Desta vez
não foi preciso esperar junho. Dois acontecimentos de tonalidades quase
opostas, no início de ano futebolístico, tiveram o dom de mostrar ao mundo a
formação estamental brasileira sob o manto da suposta igualdade civil.
Refiro-me à retomada dos irônicos "rolezinhos" em shoppings de São
Paulo e ao macabro vídeo das decapitações no Maranhão.
O sentido
ideológico das manifestações dos jovens da periferia nos centros de compras
paulistanos é difícil de precisar. Como fica claro em entrevista do antropólogo
Alexandre Barbosa Pereira (brasil.elpais.com), elas contêm profunda
ambiguidade. De um lado, ao contestar a falta de áreas de lazer e a
exclusividade de espaços semipúblicos para quem tem dinheiro, trazem demanda
igualitária. Por outro, ao expressar fascínio pelo universo da mercadoria,
ajudam a reproduzir a desigualdade contestada.
Mas, ao
menos numa dimensão, o movimento juvenil em torno dos locais de consumo traz
recado claro e insofismável. As meninas e meninos estão dizendo: "Nós
existimos e queremos ter o direito pleno a participar desta sociedade, seja ela
como for". Convencidos, por bons motivos, de que a vida social gira em
torno da mercadoria, a garotada periférica se organizou para afirmar que não
admite mais ser excluída desse círculo.
Embora
quase impossível, se abstrairmos o que há de monstruoso na ação dos detentos
maranhenses, há também ali um grito de desespero, uma maneira cruel e
sanguinária de dizer que não é possível viver naquela situação excluída por
completo do cânone civilizado. Celas com 13 presos em espaço onde caberiam
apenas quatro. Galinha crua como refeição. Cheiro nauseante de fezes, urina e
comida estragada. Foram tais amostras superficiais do inferno penitenciário que
a Folha colheu em presídio de São Luís análogo ao do horrendo filme.
A
organização dos presidiários em bandos que, na prática, controlam o cotidiano
da prisão é a consequência óbvia de tais condições. Sociedade de massas com um
dos mais altos índices de detentos do planeta, o Brasil gera, quase que de maneira
automática, redes criminosas que, uma vez formadas, funcionam como pequenos
Estados dentro do Estado. O problema é que são Estados tirânicos, onde a lei é
simplesmente a do mais forte.
Tanto os
"rolezinhos" paulistanos quanto as cabeças cortadas de Pedrinhas
estão a lembrar a tarefa que o país da Copa do Mundo ainda tem diante de si:
incluir, integrar, dar acesso universal aos benefícios que já foi capaz de
produzir para uma parte da população. Esvaziar presídios e encher praças vai
exigir de nós bem mais do que terminar os estádios a tempo.
ANDRÉ
SINGER escreve aos sábados nesta coluna.
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/147190-apartheids-no-pais-da-copa.shtml
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