Como é que
o salário de um dia de trabalho acaba nas mãos de um Banqueiro que, sorridente
e em directo na televisão, diz que o país aguenta tudo? A história é simples,
demasiado simples.
Leio nas
notícias que a Câmara de Mafra, como tantas outras, está falida ou em risco de
falir ou com «sérios problemas financeiros». Uma das razões principais da falência
autárquica neste país, se não for a principal, é as autarquias serem, no
negócio imobiliário, a face pública dos fabulosos lucros privados que resultam
do loteamento das terras agrícolas ou ecológicas, e da sua transformação em
prédios urbanos. O investigador Pedro Bingre do Amaral explica-o como ninguém —
a margem de lucro entre um terreno passar de rural a urbano fica, no caso português, em mãos
privadas. Trata-se de um negócio — cito Paulo Morais — que só «tem margens de
lucro semelhantes no negócio de tráfico de droga no grossista, porque no
retalhista já é mais baixo». Se o terreno valia 5, passa a valer 50 000, por
exemplo. A diferença fica toda nas mãos privadas, desde 1965 até hoje. No resto
da Europa, essas mais-valias revertem sobretudo para o público sobre a forma de
impostos. Às Câmaras compete fazer, além disso, a urbanização — esgotos,
estradas, etc. — deste interminável conjunto de prédios que se vai construindo.
Entretanto,
um dia, pelo real funcionamento da lei da oferta e da procura, os Bancos
descobrem que têm na mão 5 e não 50 000. Os Bancos chamam o Governo que emite
dívida pública para que os Bancos não assumam o risco do negócio. O Governo,
para garantir a dívida pública, emitida para dar aos Bancos, corta salários e
pensões.
A Câmara
de Mafra anunciou estes dias um aumento do IMI de 0,3 para 0,5%. Entretanto,
aumentou o horário de trabalho dos seus funcionários para as 40 horas, quando
quase todos os municípios suspenderam e mantêm o horário de 35. A CM anunciou
também a redução da derrama — que incide sobre o lucro tributável das empresas.
Em poucas palavras: aumenta-se os impostos que incidem sobre o trabalho e
reduzem-se os impostos das empresas. Negócio do século!
Historicamente,
legitimava-se o capitalista como o homem que colocava o seu capital num negócio
e que, por isso, assumia lucros e perdas — e lucro seria assim o prémio pelo
risco que corria. Embora eu nunca tenha concordado com esta visão — tudo a mim
me parece extracção de trabalho, nada mais —, hoje, o que se verifica é que
quando as grandes empresas sofrem perdas (não as pequenas, afogadas em
impostos) o Estado assume-as, todas, emitindo dívida e enviando a conta para os
que vivem do salário e que não podem resistir ao saque fiscal. Para reduzir o
salário, corta-se no salário directo, mas faz-se mais, despedem-se
trabalhadores e exige-se aos que ficam que deixem de ter vida e trabalhem por 2
ou 3.
Hoje, por
acaso justamente em Mafra, numa grande superfície, vi escuteiros a embrulhar
presentes. Perguntei à responsável porque estavam eles ali, ao que ela me
respondeu que estavam ali «a fazer aquele trabalho e a angariar fundos para
ajudar as famílias carenciadas». Esclareci-a que, num país decente, aquilo era:
1) trabalho infantil mascarado de trabalho voluntário; 2) substituição de
trabalhadores que ocupam aquelas funções por trabalhadores que não recebem ou
recebem muito abaixo dos outros da mesma empresa; 3) que isso descapitaliza a
Segurança Social e o Estado Social porque há cada vez menos gente a descontar.
Finalmente, disse-lhe, com quietude, que ela não estava ali a ajudar famílias
carenciadas, estava a contribuir para as produzir: estava a ocupar, com
crianças, lugares de trabalhadores que, por aquela via também, não são
contratados. Acredito que ela o faça por bem… tenho quase a certeza disso, na
verdade; mas há homens que matam as mulheres porque «elas jamais conseguiriam
viver sem eles»— ou como dizia certo velho com barbas: de boas intenções «está o
inferno cheio!»
Por Raquel
Varela
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