Existe uma
grande aproximação narrativa entre o seriado televisivo "The Walking
Dead" e o sentimento de insegurança que se instalou no espírito urbano de
uma parte da população de Fortaleza (Ceará / Brasil). Sendo possível fazer uma
metáfora entre o programa televisivo e a intitulada "Fortaleza
Apavorada", talvez seja também possível demonstrar que há uma lógica
inerente às novas formas de dissociação entre as diversas realidades urbanas, a
partir da perspectiva da exclusão social. Assim, ficariam mais expostas as
linhas divisórias -- abissais -- que dividem a cidade, de forma caricata em
relação às outras capitais brasileiras. Dessa foma, estar apavorado é fugir dos
nossos "zumbis sociais".
Primeiramente,
vamos situar a narrativa do "apocalipse zumbi", presente na obra
cinematográfica citada. Trata-se de um gênero que ganhou popularidade nos
países anglo-saxões por meio da obra do europeu George A. Romero - "The
Night of the Living Dead" (1968) -, no qual a humanidade é destruída por
uma calamidade qualquer (vírus, bactéria, radiação etc), que transforma os
seres humanos em zumbis comedores de carne humana. Sem entrar no enredo
propriamente dito -- até mesmo porque há diversos filmes com a mesma narrativa,
com pequenas variações --, o que importa observar é a forma como a população
que consegue sobreviver à praga global entrincheira-se, de forma a evitar o
contágio, visto que qualquer mordida de um contaminado e a morte transforma o
sobrevivente num morto-vivo.Nesse contexto, os "normais" são aqueles
que conseguem evitar o contato e, evidentemente, a contaminação com os
"anormais"; isso significa que, para continuar vivo, o grupo de
humanos rivaliza necessariamente por acesso aos recursos econômicos (água,
comida, remédios etc) nos espaços sociais onde há uma infestação de "comedores
de gente". E como fazer para evitar ser transmudado num zumbi? Armas!
Armas e muita violência, posto que essas pessoas, no seriado, vivem num estado
de anormalidade, no qual todas as instituições estatais e sociais foram
destruídas -- imperando a máxima de "cada um por si" e do
"salve-se quem puder", diante da qual a eliminação dos fracos e
contaminados é quase mandatória, para garantir a continuidade da vida e do
acesso aos recursos que a garantem.
Nenhuma
outra narrativa parece tão apropriada quanto aquela, para se delinear a segunda
narrativa deste texto, qual seja, da "Fortaleza apavorada". Esta, por
sua vez, reside no sentimento de "abandono", que deriva da
insegurança pública que transpôs os limites da periferia pobre e invadiu o
centro financeiro da capital alencarina. A violência -- tanto a
institucionalizada, quanto a não-institucionalizada --, que era uma realidade
das comunidades carentes (favelas) que circundam o centro urbano propriamente
dito, agora converte-se numa regra geral, diante da impossibilidade de se
concertar os problemas inerentes à pobreza e correlata incapacidade de se
controlar a criminalidade somente com o recurso à polícia.
Em outras
palavras, isso significa que, enquanto a violência física (agressões, mortes,
assassinatos, roubos, estupros etc) faziam parte do cotidiano apenas das
pessoas submetidas à violência econômica (pobreza, marginalização etc), a
camada beneficiada pelo gozo dos direitos e das facilidades do mercado levava
sua vida de consumo com um certo receio: a de que esse consumo poderia ser
eventualmente suprimido. Isso porque a cidadania, nos tempos que correm,
resume-se à cidadania econômica de consumo; quanto mais consumo, mais
cidadania, maior é a inserção social e, consequentemente, mais
"normal". Significa, também, que toda e qualquer forma de
comportamento que danifique ou se rebele contra a autoridade da lei do mercado
-- que define essas linhas urbanas (abissais) -- precisa ser combatida com a
violência física apropriada e institucionalizada, com a proporcionalidade do
delito cometido (como se pudesse ser submetida à análise economêtrica, como uma
grandeza de ordem econômica, e não social).
Diante
disso, é necessário reconhecer duas posições nessa comparação: (a) a da maioria
numérica desprovida dos recursos financeiros e do espaço urbano central, do
qual só podem aspirar a utilização caso estejam a realizar serviços e a
produzir bens que não irão consumir; (b) a da minoria numérica, sobrevivente às
calamidades da pobreza. No primeiro espaço, há o domínio das drogas, da
banalidade da violência, da violência doméstica e urbana como condições
inerentes à vida. No segundo espaço, prevalece a competição pelo acesso aos
bens e aos serviços e a submissão à lex mercatoria (uma lei acima do próprio
Estado, supranacional) -- sendo esta última elevada à categoria de dogma
(realidade inquestionável).
Diante
disso, quais as soluções apresentadas pela "Fortaleza Apavorada"?
A primeira
delas vem da confiança (ainda que simbólica) nas instituições sociais
consubstanciadas no aparato estatal. Nesse ponto, a reivindicação é por
melhoria do aparelhamento, remuneração e do efetivo das forças policiais
(recrutadas, também, dentre os cidadãos com menor poder aquisitivo) -- efetivo
humano que, por razão das contingências sócio-econômicas, vê-se obrigado a
entrar numa mini-guerra civil com os "anormais" que se inserem no
crime. Essa ótica vê no Estado um instrumento coativo legitimado apenas a
manter o status quo, visto existir uma ordem normativa superior (lex
mercatoria) que é a única infalível e perfeitamente apta a regular a vida
social; pertence à leitura weberiana de Estado, que predomina até hoje nos
bancos das faculdades de Direito.
A segunda
solução é o clamor pelo direito de resposta imediato à violência oriunda da
"anormalidade": a violência privada e não institucionalizada, assente
na ideia de autonomia e autotutela. Essa perspectiva, ao contrário da primeira,
é uma espécie de distopia; distopia não no sentido de "apego à
realidade", mas de negação da utopia, pela defesa da sociedade do horror
-- um aspecto da sociedade do espetáculo de que nos falava a categoria de
Baudrillard. Os adeptos dessa via imaginam um cenário no qual são protagonistas
da defesa de seus próprios interesses, por meio de seus próprios recursos --
armas, segurança privada, organizações para-militares e congêneres --, e fazem
uso desse discurso porque possuem os meios materiais (armas, carros blindados e
dinheiro, enfim), capazes de substituir as instituições sociais e os mecanismos
jurídicos democraticamente eleitos para tal desiderato. Trata-se de uma
representação narcisística do "eu", que substitui o grande
"Outro" (sociedade), por não ver nele a possibilidade de realização
de seus interesses.
A terceira
e última via, e que menos reverbera nos canais tradicionais de comunicação
social, é a que exige a concretude de políticas públicas que ultrapassem a
linha desenvolvimentista (ou neodesenvolvimentista) e que realizem o objetivo
constitucional (política e utopicamente) positivado, de redução das
desigualdades sociais, por meio da não-discriminação e da efetivação dos
direitos sociais mínimos (educação, saúde e condições de trabalho digno). Isso
porque a "normalidade" não dispõe nem dos recursos, nem da vontade
política para realizá-la, haja vista a necessária reorganização de toda a malha
de relações sócio-institucionais, que implicaria numa reconfiguração política
da República -- única medida capaz de corrigir as discrepâncias entre o ser e o
dever ser.
E quais as
similaridades entre as duas narrativas, quais sejam, a dos mortos-vivos e a dos
fortalezenses apavorados?
A primeira
similaridade ocorre na noção de uma necessária separação entre as duas
realidades, que só pode ser garantida por meio de uma linha urbana (abissal),
que continue a cumprir o seu papel de separar a "normalidade" (do
consumo e da opulência) da "anormalidade" (da violências física e da
sócio-econômica); separação essa que garanta uma não contaminação entre os
providos de recursos materiais e os desprovidos desses mesmos recursos. Isso
porque é necessário que se deixe de fazer e que se deixe passar, quer dizer,
que se adote uma nova atitude política que ultrapasse a da continuidade da
produção e do consumo; é preciso gerar uma "descontinuidade" nessas
relações sociais dominantes. Reconhecer isso significa dar reconhecimento ao
confronto entre duas urbanidades: (i) uma comum à periferia, da fome e da
ausência de dignidade, e (ii) outra à "centralidade", onde se
concentra o dinheiro, da plenitude dos bens e das facilidades do mercado de
consumo e da opulência.
A segunda
similaridade é aquela hegemonicamente traduzida através do recurso à violência
institucionalizada e não institucionalizada; ela recorre ao uso da força, das
armas, do aparato coativo e coercitivo, como único instrumento capaz de manter
afastada a contaminação que ameaça o cotidiano do consumo e da ostentação que
somente o mercado (e suas leis internas) é capaz de proporcionar. Nesse
sentido, a normalidade é a sujeição a essas normas e a capacidade de usufruto
desse "campo do real", na medida em que haja uma adequação entre o
que se faz e o que se pode consumir, ou entre os meios e recursos, de um lado,
e a medida proporcional e desigual na obtenção dos bens, serviços e acesso aos
espaços urbanos, de outro lado.
A terceira
similaridade vem pela destruição discurso da terceira via, que seria a
reestruturação da sociedade, por meio de regras humanitárias e solidárias que
simplesmente não são mais aplicáveis, ante o horror generalizado pela tomada
dos espaços sociais pelos "anormais". Essa é a mais cruel de todas as
similaridades, pois reconhece que houve (ou que há) um discurso
jurídico-político de inserção social, mas que lhe nega qualquer eficácia. A
cidadania isonômica é uma promessa que não pode ser cumprida, uma das duas
razões: (1) para que ele se cumpra, é necessário suspender as benesses do
mercado, sacrificando o consumo e reestruturando a divisão social da riqueza;
(2) não vale a pena defendê-lo, pois as pessoas que se beneficiariam dele -- os
"anormais" -- não estariam aptos a gozar da "normalidade",
por já estarem inaptos ao convívio com os normais (não há cura para a
infestação apocalíptica dos zumbi). Diante dessas duas razões (hipotéticas), de
uma forma ou de outra, a periferia teria que ser "centralizada", e
isso seria o fim do espetáculo proporcionado entre os objetos do consumo e as
desigualdades (diferença na concentração do poder social) que eles proporcionam.
A única promessa viável é a cidadania econômica, centrada no consumo daqueles
que "já possuem".
Antes de
se concluir, deve-se reconhecer que o desastre escatológico (apocalíptico)
sempre indicou aos humanos que a normalidade diante do horror só se realiza com
apelo ao carpe diem -- prática social necessária à continuidade dos modelos de
organização social. O "deixai fazer, deixai passar" também é um
modelo ideológico subjacente à continuidade, pois se propõe a demonstrar a
necessidade de uma conduta permissiva que conduza a um fim (no sentido
escatológico) -- representa o "destino final": a síntese que põe
termo ao sofrimento e à existência humana, diante de uma lei superior,
inquestionável e fatal, sendo, por si, uma estratégia fatal.
Portanto, o
"anormal" é resistir à essa resolução, resistir à morte, à corrupção
da carne e do sangue. Insistir em ser -- é essa a estratégia do morto-vivo
-- é um comportamento que revoluciona,
que se opõe à evolução natural, às "fatalidades" e à morte. Ser um
morto-vivo (undead) reorganiza, traz de
volta à vida o que é podre, o que está em decomposição, alterando as dinâmicas
do espaço-tempo humano: a insegurança reside no fato de que os
"anormais" clamam os espaços (e os bens) materiais dos "não
infectados", mesmo que para isso tenham que matá-los. Enquanto isso, os
"normais" tem que eliminar os mortos-vivos, ou continuar aquartelados
e enclausurados nos condomínios e nas fortalezas... e a urbe segue seu rumo.
Escrito
por Antônio T. Praxedes
Fonte:
http://lobofrontal.blogspot.com.br/2013/10/a-fortaleza-apavorada-e-o-apocalipse.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário