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quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Será possível desvendar uma profunda compreensão dos imensos males sociais que ainda estão por sanar em algumas das causas perdidas?

Las ideas que me tienen poseído no me dejan descansar... Debemos mirar hacia la esperanza y yo sólo la veo en una dirección: en el camino de la Revolución: todo lo demás no importa.... 
William Morris 
O historiador inglês E. P. Thompson em suas inúmeras lições sobre a história desde abajo, advertia ao vasto campo da história social para o fato de que quase sempre somente se recolhe o que triunfa, e no sentido daquelas aspirações que prefiguram desenvolvimentos posteriores.  As causas perdidas, os caminhos mortos e os vencidos são olvidados. Thompson, em sua extrema sensibilidade, compõe uma história em busca dos vestígios da experiência olvidada do humilde tecelão, do artesão utopista e assevera que, embora se possa considerar que seus ideais humanitários fossem pura fantasia e suas conspirações revolucionárias infantis pretensões, nos alerta a todos para o fato inolvidável: eles viveram aqueles tempos de agudos câmbios sociais e suas aspirações ganham validade à luz de sua singular experiência. Aos que caíram vítimas da história, em vida condenados, não devem permanecer nesta condição. Outra vez o historiador alerta para o fato de que não deveríamos ter como único critério de juízo, no exame das ações dos homens do princípio da industrialização, as realidades posteriores, posto que em algumas das causas perdidas dos homens e mulheres do século XIX é possível desvendar uma profunda compreensão dos imensos males sociais que ainda estão por sanar. 

Os comunitaristas owenianos (como outros) foram fecundos em idéias e experimentos prefiguradores de posteriores ensaios na educação das crianças, nas relações entre os sexos, na instrução em geral na moradia e na política social. Idéias que não estiveram circunscritas apenas aos limitados círculos intelectuais; são trabalhadores manuais de ofícios vários – tecelões, alfaiates, tanoeiros, canteiros que se mostraram dispostos a arriscar, ao menos por um tempo, seu meio de vida, para provar na prática estas idéias, hauridas principalmente das prédicas nos acanhados salões das mutualistas e das leituras coletivas do “enxame” de periódicos que traziam o novo vocabulário da esperança e da justiça, gestando, o que terá sido a grande conquista espiritual do período de formação da classe operária: o internacionalismo como campo de ação e a autoconsciência coletiva. 
O povo trabalhador não deveria ser contemplado apenas como  uma imensa multidão de derrotados, posto que em seus experimentos alimentou, com imensa fortaleza de ânimo, a árvore da liberdade. (Thompson 1987) 
A história das idéias socialistas no Brasil é bem mais longa e rica que o registro historiográfico feito sobre elas. Necessário, pois, reconstituir suas múltiplas experiências que vão das manifestações do socialismo romântico e das utopias por volta de 1840, quando Vauthier, Derrion e Mure contribuem para divulgar as idéias de Fourier e se começam a dar os primeiros passos para a criação da Colônia do Saí e Palmital, em São Francisco, Santa Catarina, e vão ganhando cada vez mais importância com a chegada de exilados da Comuna de Paris (1871) e dos anarquistas italianos que criaram a Colônia Cecília (1890), a que se juntaram, no final do século XIX, outros trabalhadores anarquistas espanhóis e portugueses. 
O estudo e análise da ação destes imigrantes e dos brasileiros que a eles se reuniram, principalmente na primeira década do século XX, é condição de possibilidade para apreender a riqueza dos registros históricos firmados através de uma imprensa social combativa que, aliada a outros mecanismos de auto-educação, constrói no Brasil a via de um sindicalismo autônomo e de ação direta que marcaria as lutas sociais e a criação de uma cultura operária anti-capitalista no país. 
A idéia de experimentar novas soluções societárias, que resultaram em muitas comunidades no Novo Mundo e que no Brasil originaram o projeto do Falanstério do Saí e do Palmital e da Colônia Cecília, prolongou-se ainda em outras experiências, menos documentadas, como a da Comunidade Futuro, no Avaí, que por volta de 1910, reuniu naturistas e utópicos austríacos e alemães, e a tentativa malograda do anarquista e esperantista francês Paul Berthelot de criar uma comunidade no interior do Brasil, junto aos índios de Goiás, onde morreu em 1910. 
Ao testar novas formas de associação, produção e relacionamento humano esse socialismo experimental foi deixando claro que a reorganização da sociedade talvez fosse mais complexa e difícil que o otimismo de muitos no século XIX pretendia. Se em algum lugar inóspito longe do Estado e das poderosas instituições econômicas e sociais, os companheiros de utopia não conseguiam fazer vingar seu projeto de uma (pequena) nova sociedade, isso merecia uma análise cuidada. Poucos atentaram a este problema dentro do movimento socialista que começava a ganhar corpo. 
Giovanni Rossi, com seu espírito curioso e metódico, dedicou uma atenção especial ao problema, já que para ele a Colônia Cecília era a concretização desse socialismo experimental que iria testar as idéias de reorganização social. Suas análises valem, em grande medida, para as diversas experiências
comunitárias realizadas na época, mas que poderia aplicar-se às experiências feitas no nosso século.
Rossi reconhece que a raiz dos problemas que inviabilizaram as chamadas comunidades utópicas do século XIX não reside apenas nas formas de organização e produção e na relação entre essas experiências isoladas e a sociedade e a economia envolventes. Embora ele detalhe problemas como a falta de capital, recursos, experiência de trabalho,  impossibilidade de definir pactos de cooperação etc, muitos dos insucessos poderiam ser atribuídos  à condição humana ou, se quisermos usar outras palavras, aos condicionalismos psicológicos e culturais dos participantes dessas experiências. 
Superar as tendências agressivas, egoístas, o poder, o ciúme, ou o espírito de concorrência, num grupo humano é bem mais complexo que a adoção de uma engenharia falansteriana ou de um ideal libertário.
Foi o que mostraram, de forma clara, as comunidades fourieristas, comunistas e anarquistas, deixando como lição que os processos de reorganização da sociedade e a criação de uma nova economia social pressupõem mudanças radicais na cultura, nos comportamentos e nas mentalidades, que, possivelmente, exigem largos prazos que dificilmente são compatíveis com as necessidades urgentes do quotidiano produtivo e afetivo de um grupo humano. 
De forma mais trágica, comprovou-o, no século XX, a macro-experiência do chamado “socialismo real”, deixando claras as dificuldades de uma ampla e profunda reorganização social. Se os utopistas do século XIX resistiram aos seus fracassos e muitos aprenderam com eles, os fracassos do século XX, pela sua dimensão social e dramaticidade humana, resultaram na atual  descrença generalizada na própria viabilidade de uma reorganização profunda  da sociedade moderna e na perda do espírito utópico. 
Após mais de 150 anos de tentativas de socialismo experimental, para usar o termo de Giovanni Rossi, impõe-se àqueles que, social, política e intelectualmente, estão insatisfeitos com a realidade do mundo, retomar a herança da utopia e esperança dos primeiros socialistas. Mas, acima de tudo, sua capacidade de experimentar, sempre reafirmando sem desânimo, após cada aparente fracasso, a idéia de que o homem e a sociedade podem ser diferentes. Radicalmente diferentes. 
Anexo I adelaide.anexoI.htm– Comunidades da utopia social na América Latina do século XIX 
Anexo II – Uma bibliografia para o estudo das comunidades utópicas e os primórdios do socialismo no Brasil
[12] A primeira edição é de 1878 (Milão:Bignami), a segunda de  1881 (Livorno), a terceira traz um prefácio de
Andrea Costa em 1884 (Brescia: Tipografia Sociale Operaia) e a quarta de 1891 (Livorno: Favilinni). 
[13] Nettlau refere-se ao estudo de Horowitz 1975: vol.1, 15-16
(Trecho da obra de Adelaide Gonçalves, "As comunidades utópicas e os primórdios do socialismo no Brasil", E-topia: Revista Electrónica de Estudos sobre a Utopia, n.º 2 (2004). ISSN 1645-958X)


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