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quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Ideias de um intelectual militante (Boaventura de Sousa Santos)

Um dos intelectuais mais conceituados da atualidade, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos conversou com O POVO na última sexta-feira, em Fortaleza, onde participou do Encontro Internacional de Ecologia de Saberes
O português Boaventura de Souza Santos tem o olhar firme, tanto quanto as palavras que profere. É expressão das convicções de um dos sociólogos mais festejados da atualidade. Aos 72 anos, é professor da Universidade de Coimbra, sua cidade natal, e das universidades de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, e de Warwick, no Reino Unido.
Filho de operários, aprendeu a atravessar o mundo na década de 1960, dividido entre os estudos em Berlim Ocidental e uma namorada em Berlim Oriental. Mas escolheu o marxismo nos Estados Unidos, em plena tensão da Guerra do Vietnã. “De alguma maneira, foi nas entranhas do monstro que são os Estados Unidos que eu me radicalizei”.

Ele credita ao Brasil muito do que é. Esteve aqui pela primeira vez em 1970, viveu na favela do Jacarezinho. Daquela Pasárgada, como ele chamava o lugar em referência ao poema de Manoel Bandeira, ficaram lições. “Aqueles homens e mulheres viviam no meio de muito sofrimento, mas também de muita alegria”. Também traz lembranças do Recife da década de 1980, entre os conflitos do Agreste, menciona o fascínio pelo cearense Dom Hélder Câmara.
Em entrevista na última sexta-feira em Fortaleza, onde participou do Encontro Internacional de Ecologia de Saberes, disse que o Brasil passa por uma modernização conservadora. Afirma com a didática do professor que é, na qual o baile tranquilo das mãos tem papel fundamental, que parte do poder latino-americano se deve a “desatenção” dos Estados Unidos.
Mas o tom muda quando as interrogações lhe soam conservadoras durante a entrevista. Menos professor e mais militante, interrompe as perguntas e suas respostas passam a requerer pontos de exclamação na transcrição. “Tenho hoje pouca paciência com jornalistas conservadores, que estão a serviço das empresas, e que vêm fazer entrevista comigo para me chatear”. Por algumas vezes, pediu para encerrar a entrevista, mas cedeu ao apelo da repórter para que fossem adiante. “Esse é o papel da imprensa”, reconheceu sorrindo ao fim da conversa na Casa José de Alencar.
O POVO - O senhor é filho de operários. Foi em casa que nasceu sua opção pelo marxismo?
Boaventura Sousa dos Santos - Fui o primeiro estudante de direito que vinha da classe operária, o que era um escândalo. Estudei filosofia em Berlim Ocidental, onde namorei uma alemã que morava em Berlim Oriental, quando conheci a realidade do socialismo real e da republica democrática da Alemanha. Eu atravessava o mundo todos os dias. Mas a minha opção socialista foi construída mais tarde. No final da década de 1960, fui estudar nos Estados Unidos. Era o auge da luta contra a Guerra do Vietnã. De alguma maneira, foi nas entranhas do monstro que são os Estados Unidos que eu me radicalizei, me formei politicamente. Também do ponto de vista teórico, de uma sociologia crítica. Era uma sociologia mais sensível à luta politica.
OP- Em seguida, o senhor veio para o Brasil?
Boaventura - Eu escrevi como tema na área da sociologia do direito uma dissertação sobre estudar e viver numa favela no Rio de Janeiro, em Jacarezinho, em tempo de ditadura, em 1970. Morei cerca de meio ano nessa favela, que eu chamei Pasárgada, o tema do Manoel Bandeira.
OP - Como foi sua relação com essa Pasárgada?
Boaventura - Era um momento duro da ditadura brasileira e não era muito frequente o tipo de estudos que eu vivi. Essa foi a minha grande lição de vida. Foi uma experiência muito rica para mim de viver cotidianamente aquelas pessoas, algumas das quais eram analfabetos sábios. Eu consegui a confiança de líderes, de partidos comunistas e de grupos nas associações de moradores. O meu trabalho era analisar o que acontecia na associação dos moradores, como surgiam os litígios. Aqueles homens e mulheres acordavam 5h,6h para ir trabalhar, chegavam à meia-noite. Viviam no meio de muito sofrimento, mas também de muita alegria.
OP - De lá, o senhor foi para os Estados Unidos?
Boaventura - Eu estava já viajando com um emprego nos Estados Unidos, trabalhava com a universidade. Foram momentos muito importantes e eu iria seguir a carreira internacional. Mas a revolução de 25 de fevereiro me levou a tomar conta do meu país e fiquei à frente de uma faculdade que tinha acabado de ser criada, de economia. Mas sempre mantive contato com o Brasil. Em 1980 voltei para escrever a pesquisa. No Recife, trabalhei com Dom Hélder Câmara, uma pessoa fascinante. E vivi muito as ocupações urbanas, muita violência no agreste contra os líderes.
OP – O senhor diz que o Brasil vive uma modernização conservadora. O que isso significa?
Boaventura - O Brasil está num processo de modernização que eu considero conservadora porque assentada fundamentalmente num desenvolvimentismo com certo controle de estado. Não é propriamente um governo de direita que entregaria tudo às privatizações. O Brasil possui direcionamentos nacionais como vimos com o leilão do pré-sal, mas fica por aí. Não procura dar atenção a outra coisa que não seja reduzir a pobreza, o que é muito importante. Mas as pessoas depois de comerem três vezes ao dia querem uma boa educação, bom transporte público... É um absurdo que o Brasil seja um dos países onde mais se praticam cesáreas. O capitalismo entrou muito na vida das pessoas especialmente na saúde.
OP – E na política, como estamos?
Boaventura - Temos um poder político dividido, entre um governo que continua a pensar como um progressista, mas emergiu de lutas muito importantes. Conseguiu certa inclusão social e econômica, embora os ricos também tivessem aumentado muito suas riquezas. Os partidos transformaram-se em agências do poder, o PT não se renovou, os movimentos sociais pensaram que tinham um amigo no poder e adormeceram. Os próprios partidos deixaram de fazer seu trabalho, há certa terceirização da militância.
OP – Quais as diferenças entre Lula e Dilma?
Boaventura – Lula era mais amigável com os movimentos sociais, existia a possibilidade de falar com o presidente. Existia uma política neoliberal, mas com uma consciência social que se perdeu um pouco com a presidente Dilma. Talvez por causa da sua austeridade, sua resistência em receber movimentos sociais. E há uma receptividade maior (da Dilma) ao capital financeiro e industrial. Há também a intenção de que o Brasil se desenvolva a nível internacional. Mas há outros aspectos interessantes. Dilma foi a mulher que, corajosamente, enfrentou Obama, ao cancelar visita à Casa Branca. Ninguém podia imaginar que um presidente da América Latina enfrentasse ao grande país hegemônico. Mas, por outro lado, não abriu espaço para a democracia participativa. A frustração nos levou às ruas. E não penso como alguns amigos queridos, como Marilena Chauí, que acreditam que esses protestos são de uma classe média desencantada e, portanto, com certo perfil de direita. Os indignados na Espanha e em Portugal querem o mesmo: uma democracia real. Querem ser incluídos politicamente.
OP – Os conceitos de direita e de esquerda ainda servem para definir as ideias hoje?
Boaventura - Servem mais do que nunca. Não serve é como está a direita e a esquerda. O que chamam de progresso é a concentração do poder econômico e a transformação desse poder em poder político, com detrimentos das classes populares. Se a esquerda for realmente isso, que é o que acontece na Europa hoje, isso não faz sentido. No entanto, nós da Europa, o que estamos vendo é uma renovação do pensamento de esquerda. A esquerda tem que se renovar e deixar de ser refém do que se chamou na Europa de terceira via que foi aceitar o neoliberalismo, as privatizações, a liberalização, a desregulamentação do Estado, etc. Portanto, a esquerda nunca fez tanto sentido como hoje, mas tem que ser outra esquerda.
OP – Quais as semelhanças entre Lula, o presidente boliviano Evo Morales e o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez?
Boaventura - São entidades muito distintas. Mas que trazem algo de inovador, que na verdade trouxe a América Latina a nível mundial. Há governos progressistas importantes neste continente. Mas na primeira década (nos anos 1990) houve um período muito luminoso porque teve governos progressistas que fizeram transformações importantes, contra as oligarquias e pensamentos conservadores, ditatoriais. Eles são diferentes entre si, mas que tem em comum uma coisa: chegaram ao poder com base em movimentações populares, de forma democrática, com programas de inclusão social. O Bolsa Família não é nada revolucionário. Tinha até sido teorizado pelo Banco Mundial como política compensatória, mas foi isso o que permitiu que milhões saíssem da pobreza. Temos muitas diferenças entre estes governos, então o que há de comum entre eles? Nenhum deles mudou o modelo capitalista. Deram mais peso ao estado, mas, acima de tudo, aproveitaram o boom dos recursos naturais devido ao desenvolvimento da China.
OP - A que se deve isso o aumento do poder da América Latina?
Boaventura - Isto foi uma coincidência histórica que se deveu a dois fatores. O primeiro foi o desenvolvimento da China, que valoriza os recursos naturais. A esquerda latino-americana tinha esse pecado original de ser contra o desenvolvimento, mas, quando chegou ao poder, viu que poderia ser desenvolvimentista. E, com desenvolvimento, fazer distribuição social. Este é o primeiro fato. O segundo é que os Estados Unidos estavam concentrados no Oriente Médio e não prestaram atenção ao que acontecia na América Latina, porque, em outros tempos, eles não tinham autorizado esses governos.
OP – Os avanços sociais acompanharam esse aumento de poder?
Boaventura - O continente conseguiu essas políticas, mas não cuidou de duas coisas: das populações e dos direitos coletivos. O governo está se tornando cada vez mais conservador, sem responsabilidades ambientais.
OP – Existe uma saída? Um modelo ou país que...
Boaventura – (interrompe) Com todo respeito, essa é uma pergunta errada. É uma pergunta conservadora. Haverá algum país que faça a diferença? Você imagina que o Brasil poderá fazer a diferença pela primeira vez? Ou a Bolívia? Nós reunimos 35 mil pessoas em Cochabamba (Bolívia) para mostrar que era possível fazer coisas novas nesse continente. Portanto, há outros modelos possíveis. Mas são os modelos que ninguém está a pedir. É uma coisa extremamente perigosa da direita. Quando se faz a mínima crítica, o neoliberalismo diz que não há alternativa.
OP - E qual é a alternativa?
Boaventura - Veja, os Estados Unidos dizem uma coisa e fazem outra. E a Europa agora tem que fazer o mesmo. Portanto, o neoliberalismo é uma grande farsa! Há alternativas para eles, mas eles não divulgam porque não querem que todo mundo faça. No Canadá, as empresas de mineração são impecáveis na questão do meio ambiente, respeitam as questões dos direitos dos povos indígenas, etc. Mas chegam no Brasil ou em Moçambique e atuam de outra maneira. É preciso e necessário cuidar do meio ambiente e desses jovens que querem uma democracia real. Esta é a alternativa! Se você fosse filha ou mulher do José Maria (José Maria do Tomé, agricultor assassinado com 25 tiros em Limoeiro do Norte, depois de denunciar impactos do uso indiscriminado de agrotóxicos na região), não me faria essa pergunta. Tem que haver uma alternativa porque esse desenvolvimento está a matar gente.
OP – O progresso destrói a democracia ou...
Boaventura - (interrompe) Não tem nada a ver com o progresso, minha amiga! É a acumulação de capital. É encher os bolsos de super ricos. Isso não é progresso! É concentração de riqueza. É a destruição do meio ambiente. O progresso é um mito que está totalmente desacreditado. Eu não acredito no mito do progresso.
OP - Nos seus estudos...
Boaventura – (interrompe) eu acho que está na hora de terminar a entrevista.
OP - Só mais uma pergunta... O senhor analisa a sociologia das emergências versus a sociologia das ausências. Fala das experiências humanas. Quais as experiências que entram na sua análise?
Boaventura - O que eu chamo de sociologia das ausências é fundamentalmente as experiências das pessoas que lutam pela dignidade da vida, mas que são desconhecidas, são humilhadas, são mortas, violentadas. A sociologia das ausências representa as pessoas do Brasil que não conhecem o José Maria, por exemplo. Trazer a sociologia da emergência é mostrar a urgência do desenvolvimento de um modelo que está a destruir a vida.
Fonte: O Povo

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