"O eufemismo 'flexibilizar' é a forma branda
encontrada por essas forças para dizer que é preciso desconstruir os direitos
do trabalho, arduamente conquistados em tantas décadas de embates e batalhas.
Basta olhar o que se passa hoje com a Europa e constatar lá também o
receituário é flexibilizar, acentuando ainda mais o desmonte dos direitos dos trabalhadores.", escreve Ricardo
Antunes, sociólogo, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo,
05-05-2013.
Eis o
artigo.
Em nosso
curioso país, muitas conquistas acabam tendo vida efêmera, enquanto muita
construção estranha acaba longeva. E assim o país caminha, quase
prussianamente, em seus avanços e atropelos. O que explica, então, a longa duração de
nossa CLT, criada em 1943?
Sabemos que a Consolidação das Leis do Trabalho se originou em uma
conjuntura especial, intimamente vinculada à chamada Revolução de 1930, que foi
mais do que um golpe e menos do que uma revolução. Rearranjo
necessário entre nossas classes dominantes - cuja fração cafeeira começava a
perder seu acentuado espaço no poder -, o movimento político-militar que
levou Vargas à Presidência da República recompôs o equilíbrio entre as
distintas frações da oligarquia, cujo resultado mais expressivo, entretanto,
foi o desenvolvimento de um projeto industrializante, nacionalista e com forte
presença estatal. E Vargas sabia que a
montagem desse novo projeto não poderia se efetivar sem o envolvimento da
classe trabalhadora, que não encontrava espaço no liberalismo excludente da
chamada República do Café.
O enigma da incorporação da classe
trabalhadora por Vargas pode ser desvendado pelos múltiplos significados
presentes quando da decretação da CLT. Desde logo ela consolidava a totalidade
da legislação social (e sindical) do trabalho iniciada em 1930. Mas é
imperioso enfatizar que houve um movimento dúplice nessa
história: o operariado brasileiro lutava, desde meados do século 19, por
direitos básicos do trabalho, por meio da realização de greves. E esse
movimento se expandiu ao longo das primeiras décadas do século 20 - de que foi
exemplo, entre tantas, a grande greve geral de 1917 - quando os trabalhadores
reivindicavam, entre outras bandeiras, melhores condições de salário e de
trabalho, a regulamentação da jornada, o direito de férias e do descanso
semanal, etc.
Aqui o mito
encontrou sua origem e densidade: Vargas "converteu" autênticas
reivindicações operárias em doações do Estado, realizadas
quase sempre em atos de 1º de Maio oficialistas, em que se assumia como
responsável pelo Estado benefactor, para recordar Werneck Vianna. Aquilo que a classe
operária reivindicava em suas lutas concretas - na primeira metade dos anos
1930 houve a eclosão de inúmeras greves no Brasil - Vargas assumia como sua
criação. E foi assim, oscilando entre luta e outorga, que chegamos
à decretação da CLT em 1943 e à criação do mito do Pai dos Pobres.
Do lado
varguista, construía-se a clara percepção de que o projeto industrial carecia
de uma necessária regulamentação e controle do trabalho. Do lado dos
assalariados, um exame das pautas das greves permitia constatar que os direitos
do trabalho estavam entre suas principais reivindicações. A título de exemplo:
se para a classe trabalhadora a criação do salário-mínimo nacional era
imprescindível para garantir sua reprodução e sobrevivência, para o projeto
industrializante de Vargas era imperioso regulamentar a mercadoria força de trabalho
e desse modo consolidar o mercado interno pela instituição de um salário mínimo
basal.
Mas a CLT foi também uma espécie de faca de dois legumes, para
lembrar o célebre Vicente Matheus. Isso porque, no que diz respeito à estrutura
sindical, ela teve em sua origem um predominante sentido
controlador, coibidor e cupulista que cultuava um fetichismo de Estado que não
foi plenamente eliminado nem mesmo pela Constituição de 1988.
Bastaria lembrar que o imposto e a unicidade sindical estabelecidos por lei,
dois pilares do sindicalismo atrelado, não foram eliminados pela nova
Constituição.
Certamente, não são por esses motivos sindicais que o empresariado quer hoje
desmantelar a CLT. O eufemismo "flexibilizar" é a forma branda
encontrada por essas forças para dizer que é preciso desconstruir os direitos
do trabalho, arduamente conquistados, em tantas décadas de embates e batalhas.
Basta olhar o que se passa hoje com a Europa e constatar lá também o
receituário é flexibilizar, acentuando ainda mais o desmonte dos direitos dos
trabalhadores.
Foi exatamente por consolidar um código
efetivamente protetor do trabalho que a CLT tornou-se duradoura e logrou ganhar
sólido apoio popular ao longo de suas décadas de vigência. As
flexibilizações, terceirizações, o aumento da informalidade e a ampliação do
desemprego serão consequências imediatas se a CLT for desfigurada.
Mas não será fácil essa nova empreitada de
demolição pretendida pelo empresariado, pelo simples fato de que a CLT é
considerada como uma verdadeira Constituição pela classe trabalhadora, ao
consagrar conquistas que ela sabe que se perder, não haverá no horizonte
próximo nenhuma possibilidade de recuperar. Ainda mais numa conjuntura de
destruição intensa e em escala global dos direitos do trabalho.
Fonte:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/519885-a-classe-operaria-vai-a-clt-artigo-de-ricardo-antunes
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