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segunda-feira, 6 de outubro de 2014

A justiça constitucional nos EUA (FRANCISCO TEIXEIRA DA MOTA)

Os direitos das minorias são, por vezes, esquecidos.
Uma vez que nada de relevante ou irrelevante se passou na semana passada no panorama jurídico/judicial do nosso país, podemos aproveitar para dar uma vista de olhos no que se passa além-Atlântico nesse plano.
Foi há dias publicado um livro de um eminente constitucionalista norte-americano, Erwin Chmerinsky, com o título The Case Against the Supreme Court, que vale a pena ser lido. A obra levanta fascinantes e contundentes questões sobre o funcionamento e a própria razão de ser do Supremo Tribunal norte-americano, na sua função de fiscalizador da constitucionalidade das leis. À partida, um motivo de alegria para todos aqueles que, no nosso país, gostariam de ver o Tribunal Constitucional transformado numa pequena secção do Supremo Tribunal de Justiça a funcionar nas catacumbas ou mesmo masmorras do edifício...
Erwin Chmerinsky parte do pressuposto de que a Constituição representa uma tentativa da sociedade para se limitar a si mesma, de forma a proteger os valores que mais valoriza – daí a enorme dificuldade em mudá-la – e que os principais objectivos ou tarefas do Supremo Tribunal são proteger os direitos das minorias que não podem confiar no processo politico e defender a Constituição face a quaisquer desejos repressivos das maiorias políticas.
É em face destes pressupostos que Chmerinsky, professor de Direito Constitucional há dezenas de anos, grande defensor do papel do Supremo Tribunal, onde já litigou por diversas vezes, decide analisar a performance do Supremo Tribunal ao longo da história dos EUA. E o resultado não é brilhante.
O livro começa com a descrição pormenorizada do caso de Carrie Buck, nascida em 1906 em Charlottesville, Virgínia. A mãe de Carrie, que teve três filhas e foi abandonada pelo marido, foi obrigada a entregar Carrie a uns pais adoptivos que a criaram. Carrie fez a 6.ª classe e era uma criança absolutamente normal. Aos 17 anos, foi violada por um sobrinho dos pais adoptivos, que a acabaram por colocar num departamento estatal para epilépticos e doentes mentais, onde deu à luz uma criança de que foi imediatamente separada. De seguida, o Estado da Virgínia decidiu esterilizar Carrie por laqueação das trompas, uma vez que a lei permitia a esterilização involuntária de criminosos, pessoas de fraca inteligência ou com os chamados “defeitos hereditários”, como o alcoolismo ou outros.
Carrie procurou opor-se, mas, em tribunal, um dos autores desse tipo de lei eugénicas em voga veio afirmar que Carrie era uma débil de espírito (feeble-minded), tal como toda a sua família de “pessoas ignorantes e sem valor”, justificando-se plenamente a esterilização. O Supremo Tribunal, em 1927, no caso Buck v. Bell, decidiu contra Carrie, por 8 votos contra 1,  sendo que o juiz-relator, o famoso Oliver Wendell Holmes Jr., chegou a escrever o seguinte: “É melhor para toda a gente que, em vez de ter de esperar para executar descendentes degenerados por crimes ou deixá-los morrer à fome pela sua imbecilidade, a sociedade possa impedir aqueles que são manifestamente incapazes de continuar a sua espécie. O princípio que justifica a vacinação obrigatória é suficientemente amplo para abranger a laqueação das trompas. Três gerações de imbecis é suficiente”.
Chmerinsky faz uma análise detalhada e aprofundada de inúmeros casos decididos pelo Supremo Tribunal em que prevaleceram os preconceitos, os interesses governamentais ou do “big business” e em que foram esquecidos os direitos das minorias e a Constituição “adaptada” aos tempos de crise. O que dizer da decisão no caso Plessy v. Ferguson (1896), em que o Supremo Tribunal aceitou como constitucional o princípio de que brancos e pretos deviam ter instalações públicas “iguais mas separadas”? Ou do caso da decisão no caso Korematsu v. United States (1944), em que o Supremo Tribunal validou o internamento compulsivo em campos de concentração de 110.000 japoneses americanos – sendo 40.000 estrangeiros e 70.000 cidadãos americanos –, só porque o Governo norte-americano defendia que havia um sério risco de a mera ascendência constituir um sério risco para a segurança nacional, não sendo possível distinguir quem era efectivamente perigoso ou não?
Os casos multiplicam-se e atingem a actualidade: no caso Holder v. Humanitarian Law Project (2010), o Supremo Tribunal, em nome do combate ao terrorismo, pura e simplesmente anulou a liberdade de expressão de organizações que procuravam ajudar humanitariamente outras organizações estrangeiras. Uma delas era uma organização curda que, provavelmente, o Governo dos EUA estará agora a financiar face ao avanço do Estado Islâmico...
Mas Chmerinsky não propõe o fim do Supremo Tribunal, antes apresenta uma série de sugestões para melhorar o seu funcionamento que vão desde uma selecção mais cuidada dos juízes que o compõem até uma limitação do mandato – actualmente, os juízes são vitalícios. Uma leitura aliciante enquanto nada se passa no nosso país.

Fonte: http://www.publico.pt/mundo/noticia/a-justica-constitucional-nos-eua-1671645

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