Nota da
Redação: O programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, entrevista nesta
segunda, às 22 horas, o ex-militar José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo,
ex-participante de um motim na Marinha, nos anos 60, que, após um período de exílio em Cuba, voltou para o Brasil, foi preso e
delatou perseguidos políticos ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DOPS. A
lista de denunciados incluiu sua companheira, Soledad Viedma, que acabou
torturada e morta pela ditadura. A TV Cultura escolheu o Cabo Anselmo como
entrevistado para marcar a estreia de Mario Sergio Conti, ex-diretor da Veja e
atual diretor de redação da revista Piauí, na condução do programa.
A escolha se dá justo no momento em que se
discute no Brasil a instalação da Comissão da Verdade, que enfrenta muita
resistência de setores que insistem em manter na penumbra fatos ocorridos em um
dos períodos mais tenebrosos da história do Brasil. Publicamos a seguir um artigo
do escritor Urariano Mota, autor de um livro sobre Soledad Viedma.
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Em 1970,
de volta ao Brasil, Anselmo foi preso pela ditadura militar. Em troca da
liberdade, delatou perseguidos políticos ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, do
Dops. A lista de denuciados incluía sua namorada, Soledad Viedma, que acabou
morta devido à tortura.
Quem lê
“Soledad no Recife” pergunta sempre qual a natureza da minha relação com
Soledad Barrett Viedma, a bela guerreira que foi mulher do Cabo Anselmo. Eu
sempre respondo que não fomos amantes, que não fomos namorados. Mas que a amo,
de um modo apaixonado e definitivo, enquanto vida eu tiver. Então os leitores
voltam, até mesmo a editora do livro, da Boitempo: “mas você não a conheceu?”.
E lhes digo, sim, eu a conheci, depois da sua morte. E explico, ou tento
explicar.
Quem foi,
quem é Soledad Barrett Viedma? Qual a sua força e drama, que a maioria dos
brasileiros desconhece? De modo claro e curto, ela foi a mulher do Cabo
Anselmo, que ele entregou a Fleury em 1973. Sem remorso e sem dor, o Cabo Anselmo a entregou grávida para a
execução. Com mais cinco militantes contra a ditadura, no que se convencionou
chamar “O massacre da granja São Bento”. Essa execução coletiva é o ponto.
No entanto, por mais eloquente, essa coisa vil não diz tudo. E tudo é, ou quase
tudo.
Entre os assassinados existem pessoas
inimagináveis a qualquer escritor de ficção. Pauline Philipe Reichstul, presa aos chutes como
um cão danado, a ponto de se urinar e sangrar em público, teve anos depois o
irmão, Henri Philipe, como presidente da Petrobras. Jarbas Pereira Marques,
vendedor em uma livraria do Recife, arriscou e entregou a própria vida para não
sacrificar a da sua mulher, grávida, com o “bucho pela boca”. Apesar de apavorado,
por saber que Fleury e Anselmo estavam à sua procura, ele se negou a fugir,
para que não fossem em cima da companheira, muito frágil, conforme ele dizia.
Que escritor épico seria capaz de espelhar tal grandeza?
E Soledad
Barrett Viedma não cabe em um parêntese. Ela é o centro, a pessoa que grita, o
ponto de apoio de Arquimedes para esses crimes. Ainda que não fosse bela, de
uma beleza de causar espanto vestida até em roupas rústicas no treinamento da
guerrilha em Cuba; ainda que não houvesse transtornado o poeta Mario Benedetti;
ainda que não fosse a socialista marcada a navalha aos 17 anos em Montevidéu,
por se negar a gritar Viva Hitler; ainda que não fosse neta do escritor Rafael
Barrett, um clássico, fundador da literatura paraguaia; ainda assim... ainda
assim o quê?
Soledad é
a pessoa que aponta para o espião José Anselmo dos Santos e lhe dá a sentença:
“Até o fim dos teus dias estás condenado, canalha. Aqui e além deste século”.
Porque olhem só como sofre um coração. Para recuperar a vida de Soledad, para
cantar o amor a esta combatente de quatro povos, tive que mergulhar e procurar
entender a face do homem, quero dizer, a face do indivíduo que lhe desferiu o
golpe da infâmia. Tive que procurar dele a maior proximidade possível,
estudá-lo, procurar entendê-lo, e dele posso dizer enfim: o Cabo Anselmo é um
personagem que não existe igual, na altura de covardia e frieza, em toda a
literatura de espionagem. Isso quer dizer: ele superou os agentes duplos,
capazes sempre de crimes realizados com perícia e serenidade. Mas para todos
eles há um limite: os espiões não chegam à traição da própria carne, da mulher
com quem se envolvem e do futuro filho. Se duvidam da perversão, acompanhem o
depoimento de Alípio Freire, escritor e jornalista, ex-preso político:
“É impressionante o informe do senhor Anselmo
sobre aquele grupo de militantes - é um documento que foi encontrado no Dops do
Paraná. É algo absolutamente inimaginável e que, de tão diferente de todas as
ignomínias que conhecemos, nos faltam palavras exatas para nos referirmos ao
assunto.
Depois de
descrever e informar sobre cada um dos cinco outros camaradas que seriam
assassinados, referindo-se a Soledad (sobre a qual dá o histórico de família,
etc.), o que ele diz é mais ou menos o seguinte:
‘É verdade
que estou REALMENTE ENVOLVIDO pessoalmente com ela e, nesse caso, SE FOR
POSSÍVEL, gostaria que não fosse aplicada a solução final’.
Ao longo
da minha vida e desde muito cedo aprendi a metabolizar (sem perder a ternura,
jamais) as tragédias. Mas fiquei durante umas três semanas acordando à noite,
pensando e tentando entender esse abismo, essa voragem”.
Esse crime
contra Soledad Barrett Viedma é o caso
mais eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil. Vocês entendem agora
por que o livro é uma ficção que todo o mundo lê como uma relato apaixonado.
Não seria possível recriar Soledad de outra maneira. No título, lá em cima,
escrevi Soledad, a mulher do Cabo Anselmo. Melhor
seria ter escrito, Soledad, a mulher de todos os jovens brasileiros. Ou
Soledad, a mulher que apredemos a amar.
(*)
Urariano Mota, 59 anos, é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do
Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita,
Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do
Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta
Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Os
corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997), um romance de formação, que se
passa sob a ditadura de Emílio Garrastazu Médici (1969–1974), e de Soledad no
Recife (São Paulo, Boitempo, 2009).
17/10/2011
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