A crise hídrica que o Brasil atravessa põe em
risco não só o abastecimento de suas cidades, mas também a oferta de alimentos
nos mercados do país,
diz o brasileiro José Graziano da Silva, diretor-geral da agência da ONU para
agricultura e segurança alimentar (FAO).
"Estamos tendo uma quebra enorme da safra de
todos os produtos", diz Graziano. Segundo ele, a estiagem deve resultar em
preços mais altos nas prateleiras nos próximos meses.
Em
entrevista à BBC Brasil, o chefe da FAO afirma ainda que o Brasil terá de
ampliar seus estoques de alimentos e privilegiar culturas mais resistentes a
secas, fenômeno que deve se tornar cada vez mais frequente por causa das
mudanças climáticas.
Leia abaixo
os principais trechos da entrevista, concedida durante a última cúpula da
Comunidade dos Estados Latinoamericanos e Caribenhos (Celac), na Costa Rica, na
semana passada.
BBC Brasil -
A crise hídrica que o Brasil atravessa pode afetar a segurança alimentar do
país?
José
Graziano - Sem dúvida. Tenho desde 1987 uma pequena chácara perto de Campinas
(SP) e nunca meu poço tinha secado.
Cheguei a perder árvores frutíferas.
É um exemplo
de como o Brasil, que não faz uso da
irrigação em grande escala e se beneficia muito de um sistema de chuvas
regulares, tem sua produção afetada por uma seca como essa.
BBC Brasil -
A seca é um efeito das mudanças climáticas?
Graziano -
Na FAO, a nossa avaliação é que neste ano o
impacto do El Niño (superaquecimento das águas do Pacífico que esquenta a
atmosfera) foi muito maior que o esperado. Nunca havia chegado ao ponto de
ameaçar o abastecimento urbano, como estamos vendo em São Paulo.
Estamos atravessando
o período das águas no Brasil e deveria
estar chovendo muito mais do que está. Tivemos
deficiência hídrica de praticamente um metro d'água na região centro-sul do
Brasil.
Espera-se a
normalização das chuvas no próximo ano agrícola, que começa em setembro, mas
até lá vamos enfrentar resíduos da falta de água e todos os agravantes que isso
tem.
BBC Brasil -
Quais agravantes?
Graziano - Estamos tendo uma quebra enorme da safra de
todos os produtos. Até mesmo da cana de açúcar, que é bastante insensível ao
regime de chuvas. Isso vai resultar em aumento de preços.
Aliás,
estamos vendo muita oscilação de preços
resultante do impacto das mudanças climáticas. Há uma irregularidade da
produção. Situações de seca, que antes se repetiam a cada cem anos, agora
ocorrem a cada 20 anos.
O jeito é ter estoques. O Brasil tem alguns
estoques bons, como o de milho, fruto da boa colheita do ano passado, mas não
tem em outras áreas. Precisa até importar trigo.
BBC Brasil -
Como reduzir os impactos das mudanças climáticas na produção agrícola?
Graziano - Estamos trabalhando muito com a adaptação
de culturas à seca. A Embrapa
(Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, estatal ligada ao Ministério da
Agricultura) já tomou essa iniciativa e está
desenvolvendo variedades até de arroz adaptado à seca.
Também
devemos substituir culturas. A quinoa
demanda muito menos água que o arroz e tem um valor nutritivo muito maior.
Estamos promovendo a substituição do trigo nas regiões tropicais e a
recuperação de produtos tradicionais.
A mandioca, por exemplo, que tinha sido
abandonada, hoje está em alta no Caribe, onde está sendo adicionada à confecção
do pão para reduzir a dependência da importação do trigo. Outra possibilidade é
expandir a irrigação para evitar crises de abastecimento.
BBC Brasil -
Aumentar a irrigação não é incompatível com o cenário atual, com reservatórios
cada vez mais vazios?
Graziano - Temos menos água armazenada em São Paulo,
mas na Cantareira. A (represa) Billings está cheia. Precisa haver um sistema de
integração dessas bacias, porque a distribuição das chuvas é muito errática.
Essa prática é muito usada na Ásia.
E temos de ter a capacidade de absorver a
água da chuva. Na minha chácara, por exemplo, comprei cisternas plásticas e
hoje tenho capacidade de armazenar pelo menos 20 mil litros de água da chuva.
BBC Brasil -
A crise hídrica e a instabilidade na produção de alimentos gerada pelas
mudanças climáticas indicam a necessidade de repensar o modelo agrícola do país, hoje muito voltado a commodities
para exportação, como a soja?
Graziano -
Eu diria que se trata mais de pensar em
mudanças tecnológicas. No passado,
utilizamos intensivamente a mecanização. Hoje estamos promovendo o cultivo
mínimo, que significa não arar o solo e manter a vegetação que o cobre. Isso
facilita a absorção da água e preserva a matéria orgânica.
A Argentina tem hoje mais de 90% de suas
áreas de soja e milho baseadas em cultivo mínimo e tem aumentado a
produtividade mesmo na seca.
Fonte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2015/02/150201_entrevista_graziano_jf
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