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segunda-feira, 6 de outubro de 2014

TCU em rota de colisão com o Planalto

O Tribunal de Contas da União aumenta as críticas ao governo federal, que reclama do viés político da instituição
por André Barrocal
Ignorância”, “faniquito”, “posições simplistas e preconceituosas”, “maneira incivil, indelicada e desrespeitosa”, “estupefação”, “repúdio”. Não surpreende tal vocabulário ser usado numa conversa sobre futebol em mesa de bar ou em uma discussão no Facebook sobre política. Estranho é vê-lo em um tiroteio entre autoridades. Pois o governo e o Tribunal de Contas da União acabam de trocar tais gentilezas por causa de um relatório sobre assistência social. A desavença escancarou uma exasperação acumulada do Palácio do Planalto com o TCU e serve para compreender certa tensão interna na Corte.
Xodós do governo, os programas de assistência foram dissecados pelos auditores do tribunal, com conclusões críticas. Os técnicos apontaram uma ausência geral de medição da qualidade das ações. Seria o caso dos milhares de centros de assistência espalhados pelo País, considerados pouco eficientes, e do repasse de verba do Fundo Nacional de Assistência Social. O benefício financeiro a idosos e deficientes ignoraria gente merecedora do pagamento. Faltariam índices sobre o processo de desligamento de inscritos no Bolsa Família. Os critérios de pobreza estariam defasados e inchariam as estatísticas sobre redução da miséria. Aprovado pelo TCU em 10 de setembro, o relatório gerou ampla repercussão. O assunto foi parar até no YouTube, com um vídeo produzido de antemão pelo tribunal.
Firme, a ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, revoltou-se e autorizou uma resposta dura, de imediato. Em nota, sua pasta dizia que o relatório “parte de premissas erradas, para chegar a conclusões equivocadas”, por culpa da “ignorância dos técnicos”. Queixava-se de “posições simplistas e preconceituosas” com o Bolsa Família. E sugeria motivações eleitorais do TCU, ao questionar o momento da divulgação do documento e ao constatar, com “estupefação”, que uma versão prévia citava dois projetos do senador Aécio Neves, presidenciável do PSDB. Formado por representantes do governo e da sociedade, o Conselho Nacional de Assistência Social saiu em defesa do ministério e chiou por não ter sido ouvido pelo TCU.
Diante da contundência da reação, a revolta mudou de lado. O presidente do TCU, Augusto Nardes, e os demais ministros foram pressionados pelos técnicos a defender a casa. Silenciar, segundo uma troca interna de mensagens, desmoralizaria o tribunal. E mais: a tréplica deveria ter um tom à altura. No dia 17, a Corte tomou uma decisão nada corriqueira. Em sessão plenária, aprovou uma nota de desagravo, de “inconformismo e repúdio” contra “injustas e indevidas críticas”. Responsável final pelo relatório pivô da crise, o relator, ministro Augusto Sherman, disse durante a sessão que a pasta do Desenvolvimento Social agira “de maneira incivil, indelicada e desrespeitosa”.

Na véspera, Campello reunira-se com Nardes no TCU e testemunhara a indignação dos auditores. Representantes do tribunal presentes à conversa dariam ainda outra fustigada na ministra, ao dizer a jornalistas posteriormente que ela tivera um “faniquito”. Campello está aborrecida com o que considera machismo e não será surpresa se tomar providências após a eleição.
O episódio é o mais visível de uma escalada de embates do governo com o Tribunal de Contas. A tensão é tal que em agosto o TCU registrou um fato inédito. Um advogado-geral da União foi à Corte defender, no plenário, um alto servidor federal. A presidenta da Petrobras, Graça Foster, estava na mira de um pedido de bloqueio de bens, em investigação sobre a contestada compra da refinaria em Pasadena, nos Estados Unidos. Para o advogado-geral Luís Inácio Adams, o bloqueio seria fatal para Foster. Ela não teria mais como ficar no cargo. O TCU desistiu da ideia.
O Planalto está convencido do viés eleitoral por trás da atuação do relator do processo, José Jorge. E a biografia dele dá asas à imaginação. Jorge foi senador pelo DEM, ministro no governo Fernando Henrique e candidato a vice na chapa presidencial do tucano Geraldo Alckmin em 2006. A convicção levou Dilma a adotar uma postura inusual para presidentes. Nos últimos tempos, quando se vê obrigada a falar em entrevistas sobre fraudes na Petrobras, cobra a apuração de um negócio fechado pela estatal com a Repsol no fim da era FHC. Na época, Jorge era ministro de Minas e Energia e dirigia o conselho de administração da estatal. Por isso, foi parar em uma ação movida por petroleiros contra o negócio. O caso está inconcluso no Superior Tribunal de Justiça.
O setor portuário também alimenta o conflito “governo versus TCU”. Em maio de 2013, Dilma venceu uma de suas mais ferrenhas brigas no Congresso e arrancou uma nova Lei de Portos. Ela queria liberar a construção de terminais particulares. E relicitar, em condições mais favoráveis aos exportadores, portos públicos arrendados a empresas, como alguns em Santos e Belém do Pará sob domínio do banqueiro Daniel Dantas. Até aqui, só o primeiro plano vingou. O outro aguarda aval do TCU aos termos da pretendida relicitação. É improvável uma decisão neste ano. Nardes foi recentemente a Santos e prometeu realizar antes uma audiência pública, como quer o município. O prefeito Paulo Alexandre Barbosa, do PSDB, diz ser preciso repensar a localização do terminal de grãos, por razões ambientais.
Em gabinetes federais, reclama-se de demora eleitoreira. No TCU, o processo tem a relatoria da ministra Ana Arraes, ex-deputada pelo PSB e mãe do falecido presidenciável Eduardo Campos. Durante a votação da Lei de Portos, Campos construía seu sonho presidencial e aproveitara para afastar-se ainda mais do Planalto. A proposta, dizia, atrapalharia a administração do Porto de Suape pelo governo de Pernambuco.
Para uma autoridade com visão privilegiada do TCU, a tensão com o governo é inegável e alcançou níveis inéditos. Os embates avolumaram-se a partir das obras do PAC, merecedoras de um olhar atento dos técnicos da Corte. Agora, o tribunal parece viver o auge de sua afirmação pós-ditadura. Seus auditores sentem-se “empoderados”, estão organizados e às vezes arriscam-se a críticas que extrapolam o exame de contas para opinar sobre políticas públicas. Além disso, possuem uma agenda própria, motivo de tensões internas no tribunal. Órgão auxiliar do Legislativo, o TCU tem muitos ministros políticos, ex-parlamentares. Em uma Corte comum, o juiz é senhor de seu gabinete, pela autoridade de magistrado. No TCU, é quase um refém dos auditores.
A categoria tenta eliminar ou ao menos frear a nomeação de ministros políticos. Em um congresso no início de setembro, a União dos Auditores Federais de Controle Externo aprovou um documento no qual cobra mudanças no critério de escolha. A atual legislação, com cotas para indicações feitas pelo presidente da República, o Senado e a Câmara, seria “retrógrada”. O correto seria indicar só auditores. A Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas (ANTC) defende ao menos aumentar a proporção de ministros concursados.
Para a presidenta da ANTC, Lucieni Pereira da Silva, o problema mais grave não são as cotas de indicados, mas a falta de um padrão nacional a exigir idoneidade, reputação ilibada e comprovação da qualificação técnica para os magistrados dos 34 tribunais de contas. Na última vez que o Congresso escolheu um ministro do TCU, no primeiro semestre, os auditores conseguiram barrar o nome do senador Gim Argello, do PTB, alvo de inquéritos judiciais. A próxima batalha já tem data. José Jorge se aposentará por idade em novembro. Caso seja reeleita, Dilma tem sua candidata, a ministra Ideli Salvatti, dos Direitos Humanos. Seu plano B é o ministro do Esporte, Aldo Rebelo.
*Reportagem publicada originalmente na edição 819 de CartaCapital, com o título "Canhões a postos"

Fonte: http://www.cartacapital.com.br/revista/819/canhoes-a-postos-1914.html

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