Soledad foi
torturada e morta no Recife em 1973, grávida, depois de ser entregue ao
delegado Sílvio Paranhos Fleury, traída pelo
cabo Anselmo, de quem trazia um filho na barriga.
A foto é de
Soledad no Chile.
por
Conceição Lemes
Ex-presos políticos e parentes de mortos e
desparecidos da ditadura civil-militar
receberam com a alegria a decisão da Comissão de Anistia do Ministério da
Justiça de negar o pedido de indenização ao ex-marinheiro José Anselmo dos
Santos, 70 anos, o Cabo Anselmo.
Entre
eles, o escritor e jornalista pernambucano Urariano Mota, que me enviou este
e-mail:
A negação
da anistia foi boa, e fiquei muito feliz.
Acredite
você, há um blog de direita afirmando que vai levar a negação a tribunais
internacionais, que isso poderia dar em imepachment de Dilma, etc.etc. Eu sabia
que eram loucos, mas não nesse nível.
Uariano
nunca o viu pessoalmente, mas o
“conhece”, como me contou em entrevista em 2009: “Conheço o Cabo Anselmo por seus
cadáveres, que ele arrasta como uma cauda. Fui, sou amigo de quem ele
perseguiu, traiu e matou”.
Na época,
Urariano estava lançando o livro Soledad no Recife, pela editora Boitempo.
Soledad
Barret Viedma era uma jovem idealista, corajosa, doce e linda, muito linda. Foi
torturada e morta no Recife em 1973, grávida, depois de ser entregue ao
delegado Sílvio Paranhos Fleury, traída pelo
cabo Anselmo, de quem trazia um filho na barriga.
Para
reforçar a importância dessa decisão da Comissão de Anistia, Urariano nos
mandou este capítulo do livro Soledad no Recife. Confiram.
Daniel,
Anselmo, Anselmo/Daniel vai até o muro do jardim e olha o mar azul de Piedade.
Para fazer o que tem vontade, ele pularia o muro e, longe desse canto, ele
voltaria a ser Simbad, o marujo, em busca de aventuras, do heroísmo de
Hollywood, das histórias em quadrinhos. Então ele seria resgatado pela esquadra
norte-americana, rumo ao Pacífico, ao Havaí, longe, bem longe dessa história
concreta de ter de entregar isso. “Isso” é Soledad. Se o vemos mal, dele vemos
que não lhe dói em absoluto entregar, delatar, fazer aprisionar, eliminar isso,
essa mulher. Todas as ações necessárias, exceto trair. Trair, nunca. Não se
trai aquilo em que não se acredita, ou, pelo menos, aquilo em que um lance
esperto de sobrevivência foi levado a acreditar. Ele não é nem será jamais um
traidor. Traidor é quem trai a pátria. Traidor não pode ser quem entrega o
terror, o terrorismo, os terroristas. Pero Soledad ergue a voz na cozinha, ou
por decibéis sensíveis aos ouvidos de captação de Anselmo, ou pelo silêncio que
se faz no encanto, parece erguer a voz. Nem sequer se ouve um riso, uma folha
que cai, um gelo em um copo. No cigarro que ele fuma, a própria fumaça canta:
“La
Navidad que les canto
no tiene
luz
se va
tiznando en la noche
de Juan
Laguna”
E Anselmo,
Anselmo sua máscara entende esse espanhol y esa Navidad, que lhe chega também
com o sentido de nascimento, la navidad que les canto no tiene luz. Vira-se
para a esquerda e olha o mar. “Isso passa. Calma, hombre. Terás a compreensão
daqueles olhos verdes, claros e vivos de Fleury”. E sorri íntimo. Mas fuma:
“Así por
dentro del sueño pasa llorando la luna”.
O que lhe
dói não é de modo nenhum – “Culpa zero, entende? Culpa zero” –, não é bem doer, o que o incomoda é a
incompreensão do mundo. É a burrice e o preconceito de todos. Vão culpá-lo do
que não está em sua consciência. Em sua treinada e prática consciência. “Se eu
não me julgo um criminoso, eu não sou criminoso. O que vale é o que eu sei”. E
se põe a mover a cabeça para um e outro lado, como um mangusto, um suricato na
savana.
“Se le va
hundiendo en los ojos largo el camino”.
Se o vemos
bem, e a obrigação de compreendê-lo, de tocar a verdade, a isso nos obriga,
notaremos que o ser Daniel de sua alma teria preferido não matar Soledad.
Melhor, ele não usa a palavra matar, ele diz pegar, pegar Soledad. Matar,
mata-se galinha. Galinha se mata quebrando-lhe ou sangrando o pescoço. E o
réptil lhe volta ao ser, a balançar o queixo enquanto se afirma “Eu sou incapaz
de matar uma galinha. Me sinto mal, entende? Não gosto de quebrar, de sangrar
pescoço”. E não se diz, porque está claro e elementar como o horizonte azul do
mar, “que dirá matar gente, torcer e sangrar o pescoço de Sol”. Vem-lhe um
engulho, e Anselmo se diz, “beber rum com coca me ataca o fígado”. Se o vemos
bem, queremos dizer, se o vemos com a experiência de 36 anos depois, quando ele
declara que tentou salvar a companheira, pois assim se refere a ela diante dos
ouvidos morais, quando declara que pediu a seu estimado chefe que poupasse a
vida de Soledad, ainda o vemos como o homem que acha necessário se eximir da
culpa. Ele não é um bárbaro, um brutamontes, porque é atento e atencioso à
condenação coletiva. “Fiz o que pude, mas….”. E por assim considerá-lo bem,
devemos acreditar que fez o que pôde, no limite, na fronteira máxima da própria
sobrevivência. “Caralho”, dirá, “quem me cobra não sabe a barra-pesada daqueles
anos”, e, esperto que é, se não põe mais ênfase agora é porque precisa
justificar antes a sua “passagem”, supondo uma, da esquerda para a delação,
quando em mais de uma oportunidade fez o que ditou a sua consciência. Se o
vemos bem, ainda assim não podemos deixar de ver que a sua defesa é constituída
de remendos, precários, que a novos fatos cambiam sempre de posição.
Daniel,
assim de costas para todos, como se estivesse a fumar sozinho em busca de
respostas no mar, pode voltar a ser Anselmo, ele e ele mesmo.
“Muy
distraído se queda Com su destino…”.
Si. Se
assim fosse, idealista e belo, poderia repetir “puedo escribir los versos más
tristes esta noche”. Pero não, ele está nas vésperas, e por isso deve manter os
olhos bem abertos, bem certeiros de caçador, que fareja e sabe o lugar exato
para o tiro certo sobre a fera.
“Le está
soltando campanas la Nochebuena y en el arbolito cantan las arboledas”.
Arboledas
soam a ouvidos brasileiros como se fossem borboletas, mariposas, que na
arvorezinha de Natal estivessem a cantar. “Y en el arbolito cantan las
arboledas”. Seria, talvez, mais absurdo e mais belo, mariposas cantando na
arvorezinha de Natal. Mariposas amarelas, azuis, vermelhas, que belas, frágeis
e pássaras nem precisam cantar para encantar. Pois Soledad canta como uma
mariposa cantaria, se cantasse. As asas seriam as saias das dançarinas
paraguaias quando bailam. Há folheados de saias. “Como posso traí-la?”. Sim,
isso. Isso agora é isto: “Como posso traí-la?”. Soledad canta como se
cantarolasse. Por sua natureza canta, magnífica, mas desligada de si. “Até
parece que ela sabe”, Anselmo se fala, enquanto ouve e escuta “distraído se
queda com su destino”.
Lá na
cozinha ela faz a sua representação, se revela a mulher terra, terra, terra, ao
infinito da duração do seu canto. Todos a sentem. “Como posso traí-la?”. É
curioso, seria engraçado, mas até mesmo o pensamento de Anselmo lhe vem em uma
forma ambígua. Até mesmo na sua forma há uma ponte, que se liga ao lugar onde
se mandaria a solidariedade para o inferno. A partir de sua primeira forma de
remorso, “Como posso traí-la?”, que significa “Como posso trair essa ternura,
como posso me tornar infame ante essa mulher? Como posso me acanalhar ante essa
inocência feliz?”, o seu pensamento se liga ao “Como posso traí-la? De que modo
posso traí-la? Quais meios melhores para traí-la?”, até “Sim, de que modo
traí-la sem que me advenha qualquer culpa?”. Ele a seguir dirá, como o disse 11
anos depois, “Ela não morreu por minha culpa! Ela morreu pelo que ela defendia,
morreu por aquilo em que acreditava, morreu pelo caminho que ela escolheu. Ela
morreu como vítima do movimento comunista internacional, não por minha culpa”.
Mas então ele terá passado por um longo período de pensar em sua defesa, de
preparação para responder às pessoas normais, que não o entendem. “Sim”, ele
dirá, “ela era uma terrorista”, sim, completará, “ela sofreu um acidente de
percurso”. Para corrigir, “Não, não foi um acidente. A morte estava escrita
para toda aquela turma. Aconteceu o que tinha de acontecer. O que tinha de ser,
foi”. Mas agora, neste janeiro de 1973, não. Soledad canta e isso lhe dá um
arrepio, um incômodo, estúpido, enervante. Um arrepio perseguidor sem clemência
“Juanito
de la inocência canta en dormido Laguna así por dentro del sueño pasa llorando
la luna”.
“Caralho de mulher sentimental. Foda-se”. Há
um fato que ele evita. Há uma informação que sua consciência rejeita. Há uma
delação, um embaraço, un embarazo, a querer acorrentá-lo. Sol está grávida.
Soledad está grávida. ¿Y? Obstáculos de consciência assim ou se atravessam rápido
ou não se atravessam. Quem está determinado, sobre um obstáculo não se deve
deter. Si, ¿y? E daí, não é mesmo? O que isso quer dizer? Coisa mais comum,
mulher grávida. Caralho de sentimentalismo. Porra, se ela está grávida, putz,
foda-se. “Sei lá, cara, sei lá com quem ela trepa!… com quem ela faz ‘amor
livre’! Por que não se preveniu? Quem está na luta não se embaraça. Isso é um
princípio. Isso é ensinado desde o treinamento em Cuba. Ela não sabia? Putz.
Agora, sim… até parece. Ter de carregar pano de bunda de mulher. De mulher com
psoríase, de neurótica, de puta. Puta, sim. Onde está a responsabilidade?
¿Donde está su grave responsabilidad? Trepar sem DIU, trepar sem pílula,
foda-se. Comigo não, camarada”. E num esforço de concessão: “Ela defende o aborto,
não é mesmo? Então vá….”. Ele prova a própria língua como um chiclete. Para não encarar o oceano, fita a pequena
mata, o pequeno mangue à frente do muro do jardim. Nada vê da paisagem. “Nem
bucho ela tem. Sim, tem, mas só um pouquinho. Está só no começo”. E não vê
mata, nem o serviço sujo em toda a crueza, crueldade e conseqüência. Isso não é
com ele. O serviço está bem dividido, cada um com a sua tarefa. Matar, não,
isso não é com ele. “Nunca matei ninguém”, ele se diz, mas é incapaz, ainda que
com todo cinismo, de externar o que pensa, de falar isso em qualquer
entrevista. Porque é inteligente e não quer ser alvo de maledicência ou
zombaria. Pero ele sabe, ele mesmo, “para a minha consciência isto é o que é
importante: nunca matei ninguém”, e saboreia, alisa, evolui e amacia a própria
língua. Estala esse músculo importante como um chicle de bola.
Zenilton,
o bom palhaço, o pequeno farsante, o chama.
- Daniel,
vem cá, por favor.
Mas tão
absorto ele se encontra, que não se dá conta, não escuta. Ou ao chamado, ou à
voz esganiçada que auxilia o não ser ouvida por este nome, Daniel. Jônatas,
Jonas, Daniel são peles próximas da queda do seu corpo. São como perispíritos,
como os seriados no cinema de sua infância, quando via bandidos entrarem no
corpo de pessoas pela simples dose de um remédio, e depois saíam para assumir
outra identidade. Pero acá o bandido é outro, o lado do mal está invertido, o
mal aqui se veste de bem, o terror quer ser o bem. O terror quer ser a justiça.
O cacete. O terrorista quer ser o futuro da humanidade. O caralho.
“Sobre la
mesa, un pan dulce, un arbolito, unos juguetes. Jugando, sus hermanitos”.
Quem
quiser que se engane com essa idiotice. Putz.
- Daniel,
Juanito pelas costas o toca.
Ele
estremece. Vira-se. Coisa estranha, pareceu-lhe receber um toque de Juanito.
- Daniel,
vamos entrar, lhe fala Zenilton. Chegou a hora da surpresa de Sol.
-
Surpresa?!
- O bolo
do aniversário. Estava esquecido?
- Não,
claro. Sim, sim. Vamos lá.
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