- Manifesto contra o trabalho -
Índice
Índice
Prefácio à edição portuguesa do M C T - (Janeiro de 2003)
I A ditadura do trabalho morto
II A sociedade do apartheid neoliberal
III O neoapartheid do estado social
IV O exacerbamento da religião do trabalho e o desmentido do respectivo dogma
V O trabalho é um princípio de coerção social
VI Trabalho e capital são as duas faces da mesma moeda
VII O trabalho é dominação patriarcal
VIII O trabalho é a actividade de homens privados de autodeterminação
IX A história sangrenta da vitória do trabalho
X O movimento operário: um movimento em prol do trabalho
XI A crise do trabalho
XII O fim da política
XIII O capitalismo de casino e o seu jogo de simulação na sociedade do trabalho
XIV O trabalho não pode ser redefinido
XV A crise da luta de interesses
XVI A superação do trabalho
XVII Um programa abolicionista contra os amantes do trabalho
XVIII A luta contra o trabalho é antipolítica
Deutsch - EDITORA ANTIGONA, Lisboa, 2003
- Manifesto contra o trabalho -
I - A
DITADURA DO TRABALHO MORTO
Cada um tem que poder viver do seu trabalho, reza o
princípio em vigor. Poder viver é, portanto, algo que está condicionado pelo
trabalho, e não há direito à vida onde esta condição não estiver preenchida.
Johann Gottlieb Fichte
Fundamentos do Direito Natural segundo os Princípios da
Doutrina da Ciência, 1797.
Um cadáver domina a sociedade - o cadáver do trabalho. Todas
as potências do globo estão coligadas em defesa desta dominação: o Papa e o
Banco Mundial, Tony Blair e Jörg Haider, sindicatos e empresários, ecologistas
alemães e socialistas franceses. Todos eles só têm uma palavra na boca:
trabalho, trabalho, trabalho.
Quem ainda não desaprendeu de pensar reconhece sem
dificuldade a inconsistência desta posição. Porque a sociedade dominada pelo trabalho não vive uma crise transitória, antes
está chegada ao seu limite último. Na sequência da revolução microelectrónica,
a produção de riqueza desligou-se cada vez mais da utilização da força de trabalho
humano - numa escala até há poucas décadas apenas imaginável na ficção
científica. Ninguém pode afirmar com seriedade que este processo voltará a
parar, e muito menos que possa ser invertido. A venda dessa mercadoria que é a
força de trabalho será no século XXI tão promissora como foi no século XX a
venda de diligências. Porém, nesta
sociedade, quem não consegue vender a sua força de trabalho torna-se
«supérfluo» e é atirado para a lixeira social.
Quem não trabalha, não
come! Este princípio cínico continua em vigor, hoje
mais do que nunca, precisamente porque está a tornar-se irremediavelmente
obsoleto. Trata-se de um absurdo: a sociedade, nunca como agora, que o trabalho se tornou supérfluo, se
apresentou tanto como uma sociedade organizada em torno do trabalho.
Precisamente no momento em que está a
morrer, o trabalho revela-se uma potência totalitária que não tolera nenhum
outro deus junto de si. Dentro da vida psíquica, dentro dos poros do dia a dia,
o trabalho determina o pensamento e os comportamentos. E ninguém poupa despesas para prolongar
artificialmente a vida desse ídolo, o trabalho. O grito paranóico dos que clamam por «emprego» justifica até que se
aumente a destruição dos recursos naturais, com resultados há muito conhecidos.
Os últimos obstáculos à total comercialização de todas as relações sociais
podem ser postos de lado, sem qualquer crítica, na mira de meia dúzia de
miseráveis «postos de trabalho». E a ideia
de que é melhor ter um trabalho «qualquer» do que não ter nenhum trabalho tornou-se
uma profissão de fé universalmente exigida.
Quanto mais se torna claro que a sociedade do trabalho
chegou definitivamente ao fim, mais violentamente se recalca este facto na
consciência pública. Por diferentes que possam ser, porventura, os métodos de
tal recalcamento, têm um denominador comum: o facto, mundialmente constatável,
de o trabalho se revelar irracional
enquanto fim em si mesmo, de ser algo que se tornou a si próprio obsoleto,
é transformado, com a obstinação típica de um sistema delirante, em fracasso
pessoal ou colectivo dos indivíduos, das empresas ou de certas «localizações»
geográficas. As limitações, que objectivamente são do próprio trabalho, devem
passar por problema subjectivo dos excluídos.
Enquanto para uns o desemprego se deve a reivindicações
exageradas, à falta de disponibilidade ou de flexibilidade, outros acusam os
«seus» gestores e políticos de incompetência, de corrupção, de ganância ou de
traição a determinadas regiões. Mas, ao fim e ao cabo, toda essa gente está de
acordo com o ex-presidente da Alemanha, Roman Herzog: seria preciso um «abanão»
em todo o país, exactamente como se o problema fosse idêntico à falta de
motivação de uma equipe de futebol ou de uma seita política. Todos devem, «de uma forma ou de outra»,
agarrar-se ao remo com força, mesmo que o remo tenha desaparecido há muito, e
todos devem, «de uma forma ou de outra», pôr mãos à obra, mesmo que já não haja
nada para fazer (ou só coisas sem sentido). O subtexto desta mensagem triste é
inequívoco: aquele que, apesar da sua aplicação, não obtiver as boas graças do
ídolo trabalho é responsável por essa situação, e não tem que haver problemas
de consciência em abatê-lo ao activo ou pô-lo na rua.
E esta mesma lei, que dita o sacrifício do homem, vigora à
escala mundial. Uns após outros, países inteiros vão sendo triturados pela
engrenagem do totalitarismo económico, comprovando sempre o mesmo: pecaram
contra as chamadas leis do mercado. Quem
não se «adaptar» incondicionalmente e sem reservas ao curso cego da concorrência
total será punido pela lógica da rentabilidade. Os que hoje são promissores
serão a sucata económica de amanhã. Mas os psicóticos económicos dominantes
nem por isso se deixam abalar minimamente na sua bizarra explicação do mundo. Três quartos da população mundial foram já
declarados, em maior ou menor medida, lixo social. As «localizações»
privilegiadas desaparecem em catadupa. Depois do desastre dos «países em vias
de desenvolvimento», do Sul, e depois dessa secção da sociedade mundial do
trabalho que era o capitalismo de Estado, no
Leste, são os alunos exemplares da economia de mercado do Sudeste asiático que
desaparecem no inferno das falências. E
também na Europa alastra há muito o pânico social. Mas, na política e na
gestão, os respectivos cavaleiros-da-triste-figura limitam-se a prosseguir,
cada vez com mais raiva, a sua cruzada em nome do ídolo trabalho.
II - A SOCIEDADE DO APARTHEID NEOLIBERAL
O impostor tinha destruído o trabalho, e ainda levara
consigo o salário de um trabalhador; agora há-de trabalhar sem salário, mas,
mesmo na masmorra, há-de pressentir a bênção do sucesso e do ganho […]. Pelo
trabalho forçado, deverá ser educado para o trabalho moral, enquanto actividade
pessoal e livre.
Wilhelm Heinrich Riehl - O Trabalho Alemão, 1861.
Uma sociedade
centrada na abstracção irracional do trabalho desenvolve necessariamente a
tendência para o apartheid social, se a venda eficaz dessa mercadoria que é a
força de trabalho deixa de ser a regra para passar a ser a excepção. Há
muito que esta lógica é secretamente aceite e até apoiada activamente pela
totalidade das facções integrantes do imenso campo do trabalho, que abrange
todas as tendências políticas. Já não
discutem a questão de saber se cada vez maiores camadas da população são
empurradas para a marginalização e excluídas de qualquer participação social,
mas apenas como impor esta selecção.
A facção neoliberal entrega o trabalho sujo,
social-darwinista, à «mão invisível» do mercado. Neste sentido, as estruturas do Estado social são
desmanteladas de modo a marginalizar o mais discretamente possível todos
aqueles que já não conseguem participar na concorrência. Só é reconhecido como
ser humano quem pertencer à confraria cínica dos vencedores da globalização.
Todos os recursos do planeta são naturalmente usurpados pela máquina autotélica
do capitalismo. Quando já não são aplicáveis de forma rentável para esse
fim, são deixados de pousio, mesmo que ao lado populações inteiras morram de
fome.
Para tratar do «lixo
humano» indesejável há a polícia, as seitas religiosas redentoras, a Mafia e a
sopa dos pobres. Nos Estados Unidos e na maior parte dos
Estados do centro da Europa há mais
gente na prisão do que em qualquer ditadura militar mediana. Na América
Latina são diariamente assassinados
pelos esquadrões da morte da economia de mercado mais meninos de rua e outros
pobres do que oposicionistas nos tempos da mais negra repressão política. Aos excluídos já só resta uma função
social: a de servirem de exemplo dissuasor. A sua desgraça deverá servir
para espicaçar todos aqueles que ainda se encontram na corrida para a terra
prometida da sociedade do trabalho a lutar por um lugar, ainda que entre os
últimos, e para manter a própria multidão dos perdedores num movimento febril,
de modo a que não lhes ocorra a ideia de se revoltarem contra as exigências
desavergonhadas do sistema.
Mas, mesmo obrigando
a maior parte dos indivíduos a pagar o preço da auto-renúncia, o
admirável mundo novo da economia de mercado totalitária reserva-lhes um lugar
de homens-sombra numa economia-sombra. Só
lhes resta servir humildemente os mais bem pagos ganhadores da globalização,
desempenhando o papel de mão-de-obra barata e de escravos democráticos da
«sociedade de prestação de serviços». Os novos «trabalhadores pobres» estão
autorizados a limpar os sapatos aos últimos homens de negócios da moribunda
sociedade de trabalho, a vender-lhes hambúrgueres contaminados ou a vigiar os
seus centros comerciais. Os que tiverem
deixado o cérebro no vestiário podem ainda sonhar com a possibilidade de se
tornarem milionários na prestação de serviços.
Este mundo de terror já é uma realidade para milhões de
seres humanos nos países anglo-saxónicos, para já não falar no Terceiro Mundo e
na Europa de Leste; quanto à Eurolândia, mostra-se decidida a recuperar
rapidamente o tempo perdido. A imprensa económica há muito que deixou de fazer
segredo da perspectiva que idealiza para o futuro do trabalho: as crianças do
terceiro mundo, que limpam os pára-brisas dos automóveis nos cruzamentos
poluídos, são o luminoso exemplo de «iniciativa empresarial» que deve orientar,
tão solicitamente quanto possível, os desempregados da nossa sociedade,
supostamente «carenciada de prestação de serviços». «O modelo do futuro é o
indivíduo na qualidade de empresário da sua força de trabalho e da sua
protecção social», escreve a «Comissão para as Questões do Futuro, dos Estados
Livres da Baviera e da Saxónia». E prossegue: «A procura de serviços indiferenciados, directamente prestados a um
particular, é tanto maior quanto menos custarem os serviços, ou seja, quanto
menos ganharem os prestadores de serviços.» Num mundo em que as pessoas
ainda tivessem respeito por si próprias, uma tal afirmação provocaria
necessariamente uma onda de revolta social. Mas, num mundo de animais de trabalho domesticados, suscita apenas um inócuo
encolher de ombros.
III - O NEOAPARTHEID DO ESTADO SOCIAL
Qualquer trabalho é melhor do que nenhum - Bill Clinton,
1998.
Nenhum trabalho é tão duro como não ter trabalho - Tema de
uma exposição de cartazes do Organismo Federal de Coordenação das Iniciativas
dos Desempregados da Alemanha, 1998.
O trabalho cívico deve ser recompensado, mas não
simplesmente remunerado […]. Quem presta trabalho cívico liberta-se também do
estigma do desemprego e da assistência social - Ulrich Beck - A Alma da
Democracia, 1997.
As facções antineoliberais do campo de trabalho, que é a
sociedade no seu conjunto, podem porventura não gostar muito desta perspectiva,
mas são precisamente aquelas que mais fervorosamente defendem a ideia de que um
homem sem trabalho não é um homem. Nostalgicamente agarradas à concepção
fordista do pós-guerra, assente no trabalho de massas, pensam apenas em
ressuscitar esses tempos idos da sociedade do trabalho. O Estado deveria voltar
a encarregar-se daquilo que, em dado momento, o mercado não é capaz de fazer. A
suposta normalidade da sociedade do trabalho deveria ser estimulada através de
«programas de emprego», da obrigatoriedade de trabalho comunitário para os
beneficiários do rendimento social, de subsídios à relocalização de empresas,
de endividamento público e de outras medidas políticas. Esta estatização do
trabalho, uma espécie de requentamento pouco convicto, não tem a mínima
hipótese de êxito; no entanto continua a ser o ponto de referência ideológico
para largas camadas da população ameaçadas pela derrocada social. E a prática
política daí decorrente, precisamente na ausência de esperança que a
caracteriza, mostra ser tudo, menos emancipatória.
A transformação
ideológica do «trabalho escasso» em primeiro direito do cidadão de um Estado
leva consequentemente a excluir todos os que não sejam cidadãos desse Estado.
A lógica de selecção social não é, pois,
posta em causa, mas apenas definida de outra forma: a luta individual pela
sobrevivência deve ser mitigada por critérios de natureza étnica e nacional. «A
escravatura nacional para os nacionais», é o grito que sai da alma do povo que,
no amor perverso pelo trabalho, se reencontra como comunidade nacional. O
populismo de direita não faz segredo desta conclusão. A sua crítica à sociedade
da concorrência apenas visa a limpeza étnica das zonas de retracção da riqueza
capitalista.
Pelo contrário, o nacionalismo mais moderado, de inspiração
social-democrata ou verde, pretende equiparar os imigrantes mais antigos à
população autóctone, e inclusivamente fazer deles cidadãos nacionais, mediante
atestado de bom comportamento servil e de carácter garantidamente inofensivo.
Porém, deste modo, a crescente exclusão dos refugiados do Leste e do Sul pode
ser mais facilmente legitimada em termos populistas e posta em prática de
maneira mais discreta - naturalmente sempre escudada numa torrente de palavras
de humanidade e civilização. A caça ao homem movida aos «ilegais», acusados de
pretenderem apoderar-se dos empregos nacionais, não deve deixar um rasto sujo
de fogo e sangue em solo pátrio. Para o efeito existem o serviço de fronteiras,
a polícia e os países-tampão do reino de Schengen, que tudo resolvem segundo a
lei e o direito, de preferência longe das câmaras de televisão.
A simulação estatal do
trabalho já é, em si, violenta e repressiva. Ela serve a
vontade incondicional de prolongar por todos os meios disponíveis a dominação
exercida pelo ídolo do trabalho, mesmo para além da sua morte. Este fanatismo burocrático do trabalho não
permite que os excluídos, os sem emprego e sem oportunidades, ou aqueles que
encontram boas razões para se recusarem a trabalhar, possam ficar em paz nos
últimos nichos, já de si drasticamente reduzidos, do Estado social em desmantelamento. São arrastados por assistentes sociais e por funcionários dos serviços de
emprego para a sala de interrogatórios do Estado e obrigados a ajoelhar-se
publicamente diante do trono do cadáver dominante.
Se em tribunal vigora normalmente o princípio de que na
dúvida a decisão deve favorecer o réu, aqui inverte-se o ónus da prova. Os excluídos, se no futuro não quiserem
viver do ar ou da caridade cristã, devem aceitar qualquer trabalho, por mais
sujo ou escravizante, ou um qualquer «programa de ocupação», por mais absurdo,
demonstrando assim a sua disponibilidade incondicional para o trabalho. Se
aquilo que lhes cabe fazer não tem senão um longínquo sentido, ou releva do
mais puro absurdo, é perfeitamente indiferente. Só é preciso que continuem em
movimento perpétuo, para que nunca esqueçam a lei a que a sua existência tem de
obedecer.
Noutro tempo,
trabalhava-se para ganhar dinheiro. Hoje, o Estado não poupa despesas para que
centenas de milhares de pessoas simulem um trabalho inexistente em estranhos
«ateliers» de formação ou em «empresas ocupacionais», preparando-se para um
«posto de trabalho» regular que nunca conseguirão.
Inventam-se constantemente novas medidas, cada vez mais estúpidas, apenas para
garantir a aparência de que a vazia rotina social pode permanecer em movimento
até à eternidade. Quanto mais destituída
de sentido é a obrigatoriedade do trabalho, mais brutalmente haverá que
martelar no cérebro das pessoas o princípio de que não pode ganhar-se o pão de
outra maneira.
Nesta perspectiva, o «New Labour» e os seus imitadores em
todo o mundo mostram-se perfeitamente compatíveis com o modelo neoliberal da
selecção social. Com a simulação de «emprego» e com a ficção enganosa de um
futuro positivo para a sociedade de trabalho, cria-se a legitimidade moral para
tratar de forma ainda mais dura os desempregados e os que se recusam a
trabalhar. Ao mesmo tempo, o trabalho
obrigatório imposto pelo Estado, os subsídios ao salário e o chamado «trabalho
cívico» reduzem cada vez mais os custos com a mão-de-obra. Fomenta-se assim em
grande escala todo o próspero sector que vive dos baixos salários e do trabalho
de miséria.
A chamada política activa de trabalho, segundo o modelo do
«New Labour», não poupa sequer os doentes crónicos ou as mães solteiras com
filhos pequenos. Quem recebe apoio estatal só consegue libertar-se do
estrangulamento da burocracia quando o seu nome estiver no jardim das
tabuletas. O único sentido de toda esta impertinência consiste em levar o maior
número possível de pessoas a não apresentar qualquer pretensão ao Estado e em
exibir perante os excluídos instrumentos de tortura suficientemente monstruosos
para que qualquer trabalho de miséria lhes pareça comparativamente mais
aceitável.
Oficialmente, o Estado
paternalista apenas brande o chicote por amor e com a intenção de educar
severamente aqueles seus filhos que são considerados «preguiçosos», para que
tenham um futuro melhor. Mas, na realidade, estas medidas «pedagógicas» têm
como único e exclusivo fim afastar os clientes da porta a pontapé.
Que outro sentido poderia ter uma medida como a de mandar desempregados para a
colheita dos espargos? Nos campos, esses desempregados servem para afastar os
trabalhadores sazonais polacos, que aliás aceitam salários de miséria apenas
porque, de regresso ao seu país, o câmbio faz com que tais salários se transformem
numa quantia aceitável. Mas a medida posta em prática não ajuda os
trabalhadores forçados, nem lhes abre qualquer «perspectiva profissional». E,
para os produtores de espargos, os licenciados e operários especializados,
contrafeitos, que lhes cabem em sorte também não são mais do que um estorvo.
Contudo, no momento em que, à noite, após doze horas de costas curvadas sobre o
solo pátrio, o desespero fizer com que a disparatada ideia de abrir uma venda
ambulante de cachorros pareça mais agradável, então o «auxílio à
flexibilização» terá produzido o seu desejado efeito neobritânico.
IV - O EXACERBAMENTO DA RELIGIÃO DO TRABALHO E O DESMENTIDO
DO RESPECTIVO DOGMA
O trabalho, por mais baixo que seja, por mais que tenha em
vista apenas o dinheiro, está sempre em relação com a natureza. O simples
desejo de executar um trabalho conduz sempre mais e mais à verdade, às leis e
preceitos da natureza, que são a verdade. Thomas Carlyle - Trabalhar e não
Desesperar, 1843.
O novo fanatismo do trabalho, com o qual esta sociedade
reage à morte do seu ídolo, é a consequência lógica e o estádio final de uma
longa história. Desde a época da Reforma, todas as forças dirigentes da
modernização ocidental pregaram a santidade do trabalho. Sobretudo nos últimos
cento e cinquenta anos, todas as teorias sociais e correntes políticas foram
dominadas pela ideia do trabalho. Socialistas e conservadores, democratas e
fascistas, combateram entre si de toda a maneira e feitio, mas apesar do ódio
mortal que votaram uns aos outros, sempre sacrificaram em comum ao ídolo do
trabalho. «L'Oisif ira loger ailleurs» («O
ocioso irá viver para outro lado»), dizia o texto do hino da Internacional dos
trabalhadores - o eco macabro dessas palavras foi a divisa «Arbeit macht
frei» («O trabalho liberta»), exibida
por cima do portão de Auschwitz. As democracias
pluralistas do pós-guerra fizeram todas as suas juras em nome da ditadura
perpétua do trabalho. E até a Constituição da muito católica Baviera
aconselha os seus cidadãos na mais pura tradição
luterana: «O trabalho é a fonte do bem-estar do Povo e goza de especial
protecção por parte do Estado.» No final do século XX todas as contradições
ideológicas se esbateram. Apenas ficou o dogma comum e impiedoso segundo o qual
o trabalho é o destino natural do Homem.
Hoje, é a própria realidade da sociedade do trabalho que
desmente este dogma. Os sacerdotes da religião do trabalho sempre pregaram que
o homem, segundo a sua suposta natureza, seria um «animal laborans». Só se
tornaria ser humano na medida em que, como fez Prometeu, submetesse a matéria
natural à sua vontade, realizando-se a si mesmo nos seus produtos. Este mito do
conquistador do mundo, do demiurgo que escuta uma vocação, sempre foi, aliás,
um autêntico escárnio em relação ao carácter do processo moderno de trabalho,
embora pudesse ter ainda algum substrato real na época dos
capitalistas-inventores, do tipo Siemens ou Edison, e dos operários
qualificados que havia entre o seu pessoal. Hoje, essa pose tornou-se
completamente absurda.
Quem hoje em dia
perguntar a si próprio qual o conteúdo, o sentido ou a finalidade do seu
trabalho, enlouquece - ou torna-se factor de perturbação do funcionamento
autotélico da máquina social. O homo faber, outrora
orgulhoso do seu trabalho, e que, ao seu modo limitado, ainda levava a sério o
que fazia, está hoje tão fora de moda como uma máquina de escrever. A engrenagem social tem que continuar a
funcionar a qualquer preço, e ponto final. Quanto à descoberta do sentido,
para isso existem os departamentos de publicidade, exércitos inteiros de
animadores e de psicólogas de empresa, os consultores de imagem e as «dealers»
da droga. Quando se papagueia
interminavelmente o lema da motivação e da criatividade, é certo e sabido que
de uma e da outra já nada sobra…, a não ser enquanto auto-engano. É por isso que hoje as capacidades de
auto-sugestão, de autopromoção e de simulação de competências se contam entre
as virtudes mais importantes dos gestores e das trabalhadoras
especializadas, das estrelas dos media e dos contabilistas, das professoras e
dos arrumadores de automóveis.
Também a afirmação de
que o trabalho seria uma necessidade eterna, imposta ao homem pela natureza,
foi completamente posta a ridículo pela crise da sociedade do trabalho. Há séculos que vem sendo pregado o
princípio da inevitável adoração do ídolo trabalho, quanto mais não fosse
porque as necessidades não poderiam ser satisfeitas por si mesmas, sem o suor
do labor humano. E a finalidade de toda a organização do trabalho seria,
obviamente, a satisfação dessas necessidades. Se isto fosse verdade, a crítica
do trabalho seria tão pertinente como a crítica da força da gravidade. Mas,
nesse caso, como poderia uma «lei natural», que o fosse realmente, entrar em
crise ou inclusivamente desaparecer? Os
porta-vozes do campo de trabalho social, desde a senhora neoliberal que come
caviar e é maníaca pela eficiência, até ao sindicalista tipo
barriga-de-cerveja, quando invocam o carácter pseudo natural do trabalho,
entram em crise de carência argumentativa. Ou, como quererão eles explicar-nos que hoje em dia três quartos da humanidade
se estejam a afundar na necessidade e na miséria, só porque o sistema da
sociedade do trabalho já não pode utilizar os seus préstimos?
Já não é a maldição do
Antigo Testamento - «comerás o teu pão com o suor do teu rosto» - que pesa
sobre os excluídos, mas uma nova e implacável condenação: «tu não comerás,
porque o teu suor é supérfluo e invendável». E será isto uma lei natural? Não é
senão um princípio social irracional, que surge como
coerção natural apenas porque, ao longo dos séculos, destruiu ou submeteu a si
todas as outras formas de relação social, impondo-se de modo absoluto. É a «lei natural» de uma sociedade que se
considera profundamente «racional», mas que, na verdade, apenas segue a
racionalidade finalista do seu ídolo, o trabalho, dispondo-se mesmo a
sacrificar-lhe, a ele e à respectiva «objectividade coerciva», os últimos
resquícios da sua humanidade.
V - O TRABALHO É UM PRINCÍPIO DE COERÇÃO SOCIAL
O trabalhador,
portanto, só se sente em si fora do trabalho; no trabalho sente-se fora de si.
Só está à sua vontade quando não trabalha, quando trabalha não está no seu
domínio. Assim, o seu trabalho não é voluntário, mas imposto; é trabalho
forçado. Não
constitui a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer
outras necessidades. A estranheza do trabalho ressalta claramente do facto de
se fugir dele como da peste, logo que não exista nenhuma coerção material ou de
outro tipo. Karl Marx - Manuscritos Económico Filosóficos, 1844.
Não há, em rigor,
qualquer identidade entre o trabalho e o facto de os homens transformarem a
natureza e se relacionarem uns com os outros em determinadas actividades.
Enquanto existirem seres humanos, eles
hão de construir casas, fabricar roupas, produzir alimentos e muitas outras
coisas, hão de educar os filhos, escrever livros, discutir assuntos, construir
jardins, compor música e tanto mais. Esta é uma verdade banal e evidente. O que
não é evidente é que a actividade humana em si, o puro «dispêndio de força de
trabalho», sem que se leve em consideração o respectivo conteúdo e
independentemente das necessidades e da vontade dos envolvidos, se torne num
princípio abstracto que domina as relações sociais.
Nas antigas sociedades
agrárias havia todas as formas possíveis de dominação e de dependência pessoal,
mas não existia uma ditadura do trabalho, enquanto abstracção.
É certo que as actividades levadas a
cabo na transformação da natureza e nas relações sociais não eram de modo algum
autodeterminadas, mas tão-pouco estavam na dependência de uma ideia abstracta
de «dispêndio de força de trabalho»; pelo contrário, tais actividades
encontravam-se enquadradas em complexos dispositivos de normas, configuradas
por preceitos religiosos, tradições sociais e culturais, e estabelecendo
obrigações recíprocas. Cada actividade tinha o seu tempo e o seu lugar
próprios; não existia uma forma geral e abstracta de actividade.
Só o moderno sistema
de produção de mercadorias, com a sua finalidade autotélica de transformação
permanente de energia humana em dinheiro, veio criar esse domínio particular,
«apartado» de todas as outras relações sociais e abstraído de qualquer conteúdo,
que leva o nome de esfera do trabalho - a esfera da actividade não autónoma,
incondicional, não relacional, robotizante, separada do restante contexto
social e obedecendo a uma abstracta racionalidade finalista de «economia
empresarial», independente das necessidades. Nesta esfera, separada da vida, o tempo deixa de ser tempo
vivido e vivenciado, torna-se simples matéria-prima que tem de ser optimizada:
«tempo é dinheiro». Cada segundo é
contabilizado, cada ida à casa-de-banho é um escândalo, cada conversa é um
crime contra a finalidade autonomizada da produção. No local de trabalho, apenas pode ser gasta
energia abstracta. A vida fica lá fora - ou porventura em parte nenhuma, porque
a cadência do trabalho rege interiormente todas as coisas. Até as crianças são
domesticadas pelo relógio, para que um dia possam ser «eficientes». As férias só servem para a recuperação da «força de trabalho». E mesmo
às refeições, nas festas e no amor, o ponteiro dos segundos faz tiquetaque na
nossa cabeça.
Na esfera do trabalho
não conta aquilo que se faz, mas sim que o fazer, enquanto tal, seja feito,
pois o trabalho é um fim em si mesmo justamente na medida em que traz consigo a
valorização do capital-dinheiro - a infinita multiplicação do dinheiro por
intermédio do dinheiro. O trabalho é a forma de actividade própria desta
absurda finalidade autotélica. É por isso, e não por quaisquer razões
objectivas, que os produtos são todos eles produzidos como mercadorias. Só
sob a forma de mercadoria representam a
abstracção dinheiro, cujo conteúdo é a abstracção trabalho. Nisto consiste o
mecanismo da engrenagem social autonomizada em que se mantém aprisionada a
humanidade moderna.
E é precisamente por isso também que o conteúdo da
produção é indiferente, como é indiferente a utilização dada às coisas
produzidas e as consequências sociais e naturais da produção. Saber se
se constroem casas ou se se produz armamento, se se imprimem livros ou se se
cultiva tomate transgénico, se em consequência as pessoas adoecem, se a
atmosfera é poluída ou se «apenas» é espezinhado o bom gosto - nada disto
interessa, desde que, de um modo ou de outro, a mercadoria possa ser
transformada em dinheiro e o dinheiro, de novo em trabalho. Que a mercadoria
exija um uso concreto, e que este eventualmente seja destrutivo, é coisa que
não tem o mínimo interesse para a racionalidade da economia empresarial, pois
para esta o produto não é mais do que o portador de um trabalho pretérito, de
«trabalho morto».
A acumulação de
«trabalho morto» enquanto capital, representada sob a forma de dinheiro, é o
único «sentido» que o sistema de produção de mercadorias conhece.
«Trabalho morto»? Uma loucura metafísica! Sim, mas uma metafísica que se tornou
realidade palpável, uma loucura «objectivada» que domina esta sociedade com mão
de ferro. No eterno comprar e vender, os homens não se relacionam
como seres sociais conscientes, limitam-se a executar como autómatos sociais a
finalidade autotélica que lhes é prescrita.
VI - TRABALHO E CAPITAL SÃO AS DUAS FACES DA MESMA MOEDA
O trabalho tem cada
vez mais a boa consciência do seu lado: o gosto pela alegria chama-se já
`necessidade de descanso', e começa a corar de vergonha de si próprio. `Temos
de fazer isto por causa da saúde', dizemos às pessoas que nos surpreendem num
passeio pelo campo. Por este caminho, poderá chegar-se rapidamente ao ponto de
não mais se ceder ao gosto pela vita contemplativa (ou seja, ao gosto de
passear em companhia de pensamentos ou de amigos) sem desprezo por si próprio e
sem má consciência. Friedrich Nietzsche «Ócio e ociosidade» (em
A Gaia Ciência), 1882.
A esquerda política
sempre adorou o trabalho com particular fervor. Não só elevou o trabalho ao
estatuto de essência do Homem, como produziu a mistificação de transformá-lo
num princípio pretensamente oposto ao capital.
Na sua perspectiva, o escândalo não é o
trabalho, mas sim a exploração do trabalho pelo capital. Por isso, o
programa de todos os «partidos dos trabalhadores» sempre foi somente «libertar
o trabalho», mas não libertar do trabalho. Ora, o antagonismo social entre capital e trabalho é uma mera contradição de
interesses distintos no interior da finalidade autotélica do capitalismo
(embora o poder de cada uma das partes seja muito diferente). A luta de classes
era a forma de expressão desses interesses antagónicos no terreno social comum
do sistema de produção de mercadorias. Fazia
parte da dinâmica interna da valorização do capital. Quer a luta fosse por
salários, por direitos, por condições de trabalho, ou por postos de trabalho, o
seu pressuposto cego continuava sempre a ser a engrenagem dominante com os seus
princípios irracionais.
O conteúdo qualitativo da produção conta tão pouco do
ponto de vista do trabalho como do ponto de vista do capital. Apenas interessa
a possibilidade de vender de forma optimizada a força de trabalho. Não se trata
de determinar colectivamente o sentido e a finalidade da actividade própria. Se algum dia existiu a esperança de poder realizar-se uma tal
autodeterminação do processo produtivo dentro das formas do sistema de produção
de mercadorias, a verdade é que as «forças do trabalho» há muito puseram de
lado essa ilusão. Hoje
interessa apenas o «posto de trabalho», o «emprego» - e a própria literalidade
destes conceitos demonstra o carácter autotélico de todo o empreendimento e a
privação de responsabilidade que caracteriza os envolvidos.
Em última análise, o que se produz, para que fins e com
que consequências, é assunto absolutamente indiferente tanto para o vendedor da
mercadoria, que é a força de trabalho, como para o respectivo comprador.
Os trabalhadores das centrais nucleares e das fábricas de
produtos químicos protestam veementemente quando se pretende desactivar as suas
bombas-relógio. E os «empregados» da Volkswagen, da Ford ou da Toyota, são os
mais fanáticos defensores do programa suicida da indústria automóvel. Não
apenas porque têm obrigatoriamente de se vender para «poderem» viver, mas
porque na realidade se identificam com esta existência tacanha. Para
os sociólogos, os sindicalistas, os padres e outros teólogos profissionais da
«questão social», esta é a prova do valor ético-moral do trabalho. O trabalho forma a personalidade, dizem eles. Com razão. Forma de facto
a personalidade dos zombies da produção de mercadorias, que já não conseguem
conceber uma vida fora da sua amada engrenagem, à qual se vão ajustando dia
após dia.
Porém, da mesma forma
que a classe operária - enquanto classe trabalhadora - nunca foi um antagonista
em contradição com o capital e nunca foi o agente do processo de emancipação do
homem, também os capitalistas e gestores não governam a sociedade em obediência
a uma maldade decorrente da vontade subjectiva de exploração.
Em toda a história, nunca houve uma casta dominante que levasse uma vida tão
pouco livre, tão deplorável, como os acossados executivos da Microsoft, da
Daimler-Chrysler ou da Sony. Qualquer senhor feudal sentiria o mais profundo
desprezo por tal gente. Porque, podendo ele entregar-se ao ócio e delapidar a
sua riqueza em quantas orgias lhe apetecesse, as elites da sociedade
do trabalho não têm o direito de desfrutar de nenhuma pausa. Mesmo quando estão fora da engrenagem, não
sabem fazer outra coisa que não seja infantilizarem-se. O ócio, os prazeres do
conhecimento ou dos sentidos, são-lhes tão estranhos como ao material humano de
que são feitos. São eles próprios meros servos do ídolo trabalho, simples
elites funcionais da finalidade autotélica irracional da sociedade.
O ídolo dominante sabe
impor a sua vontade sem sujeito pela «coerção tácita» da concorrência, à qual também
os poderosos têm de curvar-se, exactamente quando gerem centenas de fábricas e
transferem milhões, de lugar em lugar, à volta do globo.
Se assim não fizerem, serão postos de
lado com a mesma frieza com que o é a «força de trabalho» supérflua. Ora, é
precisamente esta sua inimputabilidade que torna os funcionários do capital tão
desmesuradamente perigosos, e não a sua vontade subjectiva de exploração. Não estão autorizados - menos ainda do que a qualquer outro indivíduo -
a interrogarem-se sobre o sentido e sobre as consequências da sua infatigável
actividade, e não podem dar-se ao luxo de ter sentimentos ou atenções. É por
isso que se consideram realistas quando devastam o mundo, desfiguram as cidades
e levam as populações à miséria no meio da maior riqueza.
VII - O TRABALHO É DOMINAÇÃO PATRIARCAL
A humanidade teve de se submeter a provações terríveis até
que surgisse o eu, o carácter idêntico, orientado para fins e masculino, do ser
humano; e é ainda alguma coisa desse processo que se repete na infância de cada
um. Max Horkheimer e Theodor W. Adorno -
Dialéctica do Esclarecimento, 1944.
Mesmo que a lógica do trabalho e da sua metamorfose em
matéria-dinheiro pressione nesse sentido, nem todos os domínios da sociedade,
nem todas as actividades efectivamente necessárias se deixam comprimir nesta
esfera do tempo abstracto. Por isso, em conjunto com a esfera «separada» do
trabalho, e até certo ponto como seu reverso, surgiu também a esfera do lar, da
família e da intimidade.
Nesse domínio, definido como «feminino», cabem as muitas e
repetitivas actividades da vida do dia-a-dia, que quando muito só
excepcionalmente podem ser transformadas em dinheiro: desde limpar a casa até
cozinhar, passando pela educação dos filhos e pelo cuidado dos idosos, até ao
«trabalho do amor» da típica dona de casa ideal, que retempera o seu marido
trabalhador, quando chega esgotado a casa, e lhe «recarrega as energias»
afectivas. A esfera da intimidade, enquanto reverso do trabalho, é portanto
declarada pela ideologia burguesa da família como esfera da «vida própria» -
embora, na realidade, seja a maior parte das vezes apenas um inferno na
intimidade. De facto, não se trata da esfera de uma vida melhor e verdadeira,
mas de uma forma igualmente limitada e reduzida da existência, que simplesmente
se apresenta afectada pelo sinal contrário. Esta esfera é ela própria um
produto do trabalho, dele separada, é certo, mas na realidade só existente na
relação com ele. A sociedade do trabalho
nunca teria podido funcionar sem esse espaço social segregado, que é o das
formas de actividade «femininas». Ele é o pressuposto tácito de uma tal
sociedade e, simultaneamente, o seu resultado específico.
O mesmo é válido também para os estereótipos sexuais, que
foram sendo generalizados no decurso do desenvolvimento do sistema de produção
de mercadorias. Não é um simples acaso o facto de a imagem da mulher como um
ser submetido aos impulsos da natureza, à irracionalidade e às emoções, se ter
tornado um preconceito generalizado precisamente em conjunto com a imagem do
homem de trabalho, criador de cultura, racional e com domínio sobre si. E
também não é um acaso que a autodomesticação do homem branco para as exigências
do trabalho e da respectiva administração estatal dos indivíduos tenha
coincidido com séculos de feroz «caça às bruxas». E também a apropriação do mundo pelas ciências naturais, cujo início
ocorre em simultâneo com esses factos, foi, na sua raiz, contaminada pela
finalidade autotélica da sociedade do trabalho e pela sua atribuição de papéis
sociais em função do sexo. Assim, o homem branco, para poder funcionar sem
atritos, expulsou de si todos os sentimentos e necessidades emocionais, que, no
reino do trabalho, só representam factores de perturbação.
No século XX, e em
especial nas democracias fordistas do pós-guerra, as mulheres foram sendo
introduzidas de forma crescente no mundo do trabalho. Mas o resultado foi
apenas o surgimento de uma consciência feminina esquizóide. Pois, por um lado,
a introdução das mulheres na esfera do trabalho não podia trazer uma
libertação, mas apenas a mesma submissão ao ídolo trabalho, idêntica à dos
homens. E, por outro lado, mantendo-se intocada a estrutura da «dissociação»,
também a esfera das actividades definidas como «femininas» permaneceu fora do
âmbito oficial do trabalho. As mulheres foram assim submetidas a uma dupla
carga e expostas a imperativos sociais totalmente contraditórios. No domínio do
trabalho ficaram até hoje esmagadoramente relegadas para posições mal pagas e subalternas.
E não serão decerto as reivindicações conformes ao sistema,
a luta por quotas destinadas às mulheres ou por igualdade de oportunidades, a
mudarem seja o que for. A deplorável
visão burguesa de uma «conciliação do trabalho com a família» deixa intocada a
separação das esferas do sistema de produção de mercadorias e, com ela, a
estrutura de «dissociação» sexual. Para a maioria das mulheres, tal perspectiva
é simplesmente invivível e, para uma minoria de mulheres «mais bem pagas»,
transforma-se num posicionamento pérfido, fazendo delas vencedoras no âmbito do
apartheid social, exactamente na medida em que podem delegar a casa e o cuidado
dos filhos em empregadas mal pagas (e «naturalmente» do sexo feminino).
Na sociedade global, a sacralizada esfera burguesa da
chamada vida privada e da família é, na verdade, cada vez mais esvaziada e
degradada, porque a usurpação por parte da sociedade do trabalho exige a pessoa
toda, total sacrifício, total mobilidade e completa disponibilidade de tempo.
O patriarcado não é abolido; apenas se torna mais selvagem na crise
inconfessada da sociedade do trabalho. Na mesma medida em que o sistema de
produção de mercadorias entra em colapso, as mulheres vão-se tornando
responsáveis pela sobrevivência, em todos os planos, enquanto o mundo
«masculino» prolonga, em simulação, as categorias da sociedade do trabalho.
VIII - O TRABALHO É A ACTIVIDADE DE HOMENS PRIVADOS DE
AUTODETERMINAÇÃO
A identidade entre
trabalho e ausência de autodeterminação demonstra-se, não apenas factual, mas
também conceptualmente. Não há muitos séculos, a conexão entre o trabalho e a
coerção social estava inteiramente presente na consciência das pessoas. Na
maior parte das línguas europeias, o conceito «trabalho» refere-se
originariamente apenas à actividade do homem sem autodeterminação, do indivíduo
dependente, do servo ou escravo. No espaço linguístico alemão, «Arbeit»
significava o trabalho servil de uma criança órfã ou abandonada, e por isso
caída na servidão. No latim, «laborare» significava algo como «cambalear sob
uma carga pesada», e em sentido geral designava o sofrimento e o vexame do
escravo. As palavras românicas «trabalho», «travail», «trabajo», etc., derivam
do latim «tripalium», uma espécie de jugo utilizado para torturar e castigar
escravos e outros indivíduos destituídos de liberdade. Na expressão idiomática
alemã «Joch der Arbeit» («jugo do trabalho») ecoa ainda esse sentido.
Ou seja, também na sua
origem etimológica «trabalho» não é sinónimo de uma actividade humana
autodeterminada, antes designa um destino social infeliz. É a actividade
daqueles que perderam a liberdade. Assim, a extensão do trabalho a todos os
membros da sociedade não é mais do que a generalização da dependência servil, e
a moderna adoração do trabalho é a mera exaltação para-religiosa deste estado.
Esta relação só pôde
ser recalcada com êxito e a respectiva exigência social interiorizada, porque a
generalização do trabalho foi acompanhada pela «objectivação» do moderno
sistema de produção de mercadorias: a maior parte dos indivíduos não está
debaixo do chicote de um senhor, individualizado como pessoa. A dependência
social tornou-se uma conexão abstracta interna do sistema - e por isso mesmo
tornou-se total. Ela pode ser detectada em toda a parte, mas por isso mesmo é
praticamente inapreensível. Quando
todos se tornam escravos, todos se tornam simultaneamente senhores -
traficantes de escravos e fiscais, mas traficando-se a si próprios e fiscalizando-se
a si mesmos. Todos obedecem ao ídolo invisível do sistema, o «Grande Irmão» da
valorização do capital, que os mandou para o «tripalium».
IX - A HISTÓRIA SANGRENTA DA VITÓRIA DO TRABALHO
O bárbaro é preguiçoso e diferencia-se do homem cultivado na
medida em que se compraz no seu embrutecimento, pois a formação prática
consiste justamente no hábito e necessidade da ocupação. Georg W. F. Hegel - Princípios
da Filosofia do Direito, 1821.
No fundo, sente-se
agora […] que um tal trabalho é a melhor polícia, que retém cada indivíduo pelo
freio e que sabe impedir com firmeza o desenvolvimento da razão, do desejo e do
prazer da independência. Pois faz despender enorme quantidade de energia
nervosa, e subtrai essa energia à reflexão, à meditação, ao sonho, à
inquietação, ao amor e ao ódio. Friedrich Nietzsche «Os
Apologistas do Trabalho» (em Aurora), 1881.
A história da modernidade é a história do processo de
instauração do trabalho, que deixou em todo o planeta um amplo rasto de
devastação e horror. Pois nem sempre esteve tão interiorizada como hoje a
exigência de despender grande parte da energia vital em benefício de uma
finalidade autotélica externamente definida. Foram necessários vários séculos
de violência aberta e em grande escala para literalmente submeter os homens à
tortura do serviço incondicional do ídolo trabalho.
A princípio, não era a ampliação das relações de mercado
supostamente favorecedoras do «crescimento do bem-estar», mas sim a fome
insaciável de dinheiro dos aparelhos estatais absolutistas que obrigava ao
financiamento da máquina militar dos primórdios da modernidade. Só o interesse
desses aparelhos estatais, que pela primeira vez na história submetiam a
totalidade da sociedade ao estrangulamento burocrático, veio acelerar o
desenvolvimento do capital mercantil e financeiro das cidades, muito para além
das relações comerciais tradicionais. Só assim o dinheiro se converteu
em motivação central da sociedade, e a abstracção do trabalho em exigência
social central, sem consideração das necessidades.
Não foi por vontade
própria que a maioria dos homens passou a produzir para mercados anónimos e
portanto para uma economia monetária generalizada, mas sim porque, com o
absolutismo, a fome de dinheiro monetarizou os impostos e aumentou-os de
maneira exorbitante. Os
indivíduos tinham que «ganhar dinheiro», não para si, mas para o Estado
militarizado do início da modernidade: para as novas armas de fogo, para a
logística e a burocracia estatais. Foi assim, e não de outra forma, que veio ao
mundo a absurda finalidade autotélica da valorização do capital, e, com ela, a
do trabalho.
Em breve, os impostos
e taxas deixaram de ser suficientes. Os burocratas absolutistas e os
administradores do capital financeiro puseram-se a organizar de forma coerciva
os indivíduos como material directo de uma máquina social de transformação de
trabalho em dinheiro. O
modo tradicional de vida e de existência da população foi destruído; não porque
esta população se tivesse «desenvolvido» de forma livre e autodeterminada, mas
porque tinha de ser utilizada como material humano numa máquina de valorização
que estava posta em andamento. Os
indivíduos foram expulsos das suas terras pela força das armas, para darem
lugar à criação de ovelhas necessárias às manufacturas de lã. Os direitos
tradicionais, como a liberdade de caça, pesca e recolha de lenha nas matas,
foram extintos. E quando as massas pauperizadas deambulavam pelos campos,
mendigando e roubando, lançaram-nas em casas de trabalho e nas manufacturas,
para serem seviciadas com os instrumentos laborais de tortura e para lhes
inculcar, à pancada, uma consciência de escravos, a fim de se tornarem dóceis
animais de trabalho.
Mas esta transformação gradual dos seus súbditos em material
do ídolo fazedor de dinheiro também não podia só por si satisfazer durante
muito tempo os monstruosos Estados absolutistas. Estenderam, pois, as suas
pretensões a outros continentes. A
colonização interna da Europa efectuou-se a par da colonização externa,
primeiro nas Américas e em algumas regiões de África. Aí, os feitores do
trabalho perderam definitivamente os escrúpulos. Em campanhas militares de
roubo, destruição e extermínio sem precedentes atiraram-se aos mundos
recentemente «descobertos» - onde as vítimas nem sequer eram consideradas seres
humanos. O canibalismo das potências europeias da sociedade de trabalho nascente
definia as culturas estrangeiras subjugadas como «selvagens» e… canibais.
E estava assim
legitimada a eliminação ou escravização de milhões de homens. A escravatura
pura e simples em que se baseava a economia das grandes plantações e da
extracção de matérias-primas - que conseguiu ultrapassar as dimensões da
escravatura antiga - conta-se entre os crimes fundadores do sistema de produção
de mercadorias. Utilizou-se aí pela primeira vez, em grande escala, a
«eliminação pelo trabalho». Foi a segunda fundação da sociedade do trabalho. O
homem branco, marcado pelo ferrete da autodisciplina, podia agora descarregar
sobre os «selvagens» o seu complexo de inferioridade e o desprezo reprimido que
tinha por si próprio. Tal como «as mulheres», os «selvagens» eram para ele
seres próximos da natureza e primitivos, um misto entre o animal e o homem.
Immanuel Kant supunha, com precisão lógica, que o babuíno saberia falar se
quisesse; só não falava porque temia ser recrutado para o trabalho.
Esta elucubração grotesca lança uma luz reveladora sobre o
Iluminismo. O ethos repressivo do trabalho da modernidade, que, na sua versão
protestante original, se baseava na misericórdia divina e, a partir do
Iluminismo, na lei natural, adoptou a
máscara de «missão civilizadora». Cultura, neste sentido, é submissão
voluntária ao trabalho; e trabalho é masculino, branco e «ocidental». O
contrário, o não-humano, a natureza disforme e sem cultura, é feminino, de cor
e «exótico», ou seja, tem que ser submetido à coerção. Numa palavra, o «universalismo» da sociedade do trabalho é inteiramente
racista, logo desde as suas raízes. A abstracção universal do trabalho só pode
autodefinir-se pela delimitação face a tudo aquilo que nele não se integra.
Em última análise, o
herdeiro do absolutismo não foi a burguesia moderna, oriunda dos pacíficos
negociantes das antigas rotas comerciais. Foram antes os condottieri dos bandos
de mercenários da modernidade nascente, os directores das casas de trabalho e
das casas de correcção, os arrendatários da colecta fiscal, os feitores de
escravos, os agiotas e outros carrascos similares que formaram o solo social
materno do «mundo empresarial» moderno. As revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX nada tinham a ver com a
emancipação social. Limitaram-se a reorganizar as relações de poder no interior
do sistema de coerção existente, libertando as instituições da sociedade de
trabalho dos interesses dinásticos obsoletos e impulsionando a respectiva
coisificação e despessoalização. Foi
a gloriosa Revolução Francesa que, com um pathos muito especial, proclamou o
dever do trabalho, e que, numa «lei para a abolição da mendicidade»,
introduziu novas casas de trabalho.
Ora, isto era
exactamente o contrário do que pretendiam os movimentos sociais rebeldes que
eclodiram à margem das revoluções burguesas, sem nelas se dissolverem. Já muito
antes tinha havido formas completamente autónomas de resistência ou de
objecção, que costumam deixar a historiografia oficial da sociedade do trabalho
e da modernização sem saber o que fazer delas. Os produtores das antigas
sociedades agrárias, que nunca se resignaram a aceitar inteiramente as relações
de dominação feudal, estavam ainda menos dispostos a aceitar serem convertidos
em «classe trabalhadora» de um sistema que lhes era exterior. Desde as guerras
dos camponeses, nos séculos XV e XVI, até aos levantamentos britânicos,
denunciados como sendo movimentos de «destruidores de máquinas», e à revolta
dos tecelões na Silésia, em 1844, estende-se toda uma cadeia ininterrupta de
lutas encarniçadas de resistência contra o trabalho. A implantação da sociedade
do trabalho significou, ao longo de vários séculos, a guerra civil, umas vezes
mais aberta, outras vezes latente.
As antigas sociedades agrárias eram tudo menos paradisíacas.
Mas, ainda assim, para a maioria, a coerção monstruosa da emergente sociedade
do trabalho representou exclusivamente um agravamento da sua situação, um
«tempo do desespero». Na realidade, apesar de todas as restrições, os
indivíduos tinham ainda algo a perder. Aquilo que na falsa consciência do mundo
moderno surge como as trevas e os flagelos de uma Idade Média ficcionada foi,
na verdade, o horror da história desse mesmo mundo moderno. Nas culturas
pré-capitalistas e não-capitalistas, dentro e fora da Europa, o tempo dedicado
diária e anualmente à actividade de produção era muito mais reduzido do que
ainda hoje é para o moderno «empregado» de uma fábrica ou de um escritório. E a
produção dessas sociedades estava longe de ser tão intensificada como na
sociedade do trabalho, uma vez que toda a actividade era atravessada por uma
cultura de ócio e de relativa «lentidão». Com excepção das catástrofes
naturais, as necessidades básicas materiais estavam muito mais amplamente
asseguradas para a maioria da população do que em longos períodos da história
da modernização - e melhor também do que no horror dos bairros de lata gerados
nos nossos dias pelo mundo da crise. Para além do mais, nessas sociedades o poder não se entranhava até aos poros como na
sociedade do trabalho totalmente burocratizada.
Daí que a resistência
contra o trabalho só militarmente pudesse ser quebrada. Ainda hoje os ideólogos
da sociedade do trabalho continuam a fugir hipocritamente deste facto: a
cultura dos produtores pré-modernos não se «desenvolveu» para outras formas;
ela foi simplesmente afogada no seu próprio sangue.
Nos nossos dias, os esclarecidos
democratas da sociedade do trabalho preferem responsabilizar por todas essas
monstruosidades as «circunstâncias pré-democráticas» de um passado com o qual
eles já nada teriam a ver. Não querem admitir que a história terrorista do
início da modernidade revela também, involuntariamente, a essência da actual
sociedade do trabalho. A administração burocrática do trabalho e a integração
estatal dos seres humanos nas democracias industriais nunca puderam negar as
suas origens absolutistas e coloniais. Aliás, sob a forma da coisificação
orientada para a coesão do sistema despessoalizado, a administração repressiva
dos seres humanos em nome do ídolo trabalho continuou sempre a crescer e
invadiu todos os domínios da vida.
Precisamente hoje, na agonia do trabalho, volta a sentir-se
novamente a mão de ferro da burocracia, como nos primórdios da sociedade do
trabalho. Ao organizar o apartheid social e ao procurar, supostamente, debelar
a crise através da escravatura estatal democrática, a administração do trabalho
revela-se como o sistema de coerção que sempre foi. Do mesmo modo, a
brutalidade colonial regressa novamente sob a forma da administração económica
coerciva do Fundo Monetário Internacional nos países da periferia, que vão
sendo arruinados uns atrás dos outros. Depois da morte do seu ídolo, a
sociedade do trabalho volta a recorrer, em todos os sentidos, aos métodos dos
seus crimes fundadores, que contudo não a poderão salvar.
X - O MOVIMENTO OPERÁRIO: UM MOVIMENTO EM PROL DO TRABALHO
O trabalho deve empunhar o ceptro,
Só deve ser servo quem no ócio insistir;
O trabalho deve governar o mundo,
Pois só por ele o mundo pode existir.
Friedrich Stampfer - Honra ao Trabalho, 1903.
O movimento operário
clássico, que só entrou em ascensão muito depois do declínio das antigas
revoltas sociais, já não lutava contra as exigências do trabalho; pelo
contrário, desenvolveu precisamente uma hiperidentificação com aquilo que lhe
parecia ser inevitável. Interessava-se apenas por «direitos» e correcções no
seio da própria sociedade do trabalho, cujas coerções já tinha amplamente
interiorizado. Em vez de criticar radicalmente a
transformação da energia humana em dinheiro enquanto finalidade autotélica
irracional, assumiu ele mesmo «o ponto de vista do trabalho» e interpretou a
valorização do capital como um facto positivo em si mesmo e, portanto, neutro.
Assim, o movimento
operário assumiu, à sua maneira, a herança do absolutismo, do protestantismo e
do Iluminismo burguês. A infelicidade do trabalho foi convertida numa
falsificação: o orgulho do trabalhador, que vinha redefinir em termos de
«direito do homem» a autodomesticação do indivíduo como material humano do
ídolo moderno. Os domesticados hilotas do trabalho trataram de, até certo
ponto, dar a volta à questão no plano ideológico, desenvolvendo um autêntico
zelo missionário dirigido em dois sentidos: por um lado, a reivindicação do
«direito ao trabalho», por outro, a exigência de «obrigação de trabalho para
todos». A burguesia não era combatida enquanto suporte funcional da sociedade
do trabalho, mas, pelo contrário, censurada como parasita, em nome do trabalho.
Todos os membros da sociedade, sem excepção, deviam ser compulsivamente
recrutados para os «exércitos do trabalho».
O movimento operário passou assim, ele próprio, a ser um
pace-maker da sociedade capitalista do trabalho. Foi ele que impôs, contra a
tacanhez dos funcionários burgueses do século XIX e dos inícios do século XX, as últimas etapas da
coisificação dentro do processo de desenvolvimento do trabalho,
aliás em analogia com aquilo que a burguesia fizera um século antes, ao assumir
a herança do absolutismo. Tal só foi possível porque os partidos
operários e os sindicatos, como consequência da sua divinização do trabalho,
desenvolveram uma atitude positiva face ao aparelho de Estado e às instituições
da administração repressiva do trabalho, que de facto não pretendiam eliminar;
pretendiam sim ocupar esses postos numa espécie de «marcha através das
instituições». Assumiram, portanto, como anteriormente acontecera com a
burguesia, a tradição burocrática da administração dos indivíduos na sociedade
do trabalho, que vinha do absolutismo.
A ideologia da universalização social do trabalho exigia
também um novo quadro de relações políticas. Em lugar da velha articulação
entre os diferentes «estados» da sociedade, cada um com «direitos políticos»
distintos (por exemplo, o direito de voto em função do nível de imposto pago),
na sociedade do trabalho, que ainda só parcialmente estava instituída, tinha de
ser introduzida a igualdade universal, democrática, típica do «Estado do
trabalho» na sua máxima perfeição. As desigualdades decorrentes do
funcionamento da máquina da valorização do capital, logo que esta passou a
determinar toda a vida social, tinham que ser reequilibradas pelo Estado
social. O movimento operário encarregou-se também de fornecer o paradigma para
este efeito. Sob o nome de
«social-democracia», tornar-se-ia o maior «movimento civil» da história, que,
no entanto, só podia ser a
sua própria armadilha. Porque na democracia tudo é negociável, menos o carácter
coercivo da sociedade do trabalho, que é um pressuposto axiomático. O que pode ser debatido são apenas as modalidades e as formas da
coerção. Há sempre a escolha entre o Omo e o Persil, entre a peste e a cólera,
entre o descaramento e a estupidez, entre Kohl e Schröder.
A democracia da sociedade do trabalho é o sistema de
dominação mais pérfido da história - é um sistema de
auto-repressão. Por isso,
esta democracia nunca organiza a livre decisão dos membros da sociedade sobre
os recursos comuns, mas apenas a forma jurídica das mónadas de trabalho,
socialmente separadas entre si, que têm de vender concorrencialmente a sua pele
nos mercados de trabalho. A
democracia é o contrário da liberdade. E assim, os democráticos homens
do trabalho dividem-se necessariamente em administradores e administrados, em
empreendedores e empreendidos, em elites funcionais e material humano. Os
partidos políticos, e especialmente os partidos dos trabalhadores, espelham
fielmente esta relação na sua própria estrutura. A divisão entre
dirigentes e dirigidos, barões e arraia-miúda, militantes e simpatizantes,
torna evidente que o quadro de relações nada tem que ver com um debate franco e
com uma tomada de decisões aberta. Faz parte integrante da lógica
deste sistema que as próprias elites apenas possam ser funcionários não
autónomos do ídolo trabalho e das suas decisões cegas.
Pelo menos desde o Nazismo, todos os partidos são
simultaneamente partidos dos trabalhadores e partidos do capital. Nas
sociedades «em vias de desenvolvimento», do Leste e do Sul, o movimento
operário transformou-se em partido do terrorismo de Estado ao serviço da
recuperação do atraso na modernização; no Ocidente, transformou-se num conjunto
de diferentes «partidos populares», com programas e figuras de representação
mediática intermutáveis. A luta de classes está no fim,
porque a sociedade do trabalho está no fim. As classes sociais revelam-se
categorias sociais funcionais do sistema fetichista colectivo; agonizam à
medida que tal sistema vai agonizando. Se os Social-Democratas, os
Verdes e os ex-Comunistas se destacam na administração da
crise, desenvolvendo programas de repressão particularmente abjectos, com isso
apenas revelam que são os legítimos herdeiros de um movimento operário que
nunca teve outro objectivo senão o trabalho a qualquer preço.
XI - A CRISE DO TRABALHO
O primeiro princípio moral é o direito do homem ao seu
trabalho. […] A meu ver não há nada mais detestável do que uma vida ociosa. Nenhum
de nós tem esse direito. A civilização não tem lugar para os ociosos. Henry
Ford
O próprio capital é a contradição em processo, […] pois
esforça-se por reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, enquanto, por outro
lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza. [...]
Assim, por um lado, chama a terreiro todos os poderes da ciência e da natureza,
bem como os da combinação e do intercâmbio sociais, para fazer com que a
criação de riqueza seja (relativamente) independente do tempo de trabalho nela
aplicado. Por outro lado, pretende medir pelo tempo de trabalho estas
gigantescas forças sociais assim criadas, e contê-las dentro dos limites
requeridos para que o valor criado se mantenha como valor. Karl Marx - Esboço
da Crítica da Economia Política, 1857/1858.
Após a Segunda Guerra Mundial, durante um brevíssimo período
histórico, poderia parecer que, com a indústria fordista, a sociedade do
trabalho se havia consolidado num sistema de «perpétua prosperidade», no qual,
à custa do Estado social e do consumo generalizado, pudesse apaziguar-se
duradouramente a insuportabilidade da coerção própria da finalidade autotélica.
Independentemente de esta imagem ser uma fantasia típica dos hilotas da
periferia democrática, reportando-se apenas a uma pequena minoria da população
mundial, tal ideia não podia deixar de revelar também a sua inconsistência nos
países desenvolvidos. Com a terceira revolução industrial, a da
microelectrónica, a sociedade do trabalho atingiu o seu limite histórico
absoluto.
Era logicamente
previsível que este limite tinha de ser atingido mais cedo ou mais tarde, já
que o sistema centrado na produção de mercadorias padece desde a sua origem de
uma insanável contradição interna. Por um lado, ele vive de sugar energia humana em grandes quantidades, através do
dispêndio de força de trabalho inerente ao seu mecanismo… Quanto mais energia,
melhor. Por outro lado, contudo, a
lei da concorrência da economia empresarial obriga a um permanente aumento da
produtividade, num processo em que a força de trabalho humana vai sendo
substituída por capital fixo cientificizado.
Esta contradição interna tinha sido já a causa mais profunda
de todas as crises anteriores, nomeadamente da devastadora crise económica
mundial de 1929. Porém, essas crises puderam sempre ser ultrapassadas através
de um mecanismo de compensação: em cada novo patamar de produtividade, após um
determinado período de incubação, por intermédio da extensão do mercado a novas
camadas de consumidores, o sistema acabava por absorver mais trabalho do que
aquele que havia sido eliminado pelo processo de racionalização. Diminuía o
dispêndio de força de trabalho por produto, mas em termos absolutos eram
produzidos mais produtos, de tal forma que a diminuição acabava por ser
compensada, inclusivamente com ganho. Enquanto a inovação ao nível dos produtos
superou a inovação ao nível dos processos, a contradição interna do sistema
pôde traduzir-se num movimento de expansão.
O exemplo histórico mais impressionante é o automóvel: com a
linha de montagem e outras técnicas da «racionalização científica do trabalho»
(usadas pela primeira vez na fábrica de automóveis de Henry Ford, em Detroit), o
tempo de trabalho por automóvel ficou reduzido a uma pequena fracção do tempo
anteriormente gasto. Simultaneamente, o trabalho intensificou-se
gigantescamente, ou seja, multiplicou-se exponencialmente a absorção de
material humano em igual período de tempo. Sobretudo aconteceu que o automóvel,
até então um produto de luxo acessível apenas às camadas mais altas da
sociedade, foi introduzido no consumo de massas devido ao embaratecimento
resultante do processo.
Desta forma, apesar
da racionalização introduzida pela produção em cadeia com a segunda revolução
industrial, a do «fordismo», foi possível continuar a satisfazer a um nível
bastante elevado o apetite insaciável que o ídolo trabalho tem de energia
humana. Ao mesmo tempo, o automóvel é um exemplo central do carácter
destrutivo do modo de produção e de consumo da sociedade de trabalho altamente
desenvolvida. No interesse da produção
em massa de automóveis e da generalizada circulação individual, a paisagem é
asfaltada e destruída, o ambiente é envenenado, e aceita-se resignadamente que
nas estradas de todo o mundo, ano após ano, decorra uma terceira guerra mundial
não declarada, com milhões de mortos e estropiados.
Ora, sucede que, na terceira
revolução industrial - a da microelectrónica, este mecanismo de compensação por
expansão soçobra. É verdade que com a microelectrónica
também são embaratecidos muitos produtos e criados outros novos (sobretudo no
campo dos media). Mas, pela primeira vez, a inovação nos processos ultrapassa a
inovação nos produtos. Pela primeira vez, há mais trabalho eliminado pela racionalização do que aquele que pode
ser reabsorvido pela expansão dos mercados. No desenvolvimento lógico da
racionalização, a robótica electrónica
substitui a energia humana e as novas tecnologias das comunicações tornam o
trabalho humano supérfluo. Desaparecem
por inteiro sectores ou níveis anteriormente existentes na construção, na
produção, no marketing, no armazenamento, na venda e mesmo na gestão. Pela
primeira vez, o ídolo trabalho submete-se involuntariamente a um regime de
racionamento duradouro. E com isso cava a sua própria sepultura.
Como a sociedade
democrática do trabalho constitui um sistema autotélico amadurecido, fechado
sobre si mesmo, orientado para o consumo de força de trabalho, a sua estrutura
não aceita a simples passagem para uma redução generalizada do tempo de
trabalho. Por um lado, a racionalidade
económica empresarial exige que quantidades cada vez maiores de indivíduos
permaneçam duradouramente «desempregados», e portanto postos à margem da
possibilidade de reprodução da vida que é imanente ao sistema, mas por outro
lado, o número sempre mais reduzido dos «empregados» é submetido a uma
exigência de trabalho e de eficiência cada vez maior. No meio da riqueza, mesmo nos centros do capitalismo, regressam a
pobreza e a fome. Há meios de produção que ficam parados, terrenos de cultivo
que ficam de pousio em larga escala, como em larga escala ficam vazias as
habitações ou edifícios públicos, enquanto o número dos sem-abrigo cresce imparavelmente.
O capitalismo torna-se uma instituição de minorias à
escala global. No seu desespero, o ídolo trabalho, agonizante, torna-se o
canibal de si próprio. Em busca de sobras de trabalho para se alimentar, o
capital faz estourar as fronteiras da economia nacional e globaliza-se numa
concorrência nómada, em que cada grupo procura desalojar o outro. Regiões
inteiras do mundo são privadas dos fluxos globais de capital e de mercadorias.
Com uma onda de fusões e de «aquisições hostis» sem precedentes históricos, os
cartéis armam-se para a última batalha da economia empresarial. Os Estados e
nações desorganizados implodem, e as populações, empurradas para a loucura pela
luta concorrencial de sobrevivência, digladiam-se na guerra étnica dos bandos.
XII - O FIM DA POLÍTICA
A crise do trabalho
arrasta consigo necessariamente a crise do Estado e, portanto, da política.
Basicamente, o Estado moderno deve a sua carreira ao facto de o
sistema produtor de mercadorias precisar de uma instância superior que garanta,
no quadro da concorrência, os fundamentos jurídicos e os pressupostos da
valorização do capital - incluindo um aparelho repressivo para o caso de o
material humano se insubordinar contra o sistema. Na sua forma amadurecida de democracia de
massas, no século XX, o Estado teve de assumir, de forma crescente, encargos de
natureza socio-económica: não apenas o sistema de segurança social, mas também
a saúde e a educação, a rede de transportes e de comunicações, infra-estruturas
de todo o tipo que se tornaram indispensáveis para o funcionamento da sociedade
do trabalho, enquanto sociedade industrial desenvolvida, mas que não podem ser
organizadas de acordo com o processo de capitalização da economia empresarial.
E isto porque as infra-estruturas têm de estar permanentemente disponíveis para
o conjunto da sociedade e têm de cobrir todo o território, não podendo portanto
ser obrigadas a adaptar-se às conjunturas da oferta e da procura no mercado.
Mas como o Estado não
é uma unidade autónoma de valorização do capital, e portanto não pode
transformar trabalho em dinheiro, tem de ir buscar dinheiro ao processo de
capitalização realmente existente para financiar as suas tarefas. Esgotado o processo de ampliação
do capital, esgotam-se também as finanças do Estado. Aquele que parecia ser o soberano da sociedade revela-se afinal
totalmente dependente da cega e fetichizada economia da sociedade do trabalho.
Pode legislar como bem entender, mas, quando as forças produtivas crescem para
além do sistema de trabalho, o direito estatal positivo fica no vazio, uma vez
que só pode referir-se a sujeitos do trabalho.
Com o desemprego de
massas, sempre crescente, secam as receitas estatais provenientes dos impostos
sobre os rendimentos do trabalho. As redes sociais rompem-se assim que se
atinge uma massa crítica de «supérfluos» que, em termos capitalistas, só podem
ser alimentados através da redistribuição de outros rendimentos financeiros. Na
situação de crise, com o acelerado processo de concentração do capital, que
ultrapassa as fronteiras das economias nacionais, desaparecem também as
receitas fiscais resultantes da tributação dos lucros das empresas. Os trusts
transnacionais obrigam os Estados em competição pelos investimentos à prática
do dumping fiscal, social e ecológico.
É precisamente este
processo que leva o Estado democrático a transformar-se em mero administrador
da crise. Quanto
mais se aproxima do estado de emergência financeira, mais se reduz ao seu
núcleo repressivo. As
infra-estruturas são orientadas segundo as necessidades do capital
transnacional. Como outrora nos
territórios coloniais, a logística social restringe-se cada vez mais a um
número restrito de centros económicos, enquanto o resto fica abandonado. Privatiza-se o que pode ser privatizado,
mesmo que com isso cada vez mais pessoas fiquem excluídas das mais elementares
formas de abastecimento. Quando a valorização do capital se concentra num
número cada vez menor de ilhas do mercado mundial, deixa de ser possível dar
cobertura ao abastecimento das populações em todo o território.
Na medida em que tal não diga directamente respeito aos
sectores relevantes para a economia, já não interessa saber se os comboios
andam ou se as cartas chegam ao destino. A educação passa a ser um privilégio dos vencedores da globalização. A
cultura intelectual, artística e teórica é entregue ao critério do mercado e
agoniza. O sistema de saúde deixa de ser financiável e degenera num sistema de
classes. Primeiro lenta e disfarçadamente, depois de modo aberto, passa a valer
a lei da eutanásia social: quem é pobre e «supérfluo» deve morrer mais cedo.
Apesar de toda a
abundância de conhecimentos, capacidades e meios da medicina, da educação, da
cultura, da infra-estrutura geral, a lei irracional da sociedade do trabalho,
objectivada em termos de «restrição ao financiamento», fecha-os a sete chaves,
desmantela-os e atira-os para a sucata - exactamente como acontece com os meios
de produção agrários e industriais que deixaram de ser «rentáveis».
O Estado democrático, transformado num
sistema de apartheid, nada mais tem para oferecer àqueles que até agora eram os
cidadãos do trabalho do que a simulação repressiva da ocupação em formas de
trabalho barato e coercivo, e o desmantelamento de todas as prestações sociais.
Num estádio mais avançado, é a própria administração estatal que pura e
simplesmente se desmorona. Os aparelhos de Estado tornam-se mais selvagens,
transformando-se numa cleptocracia corrupta, os militares transformam-se em
bandos armados mafiosos e a polícia em assaltantes de estrada.
Não há política no
mundo que possa parar este desenvolvimento e, muito menos, invertê-lo.
Pois a política é, por essência, uma
acção em referência ao Estado; consequentemente, com a desestatização, ela fica
sem objecto. A fórmula democrática de esquerda, que fala da «progressiva
configuração política» das relações sociais, torna-se cada dia mais ridícula.
Para além de uma repressão sem fim, do desmantelamento da civilização e do
apoio ao «terror económico», já não há nada para «configurar». Uma vez que a
finalidade autotélica da sociedade do trabalho é o pressuposto axiomático da
democracia política, não pode haver nenhuma regulação político-democrática para
a crise do trabalho. O fim do trabalho é o fim da política.
XIII - O CAPITALISMO DE CASINO E O SEU JOGO DE SIMULAÇÃO NA
SOCIEDADE DO TRABALHO
Logo que o trabalho, na sua forma imediata, deixa de ser a
grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixa necessariamente de ser a
respectiva medida, e portanto deixa de ser o valor de troca [a medida] do valor
de uso. [...] Em consequência, a produção fundada no valor de troca desmorona-se
e o próprio processo imediato de produção material despoja-se da sua forma
mesquinha e contraditória. Karl Marx - Esboço da Crítica da Economia Política,
1857/58.
A consciência social
dominante engana-se sistematicamente a si mesma sobre a verdadeira situação da
sociedade do trabalho. As regiões em colapso são ideologicamente excomungadas,
as estatísticas relativas ao mercado de trabalho são descaradamente falsificadas,
as formas de pauperização são dissimuladas pelos media.
A simulação é o traço característico
mais central do capitalismo em crise. Isto vale também para a própria
economia. Se, pelo menos nos países ocidentais que constituem o núcleo do
sistema, subsistiu até agora a aparência de que o capital podia acumular-se
mesmo sem trabalho e que a forma pura do dinheiro sem substância podia garantir
o contínuo crescimento do valor, tal aparência ficava a dever-se a um processo
de simulação nos mercados financeiros. À imagem e semelhança da simulação do
trabalho através das medidas coercivas da administração democrática do
trabalho, formou-se uma simulação da valorização do capital através da
desarticulação especulativa entre o sistema de crédito e os mercados bolsistas
da economia real.
O consumo de trabalho presente é substituído pelo recurso ao
consumo de trabalho futuro, que nunca chegará a realizar-se. Trata-se, de certo
modo, de uma acumulação de capital num fictício «futuro do conjuntivo». O
capital-dinheiro, que já não pode ser reinvestido de forma rentável na economia
real, e que por isso não pode absorver mais trabalho, tem de se deslocar em
força para os mercados financeiros.
Já o impulso fordista da valorização do capital, nos tempos
do «milagre económico», após a Segunda Guerra Mundial, estava longe de ser
totalmente auto-sustentável. O Estado contraiu créditos em quantidades até
então desconhecidas, muito para além das suas receitas fiscais, porque as
condições estruturais da sociedade do trabalho já não podiam ser financiadas de
outra maneira. O Estado empenhou assim todas as suas efectivas receitas
futuras. Desta maneira surgiu, por um lado, uma possibilidade de investimento
financeiro para o capital-dinheiro «excedente» - emprestava-se ao Estado a troco
de juros. O Estado pagava os juros à custa de novos empréstimos, reinjectando
novamente o dinheiro emprestado no circuito económico. Por outro lado, o Estado
financiava as despesas sociais e os investimentos infra-estruturais, criando
assim uma procura que, em termos capitalistas, era necessariamente artificial,
uma vez que não tinha a cobertura de qualquer dispêndio de trabalho produtivo.
O boom fordista foi assim ampliado para além daquele que seria o seu verdadeiro
alcance, por via de um processo em que a sociedade do trabalho procedia à
sangria do seu próprio futuro.
Este elemento simulativo do processo - só aparentemente
ainda intacto - de valorização do capital chegou ao seu limite último
juntamente com o endividamento estatal. As «crises de dívida» dos orçamentos
estatais, não só no Terceiro Mundo, mas também nos países desenvolvidos,
deixaram de permitir que a expansão continuasse a realizar-se por este
processo. Foi esse o fundamento objectivo da campanha vitoriosa da
desregulamentação neoliberal, que, segundo a respectiva ideologia, deveria ir
de par com uma redução drástica da quota do Estado no produto social. Na
realidade, a desregulamentação e o desmantelamento das responsabilidades do
Estado foram anulados pelos custos da crise, ainda que sob a forma de custos da
repressão e da simulação estatais. Deste modo, são muitos os Estados em que a
quota do Estado no produto efectivamente aumentou.
Mas a acumulação do capital já não pode continuar a ser
simulada através do endividamento do Estado. E é por isso que, desde os anos
oitenta, a criação complementar de capital fictício se transfere para os
mercados bolsistas. Neles, há muito que não se trata de obter dividendos, ou
seja, a distribuição de lucros da produção real, mas apenas de obter ganhos de
cotação pelo aumento especulativo do valor dos títulos de propriedade até
números de grandeza astronómica. A
relação entre a economia real e o movimento especulativo dos mercados
financeiros foi virada de pernas para o ar. Já não é o aumento especulativo das
cotações a antecipar a expansão da economia real, mas pelo contrário é a
criação fictícia de valor, sempre em alta, que simula uma acumulação real que
simplesmente deixou de existir.
O ídolo do trabalho está clinicamente morto, mas recebe
respiração artificial através da expansão aparentemente autonomizada dos
mercados financeiros. As empresas industriais obtêm ganhos que já não resultam
da produção e da venda de bens reais, que há muito se tornaram empreendimentos
votados ao insucesso, mas sim da especulação em acções e divisas levada a cabo
pelos seus «habilidosos» departamentos financeiros. Os orçamentos públicos
apresentam receitas que não resultam de impostos ou de empréstimos, mas da
participação zelosa da administração financeira no jogo de azar dos mercados. E
os orçamentos privados, que viram as receitas reais provenientes dos salários e
honorários reduzir-se drasticamente, só conseguem manter um nível elevado de
consumo à custa de ganhos na bolsa. Surge assim uma nova forma de procura artificial
que, por sua vez, arrasta consigo uma produção real e receitas fiscais reais
«sem chão debaixo dos pés».
Desta maneira, a crise económica mundial vai sendo adiada
pelo processo especulativo; mas, como o aumento fictício do valor dos títulos
de propriedade só pode ser a antecipação da futura utilização real de trabalho
(numa escala astronómica) - que nunca virá a acontecer -, então o embuste
objectivado terá forçosamente de se desmascarar após um certo tempo de
incubação. O colapso dos «emerging markets» na Ásia, na América Latina e no
Leste da Europa foi só um aperitivo. Será apenas uma questão de tempo, e
entrarão igualmente em colapso os mercados financeiros dos centros capitalistas
nos Estados Unidos, na União Europeia e no Japão.
Este contexto é percebido de uma forma totalmente distorcida
pela consciência fetichizada da sociedade do trabalho e em particular pelos
tradicionais «críticos do capitalismo», à esquerda e à direita. Fixados no
fantasma do trabalho, nobilitado enquanto condição supra-histórica e positiva
da existência social, confundem sistematicamente causa e efeito. O adiamento
temporário da crise através da expansão especulativa dos mercados financeiros
aparece, assim, de forma invertida, como suposta causa da crise. A «maldade dos
especuladores» - na expressão vulgarmente usada, mais ou menos mesclada de
pânico - levá-los-ia a arruinar completamente a bela sociedade do trabalho,
gastando de forma extravagante o «bom dinheiro», que existe «de sobra», em vez
de o investirem de forma respeitável e sólida em maravilhosos «postos de
trabalho» para que uma humanidade de hilotas imbecilizados pelo ídolo pudesse
continuar a ter o seu «pleno emprego».
Não entra nestas cabeças este facto simples: não foi de
forma nenhuma a especulação que fez parar os investimentos reais, porque estes
já tinham deixado de ser rentáveis em consequência da terceira revolução
industrial. O disparo especulativo só pode ser um sintoma disso mesmo. O
próprio dinheiro, que aparentemente circula em quantidades infinitas, já não é
«bom», mesmo em sentido capitalista, mas apenas simples «ar quente» com que foi
sendo empolada a bolha especulativa. Qualquer tentativa de drenar um pouco esta
bolha, recorrendo a projectos tributários mais ou menos imaginativos («Taxa
Tobin», etc.) para reconduzir novamente o capital-dinheiro às rodas
alegadamente «correctas» e reais da engrenagem da sociedade do trabalho, só
pode acabar por levar ao seu mais rápido rebentamento.
Em vez de se
compreender que todos nos tornaremos inexoravelmente não rentáveis e que, por
isso, é o próprio critério
da rentabilidade que é preciso atacar, como princípio obsoleto que é, e,
juntamente com ele, o respectivo fundamento na sociedade do trabalho…, em vez
disso, demonizam-se os «especuladores». Esta imagem barata do
inimigo é cultivada em uníssono por radicais de direita e independentes de
esquerda, por honestos funcionários sindicais e keynesianos nostálgicos, por
teólogos sociais e apresentadores de «talk shows», ou seja, por todos os
apóstolos do «trabalho honrado». Poucos
estão conscientes de que daí até à reactivação da loucura anti-semita vai
apenas um pequeno passo. O apelo ao capital «criativo» e de sangue nacional
contra o capital-dinheiro, «judeu», internacional e «usurário», arrisca-se a
ser a última palavra da «esquerda dos postos de trabalho» intelectualmente
desorientada. Que era a última palavra da «direita dos postos de trabalho»,
desde sempre racista, anti-semita e antiamericana, isso já se sabia.
XIV - O TRABALHO NÃO PODE SER REDEFINIDO
Os serviços indiferenciados, directamente prestados a um
particular, podem aumentar não só o bem-estar material do indivíduo, mas também
o bem-estar imaterial. Assim, um prestador de serviços aumenta o bem-estar do
cliente ao assumir trabalho que este teria de executar. Em simultâneo
verifica-se um acréscimo do bem-estar do prestador de serviços, uma vez que
essa actividade faz crescer a sua auto-estima. Exercer um serviço
indiferenciado e personalizado é melhor para a psique do que estar
desempregado. Relatório da Comissão para Questões do Futuro, dos Estados Livres
da Baviera e da Saxónia, 1997.
Atém-te com firmeza ao conhecimento que vai sendo comprovado
no trabalho, pois a própria natureza o confirma e lhe dá o seu consentimento.
No fundo, não tens outro conhecimento além daquele que adquiriste pelo
trabalho; tudo o mais são apenas hipóteses do saber. Thomas Carlyle - Trabalhar
e não Desesperar, 1843.
Após séculos de domesticação, o homem moderno já nem
consegue imaginar uma vida para além do trabalho. Enquanto princípio imperial,
o trabalho não só domina a esfera da economia, em sentido estrito, como
impregna toda a existência social até aos poros do dia-a-dia e da existência
privada. O «tempo livre» - que é literalmente um conceito prisional - há muito
que serve para «renovar o stock» de mercadorias, garantindo assim a necessária
venda das mesmas.
Mas, fora do escritório ou da fábrica, a sombra do trabalho
estende-se sobre o indivíduo moderno muito para lá desse dever interiorizado de
consumo de mercadorias como finalidade autotélica. Logo que se levanta do sofá
em frente da televisão e começa a agir, qualquer coisa que faça transforma-se
numa espécie de trabalho. O praticante de jogging substitui o relógio de ponto
pelo cronómetro, a engrenagem fabril tem o seu renascimento pós-moderno nas
máquinas cromadas dos ginásios, e os trabalhadores em férias fazem nos seus
automóveis tantos quilómetros como se tivessem de realizar o objectivo anual de
um motorista profissional de longo curso. E até mesmo o foder se orienta pelos
formatos DIN da investigação sexológica e pelos padrões de concorrência das
fanfarronices dos talk shows.
Se o rei Midas ainda achava que era uma maldição o facto de
transformar em ouro tudo aquilo em que tocava, o seu moderno companheiro de
sofrimento já ultrapassou esse estádio. O
homem da sociedade do trabalho já não consegue sequer perceber que, graças à
equiparação de todas as coisas pelo padrão do trabalho, todo o fazer perde o
seu sentido especial e torna-se indiferente. Pelo contrário, o que acontece é
que ele só confere sentido, justificação e significado social a uma actividade
qualquer precisamente através dessa equiparação à indiferença do mundo das
mercadorias. Por exemplo, com um sentimento como o luto, o sujeito do trabalho
não sabe que fazer; todavia, a transformação do luto em «trabalho do luto» transforma esse corpo estranho emocional
num valor conhecido, mediante o qual pode estabelecer trocas com os seus
semelhantes. O próprio sonhar torna-se «trabalho do sonho», o conflito com uma
pessoa amada passa a «trabalho da relação», e a convivência com as crianças
transforma-se em «trabalho educativo»; todas essas actividades são assim
privadas de realidade e tornadas indiferentes. Sempre que o homem moderno
insiste em fazer algo com «seriedade», tem na ponta da língua a palavra
«trabalho».
O imperialismo do
trabalho traduz-se portanto na linguagem do dia-a-dia. Não só estamos
habituados a empregar inflacionadamente a palavra «trabalho», como também a
usá-la em dois planos de significação completamente diferentes. Há muito que
«trabalho» não significa apenas (como seria pertinente) a forma de actividade,
própria da sociedade capitalista, dentro da engrenagem da finalidade
autotélica; o conceito tornou-se igualmente sinónimo de qualquer actividade com
um objectivo e, desta forma, apagou o seu rasto.
Esta falta de precisão conceptual prepara o terreno para uma
certa crítica, bastante corrente, mas muito pouco fiável, da sociedade do
trabalho, crítica que opera precisamente ao contrário, isto é, a partir de uma
interpretação positiva do sentido do imperialismo do trabalho. Acusa-se a
sociedade do trabalho precisamente de, com as suas formas de actividade, não
conseguir ainda um domínio suficiente sobre a vida, porque concebe o trabalho
de maneira alegadamente demasiado «restritiva», excomungando moralmente do
respectivo âmbito o «trabalho individual» ou a «auto-ajuda» (trabalho
doméstico, ajuda de vizinhança, etc.), para apenas aceitar como «verdadeiro»
trabalho aquele que é remunerado segundo os critérios do mercado. Assim, uma
reavaliação e uma ampliação do conceito de trabalho deveriam eliminar essa
rigidez unilateral e a estratificação hierarquizada dela decorrente.
Esta forma de pensar não visa, portanto, a emancipação das
coerções dominantes, mas apenas uma correcção semântica. A crise iniludível da sociedade do trabalho deveria ser solucionada
pela consciência social através da elevação «efectiva» à nobreza do trabalho
das formas de actividade até hoje consideradas inferiores e marginais à esfera
da produção capitalista. Só que a inferioridade destas actividades não é
apenas o resultado de uma determinada visão ideológica, antes pertence à
estrutura fundamental do sistema de produção de mercadorias e não pode ser
superada por simpáticas redefinições morais.
Numa sociedade dominada pela produção de mercadorias
enquanto finalidade autotélica, só pode valer como riqueza verdadeira aquilo
que puder ser representado sob forma monetarizada. O conceito de trabalho
determinado por este contexto brilha imperialmente sobre todas as outras
esferas, mas de facto apenas de um modo negativo, na medida em que revela que
elas são dele dependentes. Assim, as esferas externas à produção de mercadorias
ficam necessariamente na sombra da esfera da produção capitalista, porque não
entram na lógica abstracta empresarial da economização do tempo - mesmo e
precisamente quando são necessárias à vida, como no caso da esfera segregada,
definida como «feminina», das actividades domésticas, da prestação de cuidados
individualizados, etc.
Uma ampliação
moralizante da esfera do trabalho, em lugar da sua crítica radical, não apenas
encobre a realidade do imperialismo social da economia produtora de
mercadorias, como se adapta da melhor maneira às estratégias autoritárias da
administração da crise por parte do Estado. A exigência,
vinda dos anos setenta, de reconhecimento social do «trabalho doméstico» e das
actividades do «terceiro sector» enquanto trabalho plenamente válido, começou
por especular com a ideia das prestações financeiras estatais. Mas o Estado, na sua crise, vira o feitiço
contra o feiticeiro e mobiliza o impulso moral desta reivindicação no sentido
do famoso «princípio de subsidiariedade», exactamente contra as expectativas
materiais da dita reivindicação.
O cântico celestial
sobre as virtudes do «voluntariado» e do «trabalho cívico» não diz se se pode
ir depenicar alguma coisa ao tacho das finanças do Estado, que anda bastante
vazio, antes funciona como álibi do recuo do Estado em matéria social, dos
programas de trabalho forçado em curso e da tentativa mesquinha de transferir o
peso da crise principalmente para as mulheres. As instituições públicas abandonam os seus
compromissos de ordem social e substituem-nos por um apelo à mobilização de «nós
todos», um apelo simpático e sem custos: de preferência, que seja a iniciativa
particular de cada um a combater a miséria própria e alheia, e basta de
exigências materiais. E é assim que uma manipulação acrobática do sacrossanto
conceito de trabalho, apresentada enquanto programa emancipatório, abre as
portas de par em par à tentativa estatal de concretizar a supressão do trabalho
assalariado pela eliminação do salário, conservando o trabalho na terra
queimada da economia de mercado. Sem querer, o que se prova com isto é que hoje
a emancipação social só pode ter como conteúdo, não a revalorização do
trabalho, mas a sua desvalorização consciente.
XV - A CRISE DA LUTA DE INTERESSES
Comprova-se que, em virtude de leis inelutáveis da natureza
dos homens, há muitos seres humanos que ficam expostos à miséria. São os
infelizes que tiraram um bilhete em branco na grande lotaria da vida. Thomas
Robert Malthus
Por muito que a crise fundamental do trabalho seja recalcada
e transformada em assunto tabu, a verdade é que ela marca com o seu cunho todos
os conflitos sociais da actualidade. A passagem de uma sociedade de integração
de massas para uma ordem de selecção e apartheid não conduziu a uma nova ronda
da antiga luta de classes entre o capital e o trabalho, mas sim a uma crise das
categorias da própria luta de interesses imanente ao sistema. Já na época da
prosperidade, após a Segunda Guerra Mundial, a antiga ênfase da luta de classes
tinha empalidecido. Não porque o sujeito, «em si mesmo» revolucionário, tivesse
sido «integrado» através de processos de manipulação e corrupção num discutível
bem-estar, mas, pelo contrário, porque no desenvolvimento fordista se revelou a
identidade lógica entre o capital e o trabalho, enquanto categorias sociais
funcionais de uma mesma forma social fetichista. O desejo - imanente ao sistema
- de vender nas melhores condições possíveis a mercadoria força de trabalho
deixou de ter qualquer elemento que apontasse no sentido da transcendência do
sistema.
Se, ainda nos anos
setenta, se tratava de conquistar uma participação de camadas mais vastas da
população nos frutos envenenados da sociedade do trabalho, até esse impulso se
dissolveu nas novas condições de crise da terceira revolução industrial. Só
enquanto a sociedade de trabalho estava ainda em expansão foi possível conduzir
em larga escala a luta de interesses das suas categorias sociais funcionais.
Contudo, exactamente na medida em que desaparece a base comum, os interesses
imanentes ao sistema deixam de poder agregar-se no plano social geral. Desencadeia-se uma des-solidarização generalizada. Os trabalhadores
assalariados desertam dos sindicatos, os gestores deixam as associações
empresariais. Cada um por si, e o deus sistema capitalista contra todos: a tão
invocada individualização não é senão mais um sintoma da crise da sociedade do
trabalho.
Tanto quanto ainda subsistam interesses que possam ser
agregados, são-no apenas ao nível microeconómico. Porque, na mesma medida em
que passa a ser um privilégio poder deixar que a vida seja triturada ao sabor
da economia empresarial, com o correlativo desprezo pela emancipação social,
também a tarefa de representar os interesses da mercadoria força de trabalho
degenera numa brutal política de lobbies dizendo respeito a segmentos sociais
cada vez mais reduzidos. Agora, quem
aceita a lógica do trabalho tem de aceitar também a lógica do apartheid. Hoje,
trata-se unicamente de garantir à clientela própria, estritamente delimitada,
que pode continuar a vender a sua pele à custa de todos os demais. Há muito que as assembleias de
trabalhadores e as comissões de empresa deixaram de considerar que os seus
verdadeiros adversários estão na administração das unidades empresariais;
passaram a vê-los nos assalariados das empresas concorrentes e nas
«localizações» estratégicas alternativas, quer seja na cidade vizinha ou no
Extremo Oriente. E quando se coloca
a questão de saber quem será liquidado no próximo avanço da racionalização
empresarial, até a secção do lado e o colega mais próximo passam a ser
inimigos.
A des-solidarização
radical está longe de dizer respeito apenas aos conflitos empresariais e
sindicais. O princípio do «salve-se quem puder» domina todos os conflitos de
interesses precisamente porque, na crise da sociedade do trabalho, todas as
categorias funcionais persistem, mais fanaticamente ainda, na sua lógica
própria, segundo o princípio de que todo e qualquer bem-estar humano só pode
ser mero produto residual da rentabilidade e da valorização do capital.
Todos os lobbies conhecem as regras do jogo e agem de acordo com elas. Cada moeda obtida pela clientela alheia é uma moeda perdida para a
clientela própria. Cada rotura na outra ponta da rede social aumenta deste lado
as possibilidades de obter mais um adiamento da ida para a forca. O reformado
torna-se adversário natural de todos os contribuintes; o doente, inimigo de
todos os beneficiários da segurança social; o imigrante, objecto de ódio de
todos os nacionais enfurecidos.
A pretensão de utilizar a luta de interesses imanente ao
sistema como alavanca da emancipação social esgota-se irreversivelmente. E
desta maneira, portanto, chega ao fim a esquerda clássica. O renascer de uma
crítica radical do capitalismo pressupõe uma rotura categorial com o trabalho. Só quando se estabelecer um novo objectivo de emancipação social num
plano situado para lá do trabalho e das categorias fetichistas dele derivadas
(valor, mercadoria, dinheiro, Estado, forma jurídica, nação, democracia, etc.),
é que se tornará possível uma re-solidarização de nível elevado e à escala de
toda a sociedade. E só nesta perspectiva as lutas defensivas,
imanentes ao sistema, podem ser reagrupadas contra a lógica da lobização e da
individualização; já não numa relação positiva com as categorias dominantes,
mas numa perspectiva que proceda à negação estratégica dessas categorias.
Até hoje a esquerda sempre tentou
esquivar-se a esta rotura categorial com a sociedade do trabalho.
Desvaloriza o carácter coercivo do sistema, encarando-o como mera ideologia, do mesmo modo que
desvaloriza a lógica da crise, entendendo-a como mero projecto político dos
«dominantes». Em vez da rotura categorial, entra em
cena a nostalgia social-democrata e keynesiana. Não se aspira a uma nova universalidade concreta das formações sociais,
que se situe para lá do trabalho abstracto e da forma do dinheiro; pelo
contrário, a esquerda tenta atabalhoadamente manter a antiga universalidade
abstracta dos interesses imanentes ao sistema. Tais tentativas, porém,
continuam a ser elas mesmas abstractas, e não conseguem já integrar-se em
nenhum movimento social de massas porque iludem as condições reais da crise.
É o que se passa em
particular com a reivindicação do rendimento mínimo ou da prestação de
sobrevivência. Em vez de interligar as lutas sociais concretas defensivas,
dirigidas contra determinadas medidas do regime de apartheid, com um programa
geral contra o trabalho, tais reivindicações pretendem produzir uma
universalidade da crítica social, que é falsa, e que - em todos os aspectos -
continua a ser abstracta, imanente ao sistema e inútil.
A concorrência social, própria da crise, não pode ser superada por esta via.
Ignorando os factos, continua a pressupor-se
que o funcionamento da sociedade global do trabalho é eterno: de onde
haveria de vir o dinheiro para o financiamento do dito rendimento mínimo
garantido pelo Estado, se não do sucesso dos empreendimentos de valorização do
capital? Quem conta com este «dividendo social» (o termo já explica tudo) tem de
ao mesmo tempo apostar, embora disfarçadamente, na posição privilegiada do
«seu» país na concorrência global, pois só a vitória na guerra mundial dos
mercados permitiria provisoriamente alimentar alguns milhões de «supérfluos»
comensais à mesa doméstica do capitalismo - obviamente excluindo todos os que
não tenham Bilhete de Identidade nacional.
Os reformistas
«amadores» que reivindicam o rendimento mínimo ignoram, em todos os aspectos, a
configuração capitalista da forma do dinheiro. No fundo, para eles trata-se de, entre os sujeitos do
trabalho capitalista e os sujeitos do consumo de mercadorias capitalistas,
salvar apenas estes últimos. Nesta perspectiva, em vez de se pôr em questão o
modo de vida capitalista em geral, deve deixar-se que, apesar da crise do
trabalho, o mundo continue a ser soterrado debaixo de avalanches de sucata
automóvel fedorenta, de horrorosos blocos de betão, de mercadorias-lixo de
baixo valor, para que aos homens reste a última e triste liberdade que ainda
conseguem imaginar: a liberdade de escolha perante as prateleiras do
supermercado.
Mas mesmo esta perspectiva triste, tacanha, é totalmente
ilusória. Os analfabetos teóricos, que são os respectivos protagonistas de
esquerda, esqueceram-se de que o consumo capitalista de mercadorias
nunca serve simplesmente para a satisfação de necessidades, e que, pelo
contrário, só existe em função do movimento de valorização do capital.
Quando já não se consegue vender a força de trabalho, mesmo as necessidades
mais elementares passam a ser consideradas pretensões luxuosas e
desavergonhadas, que devem ser reduzidas ao mínimo. O programa do rendimento
mínimo serve de veículo precisamente para isso, designadamente enquanto
instrumento estatal de redução de custos e enquanto versão miserável das prestações
sociais que vem substituir-se aos sistemas de segurança social em colapso. Foi neste sentido que o mestre do neoliberalismo, Milton Friedman,
desenvolveu originalmente o conceito de rendimento mínimo, antes de a esquerda,
à falta de outras armas, o ir descobrir como suposta tábua de salvação. E, com
este conteúdo, o rendimento mínimo será uma realidade… Ou não será coisa
nenhuma.
XVI - A SUPERAÇÃO DO TRABALHO
O `trabalho' é, na sua essência, a actividade não-livre,
in-humana, a-social, determinada pela propriedade privada e criadora da
propriedade privada. A superação da propriedade privada só se tornará, pois,
realidade quando for concebida como superação do `trabalho'. Karl Marx - A
propósito do livro de Friedrich List, O Sistema Nacional da Economia Política,
1845.
A rotura com as categorias do trabalho não se depara com um
campo social definido, objectivamente determinado, ao contrário do que acontece
com a luta de interesses limitada e imanente ao sistema. Trata-se de uma rotura
com a normatividade falsamente objectiva de uma «segunda natureza», e portanto
a sua efectivação não poderá ser vista uma vez mais como algo de quase
automático, antes terá que ser uma consciência negadora - objecção e rebelião,
não respaldada em qualquer «lei da história». O ponto de partida desta rotura
não pode ser um novo princípio universal e abstracto, mas apenas a repulsa que
cada um sente perante a sua existência enquanto sujeito do trabalho e da
concorrência, e a recusa categórica de ter que continuar a funcionar assim, em
circunstâncias cada vez mais miseráveis.
Apesar da sua
dominação absoluta, o trabalho nunca conseguiu apagar totalmente a revolta
contra as suas coerções. A par de todos os fundamentalismos regressivos e de
todos os desvarios da concorrência no plano da selecção social, existe também um potencial de
protesto e resistência. O mal-estar existe em larga escala dentro do
capitalismo, mas é reprimido para o subsolo socio-psíquico. E não é chamado à
superfície. Por isso é necessário um novo espaço
intelectual livre para que o impensável possa tornar-se pensável. É preciso
quebrar o monopólio que o campo do trabalho mantém sobre interpretação do
mundo. Neste processo, à crítica teórica do trabalho cabe o
papel de catalisador. Ela tem o dever de atacar frontalmente os interditos
dominantes que impedem o exercício do pensamento, e tem a obrigação de
expressar, aberta e claramente, aquilo que ninguém ousa saber, mas que é de
facto sentido por muitos: a sociedade do trabalho está definitivamente no fim.
E não há a menor razão para lamentar-lhe a morte.
Só a crítica do trabalho, formulada com rigor e acompanhada
pelo correspondente debate teórico, pode criar um novo contra-espaço público,
condição indispensável para construir um movimento social que seja uma prática
contra o trabalho. As disputas internas ao campo do trabalho estão esgotadas e
tornaram-se cada vez mais absurdas. É por isso tanto mais urgente redefinir as
linhas de conflito social, em torno das quais se possa formar uma união contra
o trabalho.
Trata-se portanto de esboçar em traços largos quais os
objectivos possíveis para um mundo situado para lá do trabalho. O programa
contra o trabalho não se alimenta de um cânone de princípios positivos, mas da
força da negação. Se o sucesso da imposição do
trabalho foi conseguido a par de uma longa expropriação do homem das condições
da sua própria vida, então a negação da sociedade do trabalho só pode consistir
em os homens se reapropriarem do seu contexto social, a um nível histórico
superior. Por isso, os
adversários do trabalho têm em vista a formação em todo o mundo de alianças de indivíduos
livremente associados capazes de arrancar a essa estrutura sem conteúdo,
que é a máquina do trabalho e da valorização do capital, os meios de produção e
de existência, tomando-os nas suas próprias mãos. Só na luta contra a
monopolização de todos os recursos sociais e de todos os potenciais de riqueza,
que as forças alienadoras do mercado e do Estado levam a cabo, será possível
conquistar espaços sociais de emancipação.
Neste processo torna-se também necessário que a
propriedade privada seja atacada de um modo diferente e novo. Para a
esquerda tradicional, a propriedade privada não era a forma jurídica do sistema
produtor de mercadorias, mas apenas um ominoso e subjectivo poder de
«disposição» que os capitalistas detêm sobre os recursos. Pôde assim surgir a
ideia absurda de querer ultrapassar a propriedade privada no terreno da
produção de mercadorias. Em regra, a propriedade estatal («nacionalização») aparecia
então como o oposto da propriedade privada.Mas o Estado não é senão a
associação coerciva exterior ou a universalidade abstracta dos produtores de
mercadorias socialmente atomizados; em consequência, a propriedade estatal mais não é do que uma forma derivada da
propriedade privada - pouco importa que se lhe acrescente ou não o adjectivo
«socialista».
Na crise da sociedade do trabalho, quer a propriedade
privada quer a propriedade estatal tornaram-se obsoletas, porque as duas formas
de propriedade pressupõem na mesma medida o processo de valorização do capital.
É exactamente por esta razão que cada vez mais os meios
materiais correspondentes a qualquer forma de propriedade vão sendo encerrados
ou deixados de «pousio». Para que assim continue a ser e para que os meios de
produção apodreçam em vez de serem utilizados para um outro fim, existe a
vigilância zelosa dos funcionários estatais, empresariais e jurídicos. A
conquista dos meios de produção por associações livres contra a administração
coerciva estatal e jurídica só pode, portanto, significar que esses meios de
produção deixam de ser mobilizados sob a forma de produção de mercadorias para
mercados anónimos.
Em vez da produção de
mercadorias, passa a existir a discussão directa, o acordo e a decisão conjunta
dos membros da sociedade sobre o uso judicioso dos recursos.
Surgirá então a identidade social e
institucional entre produtores e consumidores, impensável sob a ditadura da
finalidade autotélica capitalista. O mercado e Estado, enquanto instituições do processo de alienação,
serão substituídos por um sistema escalonado de conselhos, em que as
associações livres, desde o nível do bairro até ao nível mundial, determinam o
fluxo dos recursos de acordo com pontos de vista baseados numa racionalidade
sensível, social e ecológica.
Já não será a finalidade autotélica do trabalho e do
«emprego» a determinar a vida, mas sim a organização da utilização judiciosa
das possibilidades comuns, as quais deixam de ser dirigidas pelo automatismo de
uma «mão invisível», para passarem a sê-lo pela acção social
consciente. A riqueza
produzida será objecto de apropriação directa segundo as necessidades, e não em
função do «poder de compra». Juntamente com o trabalho, desaparecerá a
universalidade abstracta do dinheiro, tal como a do Estado. Em substituição das
nações separadas surgirá uma sociedade mundial que já não precisa de
fronteiras, na qual cada indivíduo poderá deslocar-se livremente e contar com o
universal direito de permanência em qualquer lugar.
A crítica do trabalho
é uma declaração de guerra contra a ordem dominante; não é uma coexistência
pacífica entre alguns nichos e as coerções da ordem dominante. O lema da emancipação social só pode ser: tomemos aquilo de que
necessitamos! Não nos arrastemos mais de joelhos sob o jugo dos mercados de
trabalho e da administração democrática da crise! A condição necessária para a
realização destes objectivos é o controlo exercido por novas formas sociais de organização
(associações livres, conselhos) sobre o conjunto das condições sociais da
reprodução. Este objectivo traça uma distinção fundamental entre os
adversários do trabalho e todos aqueles políticos e espíritos mesquinhos que
sonham com uma transformação por nichos ou com uma espécie de socialismo de
hortinha.
A ditadura do trabalho cinde o indivíduo humano. Separa o
sujeito económico do cidadão, o animal de trabalho do homem em férias, a esfera
pública abstracta da esfera privada abstracta, a masculinidade artificial da
feminilidade artificial, opondo assim aos indivíduos isolados o seu próprio
contexto social como um poder que lhes é estranho e os domina. Os inimigos do trabalho têm em vista a superação desta esquizofrenia
pela apropriação concreta do contexto social por parte de homens agindo de
forma consciente e auto-reflexiva.
XVII - UM PROGRAMA ABOLICIONISTA CONTRA OS AMANTES DO
TRABALHO
Que o trabalho em si
mesmo - não apenas nas condições actuais, mas em geral, na medida em que a sua
finalidade é o mero crescimento da riqueza -, que o trabalho, afirmo eu, é em
si mesmo prejudicial e ruinoso, é coisa que decorre,
sem que o nosso economista [Adam Smith] o saiba, das suas próprias análises. Karl
Marx - Manuscritos EconómicoFilosóficos, 1844
Os adversários do trabalho serão acusados de não passarem
de fantasistas.
A história teria comprovado que uma sociedade não pode
funcionar se não se basear nos princípios do trabalho, da coerção produtiva, da
concorrência em economia de mercado e do egoísmo individual. Quereis portanto afirmar, vós, apologistas
do status quo dominante, que a produção capitalista de mercadorias veio de
facto proporcionar uma vida minimamente aceitável para a maioria dos homens?
Dizeis que o sistema «funciona», justamente quando o crescimento vertiginoso
das forças produtivas expulsa da humanidade milhões de indivíduos que podem
ficar felizes por sobreviverem nas lixeiras? Quando milhões de outros, que mal
suportam a vida frenética a que os obriga a ditadura do trabalho, caem no
isolamento e na solidão, narcotizam a inteligência sem qualquer prazer e
adoecem física e psiquicamente? Quando o mundo é transformado num deserto,
apenas para que com o dinheiro se possa fazer mais dinheiro? Pois bem. Esse é
realmente o modo como o vosso grandioso sistema do trabalho «funciona». Mas
nós recusamo-nos a realizar tais façanhas!
A vossa auto-satisfação baseia-se na vossa ignorância e na
fraqueza da vossa memória. A única justificação que encontrais para os vossos
crimes actuais e futuros é a situação do mundo, que resulta dos vossos crimes
passados. Haveis esquecido e recalcado quantos massacres estatais foram
necessários para meter à força nos cérebros humanos a mentira da vossa «lei
natural», segundo a qual é uma felicidade estar «ocupado» em actividades
determinadas por outrem e deixar sugar a energia vital em benefício da
abstracta finalidade autotélica do ídolo do vosso sistema.
Para fazer com que a humanidade interiorizasse a ditadura do
trabalho e do egoísmo, foi preciso começar por exterminar as instituições
auto-organizativas e de cooperação autodeterminada típicas das antigas
sociedades agrárias. Talvez tenha sido realizado um trabalho perfeito. Não
somos exageradamente optimistas. Não podemos saber se será bem sucedida a
libertação desta forma de vida condicionada. Está em aberto a questão de saber
se a derrocada do sistema do trabalho conduzirá à superação da respectiva
loucura ou ao fim da civilização.
Argumentareis que, com uma eventual superação da
propriedade privada e da obrigação de ganhar dinheiro, cessaria toda a
actividade e instalar-se-ia a preguiça generalizada.
Confessais, portanto, que todo o vosso sistema «natural»
se baseia em pura coerção? E que, por isso, temeis a preguiça como pecado
mortal contra o espírito do ídolo trabalho? Os inimigos do trabalho, porém,
não têm nada contra a preguiça. Um dos nossos
objectivos principais é a reconstrução da cultura do ócio, que antigamente todas as
sociedades conheciam e que foi destruída para impor uma produção sem descanso e
sem sentido. Por isso, em primeiro lugar, os adversários do
trabalho irão paralisar, sem os substituírem, os inúmeros ramos de produção que
apenas servem para manter a alucinada finalidade autotélica do sistema produtor
de mercadorias e que não levam em conta os danos que causam.
Não nos referimos apenas aos sectores de trabalho que são
claramente perigosos para a comunidade, como a indústria
automóvel, a indústria de armamento e a indústria nuclear; falamos também da
produção das inúmeras próteses de sentido, dos ridículos objectos de
pseudodiversão destinados a simular um sentido substitutivo para a vida
desperdiçada, imposta aos homens da sociedade do trabalho. Terá também de desaparecer a monstruosa quantidade de actividades que
só existem porque há toda uma multidão de produtos que é preciso fazer passar
por esse autêntico buraco de agulha que é a forma do dinheiro e a mediação do
mercado. Ou achais que continuarão a ser
necessários contabilistas e orçamentistas, especialistas de marketing e
vendedores, mediadores e publicitários, a partir do momento em que as coisas
forem sendo produzidas conforme as necessidades e quando os indivíduos se
limitarem a tomar para si aquilo de que precisam? E qual a utilidade dos
funcionários de finanças e dos polícias, dos assistentes sociais e dos
administradores da pobreza, quando já não houver propriedade privada para
proteger, quando não houver miséria social para administrar, nem for preciso
domesticar os indivíduos para a alienação das coerções do sistema?
Já estamos a ouvir o grito: Ai, tantos postos de
trabalho! Mas, com certeza. Calculai calmamente quanto tempo de vida a
humanidade rouba diariamente a si mesma só para acumular «trabalho morto», para
administrar os indivíduos e deitar umas gotas de óleo na engrenagem do sistema
dominante. Quanto tempo poderíamos todos
nós passar ao sol, em vez de nos esfolarmos por coisas sobre cujo carácter
grotesco, repressivo e destrutivo já se encheram bibliotecas inteiras.
Mas não tenhais medo. Não acabarão de
modo algum todas as actividades, quando a coerção do trabalho desaparecer.
Serão, sim, as actividades a mudar de carácter a partir do momento em que já
não estiverem confinadas à esfera do tempo abstracto, linear, e da respectiva
finalidade autotélica e sem sentido, passando cada actividade particular, pelo
contrário, a poder seguir o seu próprio ritmo, individualmente variável e
integrado em contextos de vida pessoais; e nas formas maiores de organização da
produção serão os indivíduos a determinar eles próprios os ritmos, em vez de se
submeterem às determinações da ditadura da valorização do capital na lógica da
economia empresarial. Que razão há para que alguém se deixe acossar pelas
exigências insolentes de uma concorrência imposta? É tempo de redescobrir a lentidão.
Obviamente, também não desaparecerão as actividades da
economia doméstica ou da prestação de cuidados individualizados, tarefas que a
sociedade do trabalho escondeu, segregou e definiu como «femininas». A
preparação de alimentos é tão pouco automatizável como a mudança de fraldas a um
bebé. Quando, juntamente com o trabalho, desaparecer a separação das esferas
sociais, estas actividades necessárias passarão a estar em condições de surgir
à luz da organização social consciente e, portanto, deixarão de estar
submetidas ao regime de atribuição de tarefas em função dos sexos. Perdem o seu
carácter repressivo logo que deixarem de submeter a si próprias os indivíduos e
passarem a ser realizadas tanto por homens como por mulheres, conforme as
circunstâncias e as necessidades.
Não dizemos que todas as actividades se tornarão um
prazer. Umas mais, outras menos. Naturalmente, há sempre algo que necessariamente tem de ser feito. Mas
quem há-de assustar-se com tal coisa, se a vida não for consumida nisso? E haverá sempre muito mais coisas que podem ser feitas por livre
escolha. Porque faz falta a actividade, tal como faz falta o ócio. Ora, o
trabalho nunca conseguiu suprir esta falta. Limitou-se a instrumentalizá-la no
seu interesse, a sugá-la vampirescamente.
Os inimigos do trabalho não são defensores fanáticos nem
de um activismo cego, nem de um igualmente cego quietismo.
Ócio, actividades necessárias e actividades livremente
escolhidas devem ser harmonizados numa relação com sentido, orientada pelas
necessidades e pelos contextos da vida. Desde que
subtraídas às coerções materiais do trabalho, tipicamente capitalistas, as
modernas forças produtivas podem ampliar gigantescamente o tempo livre em
benefício de todos. Para quê passar horas e horas, dia após dia, nas fábricas e
nos escritórios, se é possível pôr autómatos de todos os tipos a realizar a
maior parte dessas actividades? Para quê fazer
suar centenas de corpos humanos, quando são suficientes umas quantas ceifeiras
mecânicas? Para quê gastar o espírito numa tarefa rotineira que um computador
facilmente pode realizar?
Em todo o caso, para
estes fins só poderá aproveitar-se uma pequena parte da técnica, na forma
capitalista de que se reveste. A maior parte dos complexos tecnológicos tem de
ser totalmente transformada, uma vez que foram construídos de acordo com os
estritos padrões da rentabilidade abstracta. E, por essa
mesma razão, há muitas outras
possibilidades técnicas que não chegaram sequer a ser desenvolvidas. Embora a energia solar possa ser obtida em
qualquer esquina, a sociedade do trabalho instalou por todo mundo centrais
eléctricas perigosas, localizadas em zonas densamente povoadas. E, embora há muito se conheçam métodos limpos
de produção agrícola, o calculismo abstracto do dinheiro verte toneladas de
veneno nas águas, destrói os solos e inquina os ares. Por razões estritamente
decorrentes da economia empresarial, os materiais de construção e os alimentos
dão três voltas ao mundo, embora na sua maior parte essas coisas pudessem ser
facilmente produzidas nas proximidades do local em que vão ser utilizadas, sem
necessidade de recorrer a transportes de longa distância. Uma parte substancial
da técnica capitalista é tão insensata e supérflua como o dispêndio de energia
humana que implica.
Não vos dizemos nada de novo. E, no entanto, nunca
retirareis as consequências daquilo que tão bem sabeis. Porque, de facto,
continuais a abster-vos de tomar qualquer decisão consciente sobre quais os
meios de produção, de transporte e de comunicações que faz sentido utilizar e
quais os que são prejudiciais ou simplesmente supérfluos. Quanto mais
freneticamente recitais o vosso mantra da liberdade democrática, tanto
mais obstinadamente recusais a mais elementar liberdade social de decisão,
porque quereis continuar a servir o cadáver dominante do trabalho e as suas
pretensas «leis naturais».
XVIII - A LUTA CONTRA O TRABALHO É ANTIPOLÍTICA
A nossa vida é o
assassinato pelo trabalho. Durante sessenta anos ficamos enforcados,
estrebuchando na corda. Mas vamos cortá-la. Georg Büchner
- A Morte de Danton, 1835.
A superação do trabalho é tudo menos uma utopia nebulosa. A
sociedade mundial não pode manter-se na forma actual por mais cinquenta ou cem
anos. O facto de os adversários do trabalho terem de se haver com um ídolo
clinicamente morto não torna a sua missão necessariamente mais fácil. Pois, quanto mais se agudiza a crise da sociedade do trabalho e abortam todas
as tentativas de recuperação, mais se aprofunda o fosso entre o isolamento das
mónadas sociais desamparadas e as exigências de um movimento de auto-apropriação
da sociedade no seu todo. O carácter cada vez mais selvático das
relações sociais em grande parte do mundo mostra que a velha consciência do
trabalho e da competição continua a descer a níveis cada vez mais baixos.
Apesar de todos os impulsos decorrentes do mal-estar que se vive no
capitalismo, a des-civilização aos solavancos parece ser a forma natural de
andamento da crise.
Precisamente porque as perspectivas são tão negativas, seria
fatal querer adiar a crítica prática do trabalho, enquanto programa abrangente
que diz respeito ao todo social, e limitarmo-nos a construir uma precária
economia de subsistência nas ruínas da sociedade do trabalho. A crítica do
trabalho só terá possibilidade de vingar se atacar de frente a corrente da
des-socialização, em vez de se deixar arrastar por ela. Os adquiridos
civilizacionais, se os há, não podem continuar a ser defendidos com a política
democrática, mas apenas contra ela.
Quem tem por objectivo a apropriação emancipatória e a
transformação de todo o contexto social dificilmente poderia ignorar a
instância que até agora organizou o quadro das respectivas condições gerais. É impossível alguém rebelar-se contra a expropriação das suas
potencialidades sociais sem entrar em confronto com o Estado. Porque o Estado não só administra cerca de metade da riqueza social,
como garante também a subordinação coerciva de todas as potencialidades sociais
ao princípio da valorização do capital. Daí decorre que nem os inimigos do
trabalho podem ignorar o Estado e a política, nem o Estado e a política podem
contar com a sua colaboração. Se o fim do trabalho é o fim da
política, então um movimento político para a superação do trabalho seria uma
contradição nos termos. Os adversários do trabalho
apresentam exigências ao Estado; não constituem, contudo, um partido político,
e nunca formarão um. A finalidade última da política só pode ser a conquista do
aparelho de Estado para dar continuidade à sociedade do trabalho. Daí que os
adversários do trabalho não queiram ocupar os centros de comando do poder,
mas sim desactivá-los. A sua luta não é política, mas sim antipolítica.
O Estado e a política da modernidade estão inseparavelmente
entrelaçados com o sistema coercivo do trabalho; terão, pois, de desaparecer
juntamente com ele. O palavreado sobre um renascimento da política é apenas a
tentativa de reconduzir a crítica do terror económico a uma actividade de relacionamento
positivo com o Estado. Auto-organização e autodeterminação são precisamente o
contrário do Estado e da política. A conquista de espaços livres,
no plano social, económico e cultural, não se efectiva pelos atalhos, pelas
portas de serviço ou pelos becos sem saída da política, mas sim pela via da constituição
de uma contra-sociedade.
Liberdade significa não deixar que se seja triturado pelo
mercado e não deixar que se seja administrado pelo Estado, e em vez disso
organizar autonomamente todo o conjunto das relações sociais, sem a intromissão
de aparelhos alienados. Neste sentido, para os adversários do
trabalho, trata-se de encontrar novas formas de
movimento social e de estabelecer testas de ponte para uma reprodução da
vida que se situe para lá da sociedade do trabalho. Trata-se de combinar
as formas de uma práxis de contra-sociedade com a recusa ofensiva do trabalho.
Os poderes dominantes podem declarar-nos loucos, porque
arriscamos a rotura com o seu sistema coercivo irracional. Não temos nada a perder, a não ser a perspectiva da catástrofe para
onde esses poderes nos conduzem. Temos um mundo a ganhar, para lá das
fronteiras do trabalho.
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