As redes sociais pululam. Thays, 18 anos, estudante do segundo período de direito em Rondônia,
passou no exame da OAB. Poderia, pois, ser advogada sem ter concluído o curso.
Ela não trabalha como estagiária, não tem família “jurídica”. O mais próximo
que ela está do direito é uma tia que trabalha na Justiça e um primo causídico.
Não estudou processo, não estudou filosofia, não estudou processo civil,
processo penal, direito penal... Mas passou.
Ela estudou para a prova durante três meses, segundo disse
na entrevista (ler aqui). Sua
“metodologia”: leu as questões das provas anteriores, leu o Estatuto da OAB e o
Código de Ética, porque “sabia que para acertar todas as questões de
Deontologia Jurídica era essencial”. Diz mais: “A primeira fase se resumiu em fazer
vários exercícios, mesmo aprendendo sobre aquele conteúdo com o gabarito das
questões. Já para a 2ª fase estudei um livro de Constitucional para concursos
pois a linguagem era mais direta e rápida, tendo que adotar tal doutrina por
ter pouco tempo para muito conteúdo. Li também um livro com as peças
prático-profissionais resolvidas, já que eu não conhecia e nem sabia como era
uma peça. A partir daí passei a resolver todas as provas em casa para não errar
no dia.”
Bom, as matérias que ela teve contato na faculdade foram
Deontologia Jurídica, Direito Constitucional e Direitos Humanos. O restante,
ela “aprendeu” lendo os manuais representados pela literatura que se usa por
aí. Na segunda fase ela escolheu
Constitucional. Pronto. Passou. Tirou 4,4 de 5,0. O segredo dela, segundo suas
palavras: “usou material de ótima qualidade”.
Fim do ato. Fecham-se as cortinas. Vou para o meu bunker.
Os concursos e os quiz shows
Tenho denunciado o fracasso do modelo de concursos públicos
e prova da OAB de há muito. Ao mesmo tempo em que Thays passa depois de ter
cursado apenas uma pequena parte do curso de direito, mais de 50% chumbam nesse
exame. Os concursos públicos aferem apenas informações. Decorebas. Thays — e
não quero tirar o mérito dela (meus sinceros parabéns para ela) — é o exemplo
de que basta treinar. Não é necessário estudar no sentido de refletir. É
necessário tão-somente fazer um bom adestramento.
Vamos todos para Estocolmo. O Nobel é nosso. Comunidade
jurídica de terrae brasilis: por favor, vamos levar o direito a sério.
Imaginemos na medicina um aluno de segundo período passar no “Exame de Ordem”
deles (falo nas circunstâncias do caso retratado — não é impossível que algum
Einstein passe; o que impressiona é o depoimento de Thays; ela foi aprovada sem
ter cursado disciplinas, sem ter contato qualquer com a matéria, a não ser por
via derivadíssima!). Quem se trataria com médicos brasileiros? Teríamos que
fugir para outro lugar. E quem quer ser “tratado” pelos nossos “juristas”?
Bom, basta ver a qualidade dos livros didáticos e parte
considerável da “doutrina” utilizada nas decisões e pareceres por aí. Invenção
de princípios, ponderações que não passam de invencionices, reproduções de
autores dos quais foram lidos resumos no Google... Nem mesmo a dogmática
jurídica é levada a sério. Aliás, que dogmática jurídica temos, se, com apenas
um semestre (ou dois) de Constitucional, a candidata já gabaritou o Exame da
OAB? Hein?
E vejamos as salas de aula, as bancadas dos Fóruns e das
meses do Tribunais. Direitos resumidos (e resumidinhos), simplinhos, mastigados
(e mastigadinhos), direito Prêt-à-Porter (que não é doutrina francesa — vá que
algum néscio pense que seja)... Insisto: parte (atenção, para não dar briga, eu
disse parte) do material didático utilizado nas salas de aula e nos cursinhos
de preparação deveria ter uma tarja com a advertência “o uso constante desse
material fará mal a sua saúde epistêmica”. Na quarta capa, a foto de um
“candidato” com cara “esquisita” (para ser eufemista) e a inscrição “usei e
fiquei assim!”. Vejam a capa e a contracapa dos "livros mais
utilizados", vistos alegoricamente:
Terrabrasiliensis
de todos os matizes e lugares: levamos “tão a sério” o Direito que basta estar
cursando duas ou três disciplinas para “passar” pelo filtro profissional... O
que fizemos com o Direito? É ele uma racionalidade tão meramente instrumental
que é possível apreendê-lo mediante decorebas e formulinhas escritas em dois ou
três “mastigadinhos”, resumos e resuminhos?
Este é o “estado da arte”. A grande “sacada” dos concursos
nos últimos tempos foi a LINDB, uma “leizinha” de quinta categoria que serve só
para a elaboração de questões em provas e outros quetais. E quando veio a
Resolução 75 exigindo “Humanismo” nas provas, surgiu darwinianamente uma literatura
de terceira divisão para demonstrar que efetivamente não é possível levar
alguma a sério neste país. Basta ver o que os livros sobre humanismo fizeram
com Rawls, Aristóteles, positivismo, hermenêutica, Kant, etc. Neste ConJur já
escrevi várias colunas sobre isso.
De nada adianta: vamos estocar comida!
Thays é um marco simbólico. Thays denunciou o sistema. Viva
a Thays (e falo seriamente isso). Sem querer, ela demonstrou a nudez do rei e
da realeza terrabrasiliana. Fundamentalmente denunciou o fracasso de um
“modelo” ou de um “sistema”. Mas, pergunto: Será que isso servirá para alguma
coisa? Servirá de advertência? Ou a notícia será escondida por outra notícia e
pelo próximo escândalo no ensino jurídico e nos concursos?
A banalização faz com que tenhamos perdido a nossa
capacidade crítica. Talvez devêssemos inventar um aparelho para colocar nas
redes sociais, que apitasse de semana em semana, chamando a atenção para a
notícia que vai desaparecendo, coberta por outras camadas de notícias.
Poderíamos chamar a esse aparelho de “micômetro”, isto é, um mecanismo para
denunciar o “mico” pago na(s) semana(s) anteriores. Talvez com isso não
esquecêssemos a decisão do juiz que julgou deserto o recurso cujo prazo caiu em
um domingo, a decisão que indeferiu a inicial por ter páginas “demais”, a
tentativa de grampos “alrededor” do Palácio do Planalto, o professor que acabou
com Aristóteles e com Gadamér (sic), o livro que “ensina” que quando a CF fala
em armas da República, não está se referindo às armas de fogo... Talvez por
isso ninguém se impressione quando um desembargador decide uma causa usando o
Google Maps na hora da decisão, para dizer que o juiz se equivocou na prova...
Ou quando doutrinadores confundem “citações de autores de filosofia” com o uso
de paradigmas filosóficos... Ou quando a “grande sacada” é dizer que “o juiz
boca da lei morreu”...e que agora a saída é a ponderação. Ou que “tudo é
relativo”... O alarme poderia funcionar, pois não?
Afinal, por que os leitores acham que essas coisas acontecem
no cotidiano das práticas judiciárias (e da doutrina que não mais doutrina)?
Por quê? Porque Thays pode passar na prova de Ordem sem ter estudado direito o
Direito. Porque para passar na prova de juiz federal ou Ministério Público
Federal tem que decorar a legislação e responder pegadinhas sobre dispositivos
da Constituição ou responder questões sobre extradição que só o examinador
conhece. Ou responder a questões sobre Caio e Tício ou sobre a ladra Jane...
Formou-se uma imensa indústria em torno do “Direito” que
parece estar sucateada, em crise, como a indústria de automóveis. As
“montadoras” do direito estão em crise. E as ruas estão cheinhas de automóveis.
Mas o governo agora vai financiar em 60 meses. Claro. Vai melhorar. Se me
entendem a analogia, é claro!
Vale a pena “descascar os fenômenos”?
Nestes tempos de pós-modernidade, de fragilização de
sentidos, de “grau zero de significação”, de instantaneidades, de “memes” e
bizarrias, fico pensando, parafraseando Caetano: quem lê tanta notícia? E quem
se importa com isso tudo? Na sociedade do espetáculo, vivemos a ascensão da
insignificância, do mínimo, dos 140 caracteres. Não há mais segredos. E quando
se tenta fazer desleituras (a la Harold Bloom), retirando as camadas de
sentidos coagulados do senso comum teórico, no mesmo dia ou no dia seguinte novas
camadas se superpõem, escondendo aquilo que foi desvelado. Vale a pena agir
como Sísifo e rolar a pedra até o alto e ser jogado inexoravelmente para o
início do tormento? Cartas para a Coluna.
Algum néscio aparece(rá) e dirá: lá vem esse chato criticando
de novo os concursos, o ensino, a dogmática, as decisões, etc (e blá, blá,
blá). Pois é. Talvez a nescio-cracia vença esse Armagedom epistêmico. Talvez já
tenha vencido. Nós é que não nos damos conta. Burros que somos. Como dizia
Eraclio Zepeda, ás águas da enchente desceram e cobriram a tudo e a todos...
Nós é que não nos apercebemos que de há muito começara a chover no alto da
serra!
As coisas por aqui em terrae brasilis são difíceis. Temos
que matar dois leões por dia. E não fazer atalhos ao estilo Jeca Tatu,
personagem de Monteiro Lobato, com o qual demonstrava o atraso nacional (sua
filosofia era de que era melhor sentar em um banquinho de três pernas; para que
quatro, se com três equilibrava melhor?) e por que plantar se as formigas
comerão tudo... Somos incríveis: assinamos sete cartas de intenção com o FMI na
década de 80 (a década perdida). Segundo um dos negociadores, cuja revelação
foi feita para Elio Gaspari, “assinamos a primeira por engano, a segunda por
distração. A terceira porque somos mentirosos, mas você não acha que, a partir
daí, ou mesmo antes, estava tudo combinado?” Então: não parece que, nessa
algaravia de concursos, ensino, literatura meia-boca, não ocorreram enganos,
distrações e mentiras? Ou tudo isso já está combinado? Ou seja: tudo o que está
ai não seria algo do tipo “ao não funcionar...funciona?”
Talvez a disfuncionalidade seja a própria funcionalidade.
Melancolicamente — em alemão, a palavra é Gelassenheit (um
deixamento, mas ao mesmo tempo uma serenidade) — como homenagem a todos os
leitores, reproduzo abaixo uma charge que recebi esta semana, que me foi
mandada pelo aluno-doutorando Marcelo Ribeiro. Ela é autorreferente. Nenhuma
linha precisa ser dita.
Fonte:
http://www.conjur.com.br/2014-mai-01/senso-incomum-thays-18-passa-oab-rei-nu-fracassamos
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