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de propriedade da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura).
"Eu
sei, mas não devia" de Marina Colasanti recitado por Antônio Abujamra no
Provocações:
Eu sei
que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente
se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não
as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para
fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as
cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo
a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a
amplidão.
A gente
se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o
café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode
perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair
do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A
deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente
se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A
sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando
precisava tanto ser visto.
A gente
se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para
ganhar o dinheiro com que pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a
saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais
dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente
se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios.
A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir
publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável
catarata dos produtos.
A gente
se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de
cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na
luz natural. Às bactérias da água potável.
A gente
se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não
perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o
pescoço. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda
fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente
se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma
para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito. A gente se acostuma
para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar,
se perde de si mesma.
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