“[...] A classe
operária não surgiu tal como um sol numa hora determinada. Ela estava presente
ao seu próprio fazer-se.
Classe,
e não classes, por razões cujo exame constitui um dos
objetivos deste livro. Evidentemente, há diferença. ‘Classes trabalhadoras’ é
um termo descritivo, tão esclarecedor quanto evasivo. Reúne vagamente um
amontoado de fenômenos descontínuos. Ali estavam alfaiates e acolá tecelãos, e
juntos constituem as classes trabalhadoras.
Por classe,
entendo um fenômeno histórico, que unifica
uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na
matéria-prima da experiência como da consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a
classe como uma ‘estrutura’, nem mesmo como uma ‘categoria’, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja
ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas.
Ademais, a noção de
classe traz consigo a noção de relação histórica. Como qualquer outra
relação, é algo fluido que escapa à
análise ao tentarmos imobilizá-la num dado momento e dissecar sua estrutura.
A mais fina rede sociológica não consegue nos oferecer um exemplar puro de
classe, como tampouco um do amor ou da submissão. A relação precisa sempre estar encarnada em pessoas e contextos reais.
Além disso, não podemos ter duas classes distintas, cada qual com um ser
independente, colocando-as a seguir em relação recíproca. Não podemos ter amor
sem amantes, nem submissão sem senhores rurais e camponeses. A classe acontece quando alguns homens,
como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e
articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens
cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de
classe é determinada, em grande medida pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram
involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências
são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores,
ideias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o
mesmo ocorre com a consciência de classe. Podemos ver uma lógica nas relações
de grupos profissionais semelhantes que vivem experiências parecidas, mas não
podemos predicar nenhuma lei. A
consciência de classe surge da mesma forma em tempos e lugares diferentes, mas
nunca exatamente da mesma forma.
Existe atualmente uma
tentação generalizada em se supor que a classe é uma coisa.
[...] ‘Ela’, a classe operária, é tomada como tendo uma existência real, capaz
de ser definida quase matematicamente – uma quantidade de homens que s encontra
numa certa proporção com os meios de produção. Uma vez isso assumido, torna-se
possível deduzir a consciência de classe que ‘ela’ deveria ter (mas raramente
tem), se estivesse adequadamente consciente de sua própria posição e interesses
reais. Há uma superestrutura cultural, por onde esse reconhecimento desponta
sob formas ineficazes. Essas ‘defasagens’ e distorções culturais constituem um
incômodo, de modo que é mais fácil passar para alguma teoria substitutiva: o
partido, a seita ou o teórico que desvenda a consciência de classe, não como
ela e, as como deveria ser.
Mas um erro semelhante e diariamente cometido do outro lado
da divisória ideológica. Sob uma forma, é uma negação pura e simples. [...]
assume-se que qualquer noção de classe é uma construção pejorativa, imposta às
evidências. Nega-se absolutamente a existência da classe. Sob outra forma, e
por uma inversão curiosa, é possível passar de uma visão dinâmica para uma
visão estática de classe. ‘Ela’ – a classe operária – existe, e pode ser
definida com alguma precisão como componente da estrutura social. A consciência
de classe, porém, é algo daninho, inventado por intelectuais deslocados, visto
que tudo o que perturba a coexistência
harmoniosa de grupos que desempenham diferentes ‘papéis sociais’ (assim
retardando o crescimento econômico) deve ser lamentado como um ‘sintoma de
motim injustificado’. O problema consiste em determinar a melhor forma de
condicioná-‘la’, para que aceite seu papel social, e de melhor ‘tratar e
canalizar’ suas queixas.
Se lembrarmos que a
classe é uma relação, e não uma coisa, não podemos pensar dessa maneira. ‘Ela’ não existe, nem para ter um interesse
ou uma consciência ideal, nem para se estender como um paciente na mesa de
operações de ajuste. Tampouco podemos inverter as questões [..].
Evidentemente, a
questão é como o indivíduo veio a ocupar esse ‘papel social’ e como a
organização social específica (com seus direitos de propriedade e estrutura de
autoridade aí chegou. Estas são as questões históricas. Se detemos a história
um determinado ponto, não há classes, mas simplesmente uma multidão de
indivíduos com um amontoado de experiências. Mas se examinarmos esses homens durante um período adequado de mudanças
sociais, observaremos padrões em suas relações, suas ideias e instituições. A
classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final,
esta é a sua única definição.
[...] Pois estou convencido de que não podemos entender a classe a menos que a vejamos como uma formação
social e cultural, surgindo de processos que só podem ser estudados quando eles
mesmos operam durante um considerável período histórico. Nos anos de 1780 e
1832 os trabalhadores ingleses em sua maioria vieram a sentir uma identidade de
interesses entre si, e contra seus dirigentes e empregadores. Essa classe dirigente
estava, ela própria, muito dividida, e de fato só conseguiu maior coesão nesses
mesmos anos porque certos antagonismos se dissolveram (ou se tornaram
relativamente insignificantes) frente a uma classe operária insurgente.
Portanto, a presença operária foi, em 1832, o fator mais significativo da vida
política britânica.
[...]
Há a ortodoxia do ‘Progresso
do Peregrino’, onde aquele período é esquadrinhado em busca de pioneiros
precursores do Estado do Bem-Estar Social, progenitores de uma Comunidade Socialista
ou (mais recentemente) precoces exemplares de relações industriais racionais.
Cada uma dessas ortodoxias tem uma certa validade. Todas contribuíram para o
nosso conhecimento. Discordo das duas primeiras porque tendem a obscurecer a
atuação dos trabalhadores, e o grau com que contribuíram com esforços
conscientes, no fazer-se da história. Discordo
da terceira porque lê a história à luz de preocupações posteriores, e não como
de fato ocorreu. Apenas os vitoriosos
(no sentido daqueles cujas aspirações anteciparam a evolução posterior) são
lembrados. O becos sem saída, as causas perdidas e os próprios perdedores ao esquecidos.
Estou tentando resgatar o pobre tecelão de malhas, o meeiro
luddita, o tecelão do ‘obsoleto’ tear
manual, o artesão ‘utópico’ e mesmo o iludido seguidor de Joanna Southcott, dos
imensos ares superiores de condescendência da posteridade. Seus ofícios e
tradições podiam estar desaparecendo. Sua hostilidade frente ao novo
industrialismo podia ser retrógrada. Seus ideais comunitários podiam ser
fantasiosos. Suas conspirações insurreicionais podiam ser temerárias. Mas eles
viveram nestes tempos de aguda perturbação social, e nós não. Suas aspirações
eram válidas nos termos de sua própria experiência; se foram vítimas acidentais
da história, continuam a ser, condenados em vida, vítimas acidentais.
Não deveríamos ter como único critério de julgamento o fato
de as ações de um homem se justificarem, ou não, à luz da evolução posterior.
Afinal de contas, nós mesmos anão estamos no final da evolução social. Podemos
descobrir, em algumas das causas perdidas do povo da Revolução Industrial,
percepções de males sociais que ainda estão por curar. Além disso, a maior
parte do mundo ainda hoje passa por problemas de industrialização e de formação
de instituições democráticas, sob muitos aspectos semelhantes à nossa própria
experiência durante a Revolução Industrial. Causas que foram perdidas na Inglaterra poderiam ser ganhas na Ásia ou
na África.
[...] a classe é uma
formação tanto cultural como econômica, tive o cuidado de evitar
generalizações para além da experiência inglesa.
(THOMPSON, Eduard P. A formação da classe operária inglesa. Parte
I - A árvore da liberdade. 3v. Coleção Oficinas da História. Tradução:
Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 09-14)
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