantavam contra esse tipo de penalidade. O argumento
mais forte era o de que a aposentadoria
constituía um direito do servidor que completasse os requisitos previstos na
Constituição: era o direito à inatividade remunerada, como decorrência do
exercício do cargo por determinado tempo de serviço público. Alegava-se que a
punição era inconstitucional, porque atingia ato jurídico perfeito.
Com esse
argumento, algumas ações foram propostas pleiteando a invalidação da punição,
chegando, algumas delas, ao conhecimento e julgamento do Supremo Tribunal
Federal. A Corte não acolheu aquele entendimento. No MS 21.948/RJ, alegava-se a
inconstitucionalidade dos incisos III e IV do artigo 127, da Lei 8.112/90, que
previam as penas de demissão e de cassação de aposentadoria ou disponibilidade,
sob o argumento de que, quando aplicada a pena de demissão, o servidor já havia
completado o tempo para aposentadoria. O argumento foi afastado, sob o
fundamento de que o artigo 41, parágrafo 1º, da Constituição prevê a demissão;
e que a lei prevê inclusive a cassação de aposentadoria, aplicável ao inativo,
se resultar apurado que praticou ilícito disciplinar grave, quando em
atividade. O mesmo entendimento foi adotado no MS 22.728/PR, no qual foi
afastado o argumento de que a pena de cassação de aposentadoria é
inconstitucional por violar ato jurídico perfeito.
Depois da EC
20/98, o STF proferiu acórdão no MS 23.299/SP. O relator foi o ministro
Sepúlveda Pertence, que não enfrentou o tema diante da mudança no regime
jurídico da aposentadoria e adotou a mesma tese já aplicada aos casos
precedentes. Igual decisão foi adotada no ROMS 24.557-7/DF. No julgamento do
AgR no MS 23.219-9/RS, o relator anotou que, não obstante o caráter
contributivo de que se reveste o benefício previdenciário, o STF tem confirmado
a possibilidade de aplicação da pena de cassação de aposentadoria. O julgado
baseou-se, ainda uma vez, no precedente, relatado pelo Min. Pertence.
Mais
recentemente, novo posicionamento foi adotado em acórdão proferido pela 2ª
Turma (RE 610.290/MS, rel. min. Ricardo Lewandowski), em cuja ementa consta
que: “o benefício previdenciário
instituído em favor dos dependentes de policial militar excluído da corporação
representa uma contraprestação às contribuições previdenciárias pagas durante o
período efetivamente trabalhado.” Nesse caso, alegava-se que era
inconstitucional o dispositivo de lei estadual que instituiu o benefício
previdenciário aos dependentes de policial militar excluído da corporação. A
decisão foi pela constitucionalidade do
dispositivo, por se tratar de benefício previdenciário, de caráter contributivo.
Ponderou o ministro que “entender de
forma diversa seria placitar verdadeiro enriquecimento ilícito da Administração
Pública que, em um sistema contributivo de seguro, apenas receberia as
contribuições do trabalhador, sem nenhuma contraprestação”.
Note-se que
o acórdão trata da cassação da pensão
dos dependentes e não da cassação de aposentadoria. O órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão
proferido no MS 2091987-98.2014.8.26.0000, entendeu, por maioria de votos,
que a cassação de aposentadoria se
tornou incompatível com a instituição do regime previdenciário. A meu ver,
adotou a tese correta.
É possível
reconhecer que a regra que permite a cassação de aposentadoria gera dois tipos
opostos de resistência: a) de um lado, a
repulsa pela penalidade em si, que é aplicada quando o inativo já está com
idade avançada e com grande dificuldade ou mesmo impossibilidade de encontrar
outro trabalho, seja no setor público, seja no setor privado; no acórdão
mencionado, proferido pelo Órgão Especial do TJSP, o inativo já tinha se
aposentado compulsoriamente por ter completado 70 anos de idade; b) de outro lado, a extinção da penalidade
de cassação de aposentadoria por ilícito praticado quando o inativo ainda
estava em atividade gera outro tipo de repulsa, que é o fato de o servidor
acabar não sendo punido na esfera administrativa (ainda que possa ser punido na
esfera penal e responder civilmente pelos danos causados ao erário, inclusive
em ação de improbidade administrativa).
Há que se ponderar que, em se tratando de pena de
demissão, não há impedimento a que o servidor volte a ocupar outro cargo
público, uma vez que preencha os respectivos requisitos, inclusive a submissão
a concurso público, quando for o caso. Se assim
não fosse, a punição teria efeito permanente, o que não é possível no direito
brasileiro. E não há dúvida de que,
se vier a ocupar outro cargo, emprego ou função, o tempo de serviço ou de
contribuição, no cargo anterior, será computado para fins de aposentadoria e
disponibilidade, com base no artigo 40, parágrafo 9º, da Constituição. Mesmo que outra atividade seja prestada no
setor privado ou em regime de emprego público, esse tempo de serviço ou de
contribuição no cargo em que se deu a demissão tem que ser considerado pelo
INSS, por força da chamada contagem recíproca, prevista no artigo 201,
parágrafo 9º, da Constituição.
Façamos um
paralelo com o trabalhador filiado ao Regime Geral de Previdência Social. O que
acontece quando demitido do emprego por justa causa, por ter praticado falta
grave? O trabalhador tem dois tipos de vínculos: a) um vínculo de emprego com a
empresa, regido pela CLT; e b) um vínculo de natureza previdenciária, com o
INSS. Se for demitido, mas já tiver completado os requisitos para
aposentadoria, ele poderá requerer o benefício junto ao órgão previdenciário.
Se não completou os requisitos, ele poderá inscrever-se como autônomo e
continuar a contribuir até completar o tempo de contribuição; ou poderá iniciar
outro vínculo de emprego que torne obrigatória a sua vinculação ao regime de
seguridade social; ou poderá ingressar no serviço público, passando a
contribuir para o Regime Próprio, também em caráter obrigatório. De qualquer
forma, fará jus à já referida contagem do tempo de contribuição anterior. Para
fins previdenciários, é absolutamente irrelevante saber quantos empregos a
pessoa ocupou e quais as razões que o levaram a desvincular-se de uma empresa e
vincular-se a outra. Se for demitido, com ou sem justa causa, nada pode impedi-lo
de usufruir dos benefícios previdenciários já conquistados à época da demissão.
A mesma
regra aplica-se aos servidores públicos celetistas e temporários, que são
necessariamente vinculados ao Regime Geral, nos termos do artigo 40, parágrafo
13, da Constituição. Se forem demitidos por justa causa, porque praticaram
ilícito administrativo, essa demissão não os fará perder os benefícios
previdenciários já conquistados ou a conquistar, mediante preenchimento do
requisito de tempo de contribuição exigido em lei. Com relação ao servidor
efetivo, não é e não pode ser diferente a conclusão, a partir do momento em que
se alterou a natureza de sua aposentadoria. Ele também passa a ter dois tipos
de vínculos: um ligado ao exercício do cargo e outro de natureza previdenciária.
Antes da instituição do Regime Próprio do
Servidor, a aposentadoria era um direito decorrente do exercício do cargo,
financiado inteiramente pelos cofres públicos, sem contribuição do servidor, da
mesma forma que outros direitos previstos na legislação constitucional e
estatutária, como a estabilidade, a remuneração, as vantagens pecuniárias, as
férias remuneradas.
Note-se que a pensão, ao contrário dos outros direito ligados ao cargo, já
tinha natureza previdenciária contributiva, desde longa data.
Ocorre que houve declarada intenção do governo de
aproximar o regime de aposentadoria do servidor público e o do empregado do
setor privado.
Tanto assim que o artigo 40, parágrafo 12, da Constituição manda aplicar ao
Regime Próprio, no que couber, os “requisitos e critérios fixados para o regime
geral de previdência social”.
Sendo de
caráter contributivo, é como se o servidor estivesse “comprando” o seu direito
à aposentadoria; ele paga por ela. Daí a aproximação com o contrato de seguro.
Se o servidor paga a contribuição que o garante diante da ocorrência de riscos
futuros, o correspondente direito ao benefício previdenciário não pode ser
frustrado pela demissão. Se o governo quis equiparar o regime previdenciário do
servidor público e o do trabalhador privado, essa aproximação vem com todas as
consequências: o direito à aposentadoria, como benefício previdenciário de
natureza contributiva, desvincula-se do direito ao exercício do cargo, desde
que o servidor tenha completado os requisitos constitucionais para obtenção do
benefício.
Qualquer
outra interpretação leva ao enriquecimento ilícito do erário e fere a
moralidade administrativa. Não tem sentido instituir-se contribuição com
caráter obrigatório e depois frustrar o direito à obtenção do benefício
correspondente. Assim, se a demissão não pode ter o condão de impedir o
servidor de usufruir o benefício previdenciário para o qual contribuiu nos
termos da lei (da mesma forma que ocorre com os vinculados ao Regime Geral),
por força de consequência, também não pode subsistir a pena de cassação de
aposentadoria, que substitui, para o servidor inativo, a pena de demissão.
Não se pode
invocar, para afastar essa conclusão, o caráter solidário do regime
previdenciário. Não há dúvida de que a solidariedade é uma das características
da previdência social, quando comparada com a previdência privada. Podemos
apontar as seguintes características do seguro social e que o distinguem do
seguro privado: a) obrigatoriedade, pois protege as pessoas independentemente de
sua concordância, assegurando benefícios irrenunciáveis; b) pluralidade das
fontes de receita, tendo em vista a impossibilidade dos segurados manterem, por
si, o sistema e cobrirem todos os benefícios; daí a ideia de solidariedade, que
dá fundamento à participação de terceiros que não os beneficiários no custeio
do sistema; c) desproporção entre a contribuição e o benefício, exatamente como
decorrência da pluralidade das fontes de receita; d) ausência de lucro, já que
é organizada pelo Estado.
O fato de ser
a solidariedade uma das características do seguro social não significa que os
beneficiários não tenham direito de receber o benefício. Eu diria que a
solidariedade até reforça o direito, porque ela foi idealizada exatamente para
garantir o direito dos segurados ao benefício. De outro modo, não haveria
recursos suficientes para manter os benefícios da previdência social. A
solidariedade significa que pessoas que não vão usufruir do benefício
contribuem para a formação dos recursos necessários à manutenção do sistema de
previdência social; é o caso dos inativos e pensionistas e também dos
servidores que não possuem dependentes mas têm que contribuir necessariamente
para a manutenção do benefício; são as hipóteses em que à contribuição não
corresponde qualquer benefício. Mas para os servidores assegurados, à
contribuição tem necessariamente que corresponder um benefício, desde que
preenchidos os requisitos previstos na Constituição e na legislação
infraconstitucional. A regra da solidariedade convive (e não exclui) o direito
individual ao benefício para o qual o servidor contribuiu.
A solidariedade não afasta o direito individual
dos beneficiários, já que o artigo 40 da Constituição define critérios para
cálculo dos benefícios, a saber, dos proventos de aposentadoria e da pensão,
nos parágrafos 1º, 2º e 3º. Não há dúvida de que a contribuição do servidor, quando
somada aos demais requisitos constitucionais, dá direito ao recebimento dos
benefícios.
O já
transcrito argumento utilizado pelo Min. Lewandowski com relação à pensão é
inteiramente aplicável à aposentadoria. Note-se que o caráter contributivo e
retributivo do regime previdenciário do servidor também foi ressaltado na ADI
nº 2010. Para o Relator, a “existência de estrita vinculação causal entre contribuição
e benefício põe em evidência a correção da fórmula, segundo a qual não pode
haver contribuição sem benefício”.
A relação
entre benefício e contribuição decorre de vários dispositivos da Constituição,
mas consta expressamente do artigo 40, parágrafo 3º. O que ocorre é que a
legislação estatutária não se adaptou inteiramente ao novo regime de
aposentadoria e continua a prever a pena de cassação de aposentadoria, sem
levar em consideração que ela se tornou incompatível com o regime
previdenciário. Além disso, há uma resistência grande dos entes públicos em
abrir mão desse tipo de penalidade, seja por não terem tomado consciência das
consequências de alteração do regime do servidor, seja por revelarem
inconformismo com a incompatibilidade da referida penalidade com o regime
previdenciário contributivo agora imposto a todos os servidores.
Mas o fato é
que a pena de cassação de aposentadoria
deixou de existir para cada ente federativo a partir do momento em que, por
meio de lei própria, instituíram o regime previdenciário para seus servidores.
Isto não impede que o servidor responda
na esfera criminal e no âmbito da lei de improbidade administrativa e que
responda pela reparação civil dos prejuízos eventualmente causados ao erário.
A cassação de disponibilidade continua a
existir, porque a disponibilidade continua a ser uma decorrência da
estabilidade do servidor, independentemente de qualquer contribuição
previdenciária.
Fonte: http://www.conjur.com.br/2015-abr-16/interesse-publico-cassacao-aposentadoria-incompativel-regime-previdenciario-servidores
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