Os
direitos das minorias são, por vezes, esquecidos.
Uma vez
que nada de relevante ou irrelevante se passou na semana passada no panorama
jurídico/judicial do nosso país, podemos aproveitar para dar uma vista de olhos
no que se passa além-Atlântico nesse plano.
Foi há
dias publicado um livro de um eminente constitucionalista norte-americano,
Erwin Chmerinsky, com o título The Case
Against the Supreme Court, que vale a pena ser lido. A obra levanta
fascinantes e contundentes questões
sobre o funcionamento e a própria razão de ser do Supremo Tribunal
norte-americano, na sua função de fiscalizador da constitucionalidade das leis.
À partida, um motivo de alegria para todos aqueles que, no nosso país,
gostariam de ver o Tribunal Constitucional transformado numa pequena secção do
Supremo Tribunal de Justiça a funcionar nas catacumbas ou mesmo masmorras do
edifício...
Erwin
Chmerinsky parte do pressuposto de que a
Constituição representa uma tentativa da sociedade para se limitar a si mesma,
de forma a proteger os valores que mais valoriza – daí a enorme dificuldade em
mudá-la – e que os principais objectivos ou tarefas do Supremo Tribunal são
proteger os direitos das minorias que não podem confiar no processo politico e
defender a Constituição face a quaisquer desejos repressivos das maiorias
políticas.
É em face
destes pressupostos que Chmerinsky, professor de Direito Constitucional há
dezenas de anos, grande defensor do papel do Supremo Tribunal, onde já litigou
por diversas vezes, decide analisar a
performance do Supremo Tribunal ao longo da história dos EUA. E o resultado não
é brilhante.
O livro
começa com a descrição pormenorizada do caso de Carrie Buck, nascida em 1906 em
Charlottesville, Virgínia. A mãe de
Carrie, que teve três filhas e foi abandonada pelo marido, foi obrigada a
entregar Carrie a uns pais adoptivos que a criaram. Carrie fez a 6.ª classe e
era uma criança absolutamente normal. Aos 17 anos, foi violada por um sobrinho
dos pais adoptivos, que a acabaram por colocar num departamento estatal para
epilépticos e doentes mentais, onde deu à luz uma criança de que foi
imediatamente separada. De seguida, o Estado da Virgínia decidiu esterilizar
Carrie por laqueação das trompas, uma vez que a lei permitia a esterilização involuntária
de criminosos, pessoas de fraca inteligência ou com os chamados “defeitos
hereditários”, como o alcoolismo ou outros.
Carrie procurou opor-se, mas, em tribunal, um
dos autores desse tipo de lei eugénicas em voga veio afirmar que Carrie era uma
débil de espírito (feeble-minded), tal como toda a sua família de “pessoas
ignorantes e sem valor”, justificando-se plenamente a esterilização. O Supremo Tribunal, em 1927, no caso Buck v. Bell, decidiu contra Carrie,
por 8 votos contra 1, sendo que o juiz-relator,
o famoso Oliver Wendell Holmes Jr., chegou a escrever o seguinte: “É melhor
para toda a gente que, em vez de ter de esperar para executar descendentes
degenerados por crimes ou deixá-los morrer à fome pela sua imbecilidade, a
sociedade possa impedir aqueles que são manifestamente incapazes de continuar a
sua espécie. O princípio que justifica a vacinação obrigatória é
suficientemente amplo para abranger a laqueação das trompas. Três gerações de
imbecis é suficiente”.
Chmerinsky
faz uma análise detalhada e aprofundada de inúmeros casos decididos pelo
Supremo Tribunal em que prevaleceram os preconceitos, os interesses governamentais ou do “big business” e em que foram
esquecidos os direitos das minorias e a Constituição “adaptada” aos tempos de
crise. O que dizer da decisão no caso Plessy v. Ferguson (1896), em que o
Supremo Tribunal aceitou como constitucional o princípio de que brancos e pretos deviam ter instalações
públicas “iguais mas separadas”? Ou do caso da decisão no caso Korematsu v.
United States (1944), em que o Supremo Tribunal validou o internamento
compulsivo em campos de concentração de 110.000 japoneses americanos – sendo
40.000 estrangeiros e 70.000 cidadãos americanos –, só porque o Governo
norte-americano defendia que havia um sério risco de a mera ascendência
constituir um sério risco para a segurança nacional, não sendo possível
distinguir quem era efectivamente perigoso ou não?
Os casos
multiplicam-se e atingem a actualidade: no caso Holder v. Humanitarian Law
Project (2010), o Supremo Tribunal, em nome do combate ao terrorismo, pura e
simplesmente anulou a liberdade de expressão de organizações que procuravam
ajudar humanitariamente outras organizações estrangeiras. Uma delas era uma
organização curda que, provavelmente, o Governo dos EUA estará agora a
financiar face ao avanço do Estado Islâmico...
Mas Chmerinsky não propõe o fim do Supremo
Tribunal, antes apresenta uma série de sugestões para melhorar o seu
funcionamento que vão desde uma selecção mais cuidada dos juízes que o compõem
até uma limitação do mandato – actualmente, os juízes são vitalícios. Uma
leitura aliciante enquanto nada se passa no nosso país.
Fonte: http://www.publico.pt/mundo/noticia/a-justica-constitucional-nos-eua-1671645
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