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domingo, 5 de janeiro de 2014

A formação da classe operária inglesa (E. P. Thompson - trehos do prefácio)

“[...] A classe operária não surgiu tal como um sol numa hora determinada. Ela estava presente ao seu próprio fazer-se.
Classe, e não classes, por razões cujo exame constitui um dos objetivos deste livro. Evidentemente, há diferença. ‘Classes trabalhadoras’ é um termo descritivo, tão esclarecedor quanto evasivo. Reúne vagamente um amontoado de fenômenos descontínuos. Ali estavam alfaiates e acolá tecelãos, e juntos constituem as classes trabalhadoras.
Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como da consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma ‘estrutura’, nem mesmo como uma ‘categoria’, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas.

Ademais, a noção de classe traz consigo a noção de relação histórica. Como qualquer outra relação, é algo fluido que escapa à análise ao tentarmos imobilizá-la num dado momento e dissecar sua estrutura. A mais fina rede sociológica não consegue nos oferecer um exemplar puro de classe, como tampouco um do amor ou da submissão. A relação precisa sempre estar encarnada em pessoas e contextos reais. Além disso, não podemos ter duas classes distintas, cada qual com um ser independente, colocando-as a seguir em relação recíproca. Não podemos ter amor sem amantes, nem submissão sem senhores rurais e camponeses. A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida pelas relações de produção  em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo ocorre com a consciência de classe. Podemos ver uma lógica nas relações de grupos profissionais semelhantes que vivem experiências parecidas, mas não podemos predicar nenhuma lei. A consciência de classe surge da mesma forma em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente da mesma forma.
Existe atualmente uma tentação generalizada em se supor que a classe é uma coisa. [...] ‘Ela’, a classe operária, é tomada como tendo uma existência real, capaz de ser definida quase matematicamente – uma quantidade de homens que s encontra numa certa proporção com os meios de produção. Uma vez isso assumido, torna-se possível deduzir a consciência de classe que ‘ela’ deveria ter (mas raramente tem), se estivesse adequadamente consciente de sua própria posição e interesses reais. Há uma superestrutura cultural, por onde esse reconhecimento desponta sob formas ineficazes. Essas ‘defasagens’ e distorções culturais constituem um incômodo, de modo que é mais fácil passar para alguma teoria substitutiva: o partido, a seita ou o teórico que desvenda a consciência de classe, não como ela e, as como deveria ser.
Mas um erro semelhante e diariamente cometido do outro lado da divisória ideológica. Sob uma forma, é uma negação pura e simples. [...] assume-se que qualquer noção de classe é uma construção pejorativa, imposta às evidências. Nega-se absolutamente a existência da classe. Sob outra forma, e por uma inversão curiosa, é possível passar de uma visão dinâmica para uma visão estática de classe. ‘Ela’ – a classe operária – existe, e pode ser definida com alguma precisão como componente da estrutura social. A consciência de classe, porém, é algo daninho, inventado por intelectuais deslocados, visto que tudo o que perturba  a coexistência harmoniosa de grupos que desempenham diferentes ‘papéis sociais’ (assim retardando o crescimento econômico) deve ser lamentado como um ‘sintoma de motim injustificado’. O problema consiste em determinar a melhor forma de condicioná-‘la’, para que aceite seu papel social, e de melhor ‘tratar e canalizar’ suas queixas.
Se lembrarmos que a classe é uma relação, e não uma coisa, não podemos pensar dessa maneira. ‘Ela’ não existe, nem para ter um interesse ou uma consciência ideal, nem para se estender como um paciente na mesa de operações de ajuste. Tampouco podemos inverter as questões [..].
Evidentemente, a questão é como o indivíduo veio a ocupar esse ‘papel social’ e como a organização social específica (com seus direitos de propriedade e estrutura de autoridade aí chegou. Estas são as questões históricas. Se detemos a história um determinado ponto, não há classes, mas simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de experiências. Mas se examinarmos esses homens durante um período adequado de mudanças sociais, observaremos padrões em suas relações, suas ideias e instituições. A classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é a sua única definição.   
[...] Pois estou convencido de que não podemos entender a classe a menos que a vejamos como uma formação social e cultural, surgindo de processos que só podem ser estudados quando eles mesmos operam durante um considerável período histórico. Nos anos de 1780 e 1832 os trabalhadores ingleses em sua maioria vieram a sentir uma identidade de interesses entre si, e contra seus dirigentes e empregadores. Essa classe dirigente estava, ela própria, muito dividida, e de fato só conseguiu maior coesão nesses mesmos anos porque certos antagonismos se dissolveram (ou se tornaram relativamente insignificantes) frente a uma classe operária insurgente. Portanto, a presença operária foi, em 1832, o fator mais significativo da vida política britânica.
[...]
Há a ortodoxia do ‘Progresso do Peregrino’, onde aquele período é esquadrinhado em busca de pioneiros precursores do Estado do Bem-Estar Social, progenitores de uma Comunidade Socialista ou (mais recentemente) precoces exemplares de relações industriais racionais. Cada uma dessas ortodoxias tem uma certa validade. Todas contribuíram para o nosso conhecimento. Discordo das duas primeiras porque tendem a obscurecer a atuação dos trabalhadores, e o grau com que contribuíram com esforços conscientes, no fazer-se da história. Discordo da terceira porque lê a história à luz de preocupações posteriores, e não como de fato ocorreu. Apenas os vitoriosos (no sentido daqueles cujas aspirações anteciparam a evolução posterior) são lembrados. O becos sem saída, as causas perdidas e os próprios perdedores ao esquecidos.
Estou tentando resgatar o pobre tecelão de malhas, o meeiro luddita,  o tecelão do ‘obsoleto’ tear manual, o artesão ‘utópico’ e mesmo o iludido seguidor de Joanna Southcott, dos imensos ares superiores de condescendência da posteridade. Seus ofícios e tradições podiam estar desaparecendo. Sua hostilidade frente ao novo industrialismo podia ser retrógrada. Seus ideais comunitários podiam ser fantasiosos. Suas conspirações insurreicionais podiam ser temerárias. Mas eles viveram nestes tempos de aguda perturbação social, e nós não. Suas aspirações eram válidas nos termos de sua própria experiência; se foram vítimas acidentais da história, continuam a ser, condenados em vida, vítimas acidentais.
Não deveríamos ter como único critério de julgamento o fato de as ações de um homem se justificarem, ou não, à luz da evolução posterior. Afinal de contas, nós mesmos anão estamos no final da evolução social. Podemos descobrir, em algumas das causas perdidas do povo da Revolução Industrial, percepções de males sociais que ainda estão por curar. Além disso, a maior parte do mundo ainda hoje passa por problemas de industrialização e de formação de instituições democráticas, sob muitos aspectos semelhantes à nossa própria experiência durante a Revolução Industrial. Causas que foram perdidas na Inglaterra poderiam ser ganhas na Ásia ou na África.
[...] a classe é uma formação tanto cultural como econômica, tive o cuidado de evitar generalizações para além da experiência inglesa.
(THOMPSON, Eduard P. A formação da classe operária inglesa. Parte I -  A árvore da liberdade.  3v. Coleção Oficinas da História. Tradução: Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 09-14)   

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