Em
entrevista, pensador marxista discorre sobre a crítica ao capitalismo de Walter
Benjamin e sua relação com a atualidade
Considerado
um dos maiores pesquisadores em Karl Marx e Walter Benjamin, entre outros
autores, Michael Löwy esteve no Brasil para divulgar o seu novo livro, “O
Capitalismo como Religião” (Boitempo Editorial), que reúne escritos de
Benjamin, das mais variadas fases de sua carreira. Walter Benjamin foi um dos
mais importantes teóricos da Escola de Frankfurt.
Em entrevista
à Revista Fórum, Löwy explica a relação entre capitalismo e religião na obra de
Walter Benjamin, e também discorre sobre questões como o sistema capitalista
hoje e o pensamento do romantismo e do surrealismo. Confira:
Fórum –
Como a questão do capitalismo como religião está inserida na obra do Benjamin?
Ela a permeia? De que maneira?
Michael
Löwy – Eu não diria que ela permeia a
obra do Benjamin. “O Capitalismo como Religião” é um texto de um momento muito
específico e não é uma questão que ele voltou a discutir como tal. Em 1921,
quando ele o escreveu, ele ainda não era marxista. É um escrito mais de
inspiração romântico-libertária, eu diria. Quando
ele descobre o marxismo, ele vai retomar a questão, mas sobre um ponto de vista
um pouco diferente, quando ele usa o conceito
do fetichismo da mercadoria de Marx. Esse conceito tem uma dimensão religiosa, por que o fetichismo é uma forma
de culto, de idolatria. Ele se refere à Bolsa de Paris, por exemplo, como
“templo da mercadoria”. E usa expressões relacionadas com o tema do fetichismo
que, metaforicamente, tem a ver com a religião.
Fórum – E
qual seria o tema que atravessa toda obra de Benjamin?
Michael
Löwy – O tema que atravessa toda sua
obra é a crítica ao capitalismo. É uma crítica
feroz, que não é necessariamente marxista, no começo não é. Não só ao capitalismo no sentido econômico,
mas como civilização – moderna, industrial, capitalista, burguesa. É uma
crítica de inspiração romântica a essa civilização. Esse é o fio condutor dessa
coletânea de textos.
Fórum – Na
orelha do livro, Maria Rita Kehl afirma que a “unidade dos textos” selecionados
se explica a partir do ensaio-título escolhido para a coletânia. Como você
pensa essa relação?
Michael
Löwy – Segundo a Maria Rita Kehl, o texto ilumina o sentido da melancolia
benjaminiana. Até certo ponto, eu diria que sim. Esse texto fala que o
capitalismo conduz ao desespero. Tal desespero suscita a melancolia, o
sentimento de que não há saída, de que nada se pode fazer. Eu acho que a melancolia de Benjamin tem a ver com esse
desespero, mas não é uma melancolia resignada, ela é ativa. Por exemplo,
ele tem um ensaio de 1929 sobre surrealismo que fala da importância do pessimismo para a revolução. Ele diz que o capitalismo pretende nos fechar
numa espécie de jaula de ferro, mas que temos que procurar uma saída e, assim, ele analisa várias hipóteses de
como sair. Então é evidente nessa busca que Benjamin não se dá por satisfeito com o desespero do capitalismo.
Fórum – O
texto “o capitalismo como religião” é uma feroz crítica a esse sistema. O que
torna esse texto atual?
Michael
Löwy – Muito do que o Benjamin diz corresponde de maneira surpreendente ao
funcionamento atual do capitalismo. Realmente
há algo de um culto religioso na maneira como os representantes do sistema
capitalista, seus economistas e os seus meios de comunicação se referem à
propriedade privada, ao mercado, à bolsa… Mas talvez a coisa mais surpreendente
e atual é quando Benjamin fala da ambivalência, na língua alemã, do conceito de
Schuld, que é ao mesmo tempo “dívida” e “culpa”. Ele acha que essa coincidência é diabólica e que isso está no coração
da religião capitalista: a dívida é uma culpa, quem está endividado é culpado.
O capitalista está sempre em dívida com o seu capital, o pobre está sempre em
dívida porque não tem dinheiro, então todos somos endividados, todos somos
culpados. Hoje em dia nós vemos na Europa um discurso teológico de que
todos os países que estão em crise estão por culpa deles, porque não trabalham,
são preguiçosos, esbanjaram dinheiro. Todo
um discurso moralista querendo culpabilizar esses países, quando sabemos que a
dívida resulta da lógica do próprio sistema capitalista, de sua irracionalidade
profunda.
Fórum –
Faz sentido pensar numa adoração ao capitalismo agora que ele vem sendo tão
contestado com a crise econômica?
Michael
Löwy – A crise tremenda do capitalismo
atual, a maior sem dúvida depois de 1929, intensifica ao máximo o desespero
provocado pela religião capitalista, a tal grau que o desespero se transforma
em alguma outra coisa. As pessoas se suicidam ou buscam algum bode expiatório,
como os imigrantes, por exemplo. Todavia, para alguns, o desespero leva a colocar em questão a religião
capitalista, e mesmo a rejeitá-la. Então,
ele pode levar à raiva e à indignação, sendo essa última o traço comum de todos
os movimentos de protesto que surgiram, da Primavera Árabe às jornadas de junho
no Brasil. Implicitamente ou
explicitamente, encontramos também uma rejeição à religião capitalista. Mas em
suma, esses movimentos são o desespero transformado em raiva e indignação, o
que é, evidentemente, um grande passo à frente.
Fórum –
Benjamin pensou a modernidade do século XIX-XX. Quais aspectos dessa
modernidade continuam até hoje?
Michael
Löwy – A modernidade capitalista está
baseada no princípio da mudança permanente, ela nunca é a mesma, mudando
constantemente, de um minuto para o outro. Tudo muda, mas, como diria o famoso romance “O Gattopardo”, de
Giuseppe Tomasi di Lampedusa, tudo muda
para ficar a mesma coisa: a matriz econômica, social, política e cultural do
sistema permanece. A civilização capitalista-industrial, com suas
características analisadas por Marx e retomadas por Walter Benjamin, continua
igual.
Fórum –
Quais são as principais críticas de Benjamin ao mundo “civilizado” do século
XX?
Michael
Löwy – Ele aponta para as potencialidades
destrutoras da civilização capitalista do século XX. Então rejeita a ideia de progresso, acha uma
mistificação a ideia de que o capitalismo nesse século é mais civilizado ou mais
humano do que no passado. Ele tem essa percepção de que o progresso capitalista vai acumulando
catástrofes e que o fascismo é algo que corresponde perfeitamente a uma
dinâmica possível do sistema: o fascismo e o nazismo são vistos como a
expressão mais dramática da barbárie potencial do capitalismo. Assim,
Benjamin alerta para os perigos de
catástrofe que estão no bojo do sistema capitalista. Um dos elementos
apontados é o uso da tecnologia
científica mais avançada para a guerra. O texto “As armas do Futuro”,
presente na antologia, fala sobre a arma química, por exemplo. Embora Benjamin fosse o mais pessimista e
o mais lúcido sobre os perigos da tecnologia a serviço da guerra, nem ele
conseguiu prever a arma atômica.
Fórum – O
senhor afirma que a crítica de Benjamin é de inspiração romântica. Como se dá
essa relação do Benjamin com o romantismo?
Michael
Löwy – Nos manuais, se apresenta o romantismo como uma escola literária do
século XIX. É muito mais do que isso, pois está presente na poesia, na arte, na
música, na teoria política, na religião, na economia. O romantismo é uma visão
do mundo, que atravessa todos os campos da cultura. Partindo de um texto de Marx, o romantismo é definido como uma crítica
da civilização capitalista em nome do passado pré-capitalista. Acho que é
exatamente isso, o romantismo é um protesto cultural contra a civilização
moderna-industrial em nome de um passado idealizado. Ele surge no século XIII e
existe até o século XXI, o que Marx já tinha previsto, dizendo que, enquanto
existir o capitalismo, o romantismo será a sua sombra.
O romantismo possui duas vertentes principais.
Uma quer restaurar o passado, então ela é conservadora, reacionária. A outra
quer uma volta pelo passado, em direção a um futuro utópico, revolucionário. Nessa segunda vertente
figura o Jean-Jacques Rousseau, pois ele fala do selvagem como livre, em
contraponto ao homem da sociedade moderna que é um escravo, mas o teórico não
quer voltar a viver na floresta, e sim restaurar essa liberdade perdida numa
sociedade futura, democrática. Essa dialética romântica entre passado e futuro
já está em Rousseau e continua ao longo dos séculos XIX, nos socialistas
utópicos, e XX, nos surrealistas, entre outras correntes do pensamento. O
Walter Benjamin é um exemplo dessa atitude romântico-revolucionária. Ele vai
utilizar a teologia e a religião que vem do passado como arma para uma luta
revolucionária contra uma civilização burguesa.
Fórum –
Como a visão romântica permanece até hoje?
Michael
Löwy – Você vê o romantismo reacionário nas pessoas que querem restaurar alguns
valores aristocráticos e tradicionalismos, como, por exemplo, as correntes
religiosas fundamentalistas, que querem resgatar a religião como era no
passado. Esse fundamentalismo, todavia, nem sempre é critico do capitalismo,
então, nesse caso, não é romantismo, e sim uma variante da religião
capitalista. Mas existem formas religiosas retrógradas que rejeitam a
civilização moderna, então elas têm essa forma de protesto reacionário.
Há também as formas românticas utópicas ou
revolucionárias.
No campo religioso, por exemplo, a Teologia
da Libertação é crítica à civilização capitalista e se refere a alguns valores
do passado, a uma imagem idealizada do cristianismo nas origens e à ideia de
que existem tradições comunitárias populares que o capitalismo vai destruindo,
mas que devem ser resgatadas. Então eles querem restaurar o espírito comunitário que existiu no passado, mas sem
voltar a ele, criando algo novo como, por exemplo, a comunidade de base, que
incorpora aspectos da modernidade, entre eles a adesão individual das pessoas.
Fórum – De
que maneira as reflexões do romantismo se prolongam até o surrealismo?
Michael
Löwy – Um dos elementos do protesto
romântico contra a civilização é aquilo que o Max Weber chama de “desencantamento do mundo”. O capitalismo
acaba com o que é encantamento, dissolvendo tudo em prol da mercadoria, do
dinheiro, do mercado, das coisas prosaicas. O romantismo protesta contra isso,
sendo uma tentativa de reencantamento do mundo. No caso do surrealismo, essa
tentativa tem uma forma revolucionária, pois eles querem reencantar o mundo por
meio da poesia, do sonho, do acaso e da utopia, e não por meio da restauração
do passado. André Breton, fundador do surrealismo, vê o movimento como uma
continuação do romantismo, quando diz que o seu movimento é a “cauda do cometa
romântico”. Os surrealistas, além de críticos do sistema, também criticavam a
civilização ocidental, sendo violentamente anticolonialistas, pois o
colonialismo é a tentativa de impor essa civilização aos povos da periferia.
Assim, um dos primeiros atos políticos do surrealismo foi o apoio a um levante
árabe no Marrocos, reprimido pelo colonialismo francês. Já em 1925, logo quando
é fundado o movimento surrealista, eles vão apoiar essa revolta anticolonial.
Fórum –
Benjamin achava que só uma revolução podia interromper a marcha da sociedade
burguesa rumo ao abismo. Essa marcha continua?
Michael
Löwy – A marcha para o abismo continua, mas tem uma forma diferente. Na época de Benjamin, era a marcha à
guerra, à II Guerra Mundial. Hoje em dia a mais nítida é a corrida, não
“marcha”, para o abismo, que é a catástrofe ecológica. A marcha vai devagar,
mas a corrida do trem vai rápido. É evidente que a civilização capitalista
industrial está indo como um trem suicida, com rapidez crescente, em direção a
esse abismo, o que é uma catástrofe sem procedentes na história humana. Isso está ligado à dinâmica própria do
capitalismo, de expansão ilimitada. Mais uma vez se coloca a urgência do que o Benjamin dizia: precisamos de uma revolução, isso é, puxar
os freios desse trem louco.
Por
Gabriel Fabri
Fonte:
http://revistaforum.com.br/blog/2013/11/michael-lowy-civilizacao-capitalista-e-um-trem-suicida-rumo-ao-abismo/
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