Um dos
intelectuais mais conceituados da atualidade, o sociólogo português Boaventura
de Sousa Santos conversou com O POVO na última sexta-feira, em Fortaleza, onde
participou do Encontro Internacional de Ecologia de Saberes
O
português Boaventura de Souza Santos tem o olhar firme, tanto quanto as
palavras que profere. É expressão das convicções de um dos sociólogos mais
festejados da atualidade. Aos 72 anos, é professor da Universidade de Coimbra,
sua cidade natal, e das universidades de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos,
e de Warwick, no Reino Unido.
Filho de
operários, aprendeu a atravessar o mundo na década de 1960, dividido entre os
estudos em Berlim Ocidental e uma namorada em Berlim Oriental. Mas escolheu o
marxismo nos Estados Unidos, em plena tensão da Guerra do Vietnã. “De alguma
maneira, foi nas entranhas do monstro que são os Estados Unidos que eu me
radicalizei”.
Ele
credita ao Brasil muito do que é. Esteve aqui pela primeira vez em 1970, viveu
na favela do Jacarezinho. Daquela Pasárgada, como ele chamava o lugar em
referência ao poema de Manoel Bandeira, ficaram lições. “Aqueles homens e
mulheres viviam no meio de muito sofrimento, mas também de muita alegria”.
Também traz lembranças do Recife da década de 1980, entre os conflitos do
Agreste, menciona o fascínio pelo cearense Dom Hélder Câmara.
Em
entrevista na última sexta-feira em Fortaleza, onde participou do Encontro
Internacional de Ecologia de Saberes, disse que o Brasil passa por uma
modernização conservadora. Afirma com a didática do professor que é, na qual o
baile tranquilo das mãos tem papel fundamental, que parte do poder
latino-americano se deve a “desatenção” dos Estados Unidos.
Mas o tom
muda quando as interrogações lhe soam conservadoras durante a entrevista. Menos
professor e mais militante, interrompe as perguntas e suas respostas passam a
requerer pontos de exclamação na transcrição. “Tenho hoje pouca paciência com
jornalistas conservadores, que estão a serviço das empresas, e que vêm fazer entrevista
comigo para me chatear”. Por algumas vezes, pediu para encerrar a entrevista,
mas cedeu ao apelo da repórter para que fossem adiante. “Esse é o papel da
imprensa”, reconheceu sorrindo ao fim da conversa na Casa José de Alencar.
O POVO - O
senhor é filho de operários. Foi em casa que nasceu sua opção pelo marxismo?
Boaventura
Sousa dos Santos - Fui o primeiro estudante de direito que vinha da classe
operária, o que era um escândalo. Estudei filosofia em Berlim Ocidental, onde
namorei uma alemã que morava em Berlim Oriental, quando conheci a realidade do
socialismo real e da republica democrática da Alemanha. Eu atravessava o mundo
todos os dias. Mas a minha opção socialista foi construída mais tarde. No final
da década de 1960, fui estudar nos Estados Unidos. Era o auge da luta contra a
Guerra do Vietnã. De alguma maneira, foi nas entranhas do monstro que são os
Estados Unidos que eu me radicalizei, me formei politicamente. Também do ponto
de vista teórico, de uma sociologia crítica. Era uma sociologia mais sensível à
luta politica.
OP- Em
seguida, o senhor veio para o Brasil?
Boaventura
- Eu escrevi como tema na área da sociologia do direito uma dissertação sobre
estudar e viver numa favela no Rio de Janeiro, em Jacarezinho, em tempo de
ditadura, em 1970. Morei cerca de meio ano nessa favela, que eu chamei
Pasárgada, o tema do Manoel Bandeira.
OP - Como
foi sua relação com essa Pasárgada?
Boaventura
- Era um momento duro da ditadura brasileira e não era muito frequente o tipo
de estudos que eu vivi. Essa foi a minha grande lição de vida. Foi uma
experiência muito rica para mim de viver cotidianamente aquelas pessoas,
algumas das quais eram analfabetos sábios. Eu consegui a confiança de líderes,
de partidos comunistas e de grupos nas associações de moradores. O meu trabalho
era analisar o que acontecia na associação dos moradores, como surgiam os
litígios. Aqueles homens e mulheres acordavam 5h,6h para ir trabalhar, chegavam
à meia-noite. Viviam no meio de muito sofrimento, mas também de muita alegria.
OP - De
lá, o senhor foi para os Estados Unidos?
Boaventura
- Eu estava já viajando com um emprego nos Estados Unidos, trabalhava com a
universidade. Foram momentos muito importantes e eu iria seguir a carreira
internacional. Mas a revolução de 25 de fevereiro me levou a tomar conta do meu
país e fiquei à frente de uma faculdade que tinha acabado de ser criada, de
economia. Mas sempre mantive contato com o Brasil. Em 1980 voltei para escrever
a pesquisa. No Recife, trabalhei com Dom Hélder Câmara, uma pessoa fascinante.
E vivi muito as ocupações urbanas, muita violência no agreste contra os
líderes.
OP – O
senhor diz que o Brasil vive uma modernização conservadora. O que isso
significa?
Boaventura
- O Brasil está num processo de modernização que eu considero conservadora
porque assentada fundamentalmente num desenvolvimentismo com certo controle de
estado. Não é propriamente um governo de direita que entregaria tudo às
privatizações. O Brasil possui direcionamentos nacionais como vimos com o
leilão do pré-sal, mas fica por aí. Não procura dar atenção a outra coisa que
não seja reduzir a pobreza, o que é muito importante. Mas as pessoas depois de
comerem três vezes ao dia querem uma boa educação, bom transporte público... É
um absurdo que o Brasil seja um dos países onde mais se praticam cesáreas. O
capitalismo entrou muito na vida das pessoas especialmente na saúde.
OP – E na
política, como estamos?
Boaventura
- Temos um poder político dividido, entre um governo que continua a pensar como
um progressista, mas emergiu de lutas muito importantes. Conseguiu certa
inclusão social e econômica, embora os ricos também tivessem aumentado muito
suas riquezas. Os partidos transformaram-se em agências do poder, o PT não se
renovou, os movimentos sociais pensaram que tinham um amigo no poder e
adormeceram. Os próprios partidos deixaram de fazer seu trabalho, há certa
terceirização da militância.
OP – Quais
as diferenças entre Lula e Dilma?
Boaventura
– Lula era mais amigável com os movimentos sociais, existia a possibilidade de
falar com o presidente. Existia uma política neoliberal, mas com uma
consciência social que se perdeu um pouco com a presidente Dilma. Talvez por
causa da sua austeridade, sua resistência em receber movimentos sociais. E há
uma receptividade maior (da Dilma) ao capital financeiro e industrial. Há
também a intenção de que o Brasil se desenvolva a nível internacional. Mas há
outros aspectos interessantes. Dilma foi a mulher que, corajosamente, enfrentou
Obama, ao cancelar visita à Casa Branca. Ninguém podia imaginar que um
presidente da América Latina enfrentasse ao grande país hegemônico. Mas, por
outro lado, não abriu espaço para a democracia participativa. A frustração nos
levou às ruas. E não penso como alguns amigos queridos, como Marilena Chauí, que
acreditam que esses protestos são de uma classe média desencantada e, portanto,
com certo perfil de direita. Os indignados na Espanha e em Portugal querem o
mesmo: uma democracia real. Querem ser incluídos politicamente.
OP – Os
conceitos de direita e de esquerda ainda servem para definir as ideias hoje?
Boaventura
- Servem mais do que nunca. Não serve é como está a direita e a esquerda. O que
chamam de progresso é a concentração do poder econômico e a transformação desse
poder em poder político, com detrimentos das classes populares. Se a esquerda
for realmente isso, que é o que acontece na Europa hoje, isso não faz sentido.
No entanto, nós da Europa, o que estamos vendo é uma renovação do pensamento de
esquerda. A esquerda tem que se renovar e deixar de ser refém do que se chamou
na Europa de terceira via que foi aceitar o neoliberalismo, as privatizações, a
liberalização, a desregulamentação do Estado, etc. Portanto, a esquerda nunca
fez tanto sentido como hoje, mas tem que ser outra esquerda.
OP – Quais
as semelhanças entre Lula, o presidente boliviano Evo Morales e o ex-presidente
venezuelano Hugo Chávez?
Boaventura
- São entidades muito distintas. Mas que trazem algo de inovador, que na
verdade trouxe a América Latina a nível mundial. Há governos progressistas
importantes neste continente. Mas na primeira década (nos anos 1990) houve um
período muito luminoso porque teve governos progressistas que fizeram
transformações importantes, contra as oligarquias e pensamentos conservadores,
ditatoriais. Eles são diferentes entre si, mas que tem em comum uma coisa:
chegaram ao poder com base em movimentações populares, de forma democrática,
com programas de inclusão social. O Bolsa Família não é nada revolucionário.
Tinha até sido teorizado pelo Banco Mundial como política compensatória, mas
foi isso o que permitiu que milhões saíssem da pobreza. Temos muitas diferenças
entre estes governos, então o que há de comum entre eles? Nenhum deles mudou o
modelo capitalista. Deram mais peso ao estado, mas, acima de tudo, aproveitaram
o boom dos recursos naturais devido ao desenvolvimento da China.
OP - A que
se deve isso o aumento do poder da América Latina?
Boaventura
- Isto foi uma coincidência histórica que se deveu a dois fatores. O primeiro
foi o desenvolvimento da China, que valoriza os recursos naturais. A esquerda
latino-americana tinha esse pecado original de ser contra o desenvolvimento,
mas, quando chegou ao poder, viu que poderia ser desenvolvimentista. E, com
desenvolvimento, fazer distribuição social. Este é o primeiro fato. O segundo é
que os Estados Unidos estavam concentrados no Oriente Médio e não prestaram
atenção ao que acontecia na América Latina, porque, em outros tempos, eles não
tinham autorizado esses governos.
OP – Os
avanços sociais acompanharam esse aumento de poder?
Boaventura
- O continente conseguiu essas políticas, mas não cuidou de duas coisas: das
populações e dos direitos coletivos. O governo está se tornando cada vez mais
conservador, sem responsabilidades ambientais.
OP –
Existe uma saída? Um modelo ou país que...
Boaventura
– (interrompe) Com todo respeito, essa é uma pergunta errada. É uma pergunta
conservadora. Haverá algum país que faça a diferença? Você imagina que o Brasil
poderá fazer a diferença pela primeira vez? Ou a Bolívia? Nós reunimos 35 mil
pessoas em Cochabamba (Bolívia) para mostrar que era possível fazer coisas
novas nesse continente. Portanto, há outros modelos possíveis. Mas são os
modelos que ninguém está a pedir. É uma coisa extremamente perigosa da direita.
Quando se faz a mínima crítica, o neoliberalismo diz que não há alternativa.
OP - E
qual é a alternativa?
Boaventura
- Veja, os Estados Unidos dizem uma coisa e fazem outra. E a Europa agora tem
que fazer o mesmo. Portanto, o neoliberalismo é uma grande farsa! Há
alternativas para eles, mas eles não divulgam porque não querem que todo mundo
faça. No Canadá, as empresas de mineração são impecáveis na questão do meio
ambiente, respeitam as questões dos direitos dos povos indígenas, etc. Mas chegam
no Brasil ou em Moçambique e atuam de outra maneira. É preciso e necessário
cuidar do meio ambiente e desses jovens que querem uma democracia real. Esta é
a alternativa! Se você fosse filha ou mulher do José Maria (José Maria do Tomé,
agricultor assassinado com 25 tiros em Limoeiro do Norte, depois de denunciar
impactos do uso indiscriminado de agrotóxicos na região), não me faria essa
pergunta. Tem que haver uma alternativa porque esse desenvolvimento está a
matar gente.
OP – O
progresso destrói a democracia ou...
Boaventura
- (interrompe) Não tem nada a ver com o progresso, minha amiga! É a acumulação
de capital. É encher os bolsos de super ricos. Isso não é progresso! É
concentração de riqueza. É a destruição do meio ambiente. O progresso é um mito
que está totalmente desacreditado. Eu não acredito no mito do progresso.
OP - Nos
seus estudos...
Boaventura
– (interrompe) eu acho que está na hora de terminar a entrevista.
OP - Só
mais uma pergunta... O senhor analisa a sociologia das emergências versus a sociologia
das ausências. Fala das experiências humanas. Quais as experiências que entram
na sua análise?
Boaventura
- O que eu chamo de sociologia das ausências é fundamentalmente as experiências
das pessoas que lutam pela dignidade da vida, mas que são desconhecidas, são
humilhadas, são mortas, violentadas. A sociologia das ausências representa as
pessoas do Brasil que não conhecem o José Maria, por exemplo. Trazer a
sociologia da emergência é mostrar a urgência do desenvolvimento de um modelo
que está a destruir a vida.
Fonte: O
Povo
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