[...] fato
e ficção movem-se um em direção ao outro, apesar de não se confundirem um com o
outro.
[...]
Absolutamente confiante na ideia do contrato social, vê-se como um igual
perante os poderosos, apesar de desconfiar da honestidade daqueles que
representam o poder. Julga-se sujeito da história, uma vez que a República
instituía o princípio da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Pretendendo
participar da construção nacional, bem distante do poder, vive nos subúrbios
cariocas, procurando buscar, a partir dos ideais iluministas da razão, os
verdadeiros traços da nação. Enfim, um homem comum que quer participar da história,
com pequenos feitos. [...]
Este ardor
patriótico, é bom que se destaque, está sempre carregado de uma intenção de
exercício de cidadania, e, em todas as vezes que o major Quaresma pretende
exercer os direitos de cidadão, ele acaba sendo vítima da perseguição e de
estigma pelo poder vigente. [...]
Na
primeira tentativa, Quaresma procura afirmar seu direito de cidadão, enviando
uma carta ao presidente da República, pedindo a adoção da língua tupi-guarani
como língua nacional. Desde o princípio, Quaresma afirma, no plano da
cidadania, a questão dos excluídos da história. Afinal o primeiro massacre
realizado em terras brasileiras foi, justamente, o dos índios. [...] Quaresma,
aliás, um admirador do poeta, procurou com sua carta-pronunciamento resgatar uma
dívida ancestral com relação à população indígena. Tem a esperança de que a
República, com os seus ideais de igualdade e fraternidade, venha a reconhecer a
importância do indígena brasileiro através da adoção da língua tupi-guarani
como língua nacional. A carta-pronunciamento é o exercício de liberdade do
cidadão comum, que sai do anonimato, pretendendo inscrever-se na história. Esse
ato de liberdade terá como resultado o seu recolhimento a um manicômio, uma vez
que o poder republicano o tomará como um louco. Quaresma não estará sozinho
nesta galeria de loucos da República. Antônio Conselheiro, de Canudos, João
Maria, do Contestado, e tantos outros irão criar uma vasta literatura sobre a
loucura de sonhar com outra ordem no mundo. Entretanto diferentemente de outros
personagens que abalaram a República em seus primórdios, Quaresma representa o
homem comum da cidade, sua visão de mundo é urbana e ele está, durante todo o
tempo, às voltas com a questão da cidadania. Sua obsessão racionalista é
absolutamente enlouquecedora.
[..]
Apesar de viver num mundo suburbano, Quaresma é um homem letrado. Está longe do
convívio das elites e se ressente disso, pois a república das letras não lhe
concede espaço como cidadão.
Quaresma é
um Quixote bastante letrado dos tempos modernos. Tendo, ao seu lado, o amigo
Sancho Pança, isto é, o também letrado
Ricardo Coração dos Outros, ataca as fortalezas da política republicana,
do mundo das letras e da cultura oficial. Não vive à margem da sociedade,
participa dela e, com seu nacionalismo ingênuo, pretende igualar-se aos
poderosos. A narrativa do romance de Lima Barreto é exemplar com modelo
literário, capaz de construir o cidadão comum como sujeito histórico. Seus atos
de liberdade, apesar de serem vistos como desviantes
e loucos, chamam a atenção do poder. A
carta-pronunciamento incomodaas autoridades e também as pessoas que se
espantavam com as suas excêntricas aulas de vilão (aliás, o poder público e a
sociedade civil no Brasil sempre estiveram de mãos dadas no que tange ao autoritarismo).
Na partilha paradigmática do normal e do anormal, Quaresma é facilmente
catalogável. Por sinal, quantos outros loucos anônimos não perambulavam pelas
ruas das cidades no início da República? A galeria é extensa e podemos
identificar, inclusive, personagens de vários perfis, por exemplo, os
anarquistas, esses estrangeiros que começava a causar preocupação das
autoridades, por incitarem os operários às lutas pelos seus direitos. Quem
diria que, alguns anos mais tarde, os modernistas de São Paulo, estes filhos
rebeldes das elites paulistas, iriam proclamar, sem constrangimentos, a palavra
de ordem tupi or not tupi, muito semelhante àquela que custou a Quaresma
o recolhimento ao manicômio, quando ele propôs a adoção do tupi-guarani como
língua nacional.
[...]
O discurso
psiquiátrico serviu de base para a definição dos perfis desses personagens
anônimos que ousaram subverter a ordem estabelecida. Sobre eles, caiu o manto
da loucura, e Quaresma não foi o único personagem anônimo da história que
acabou em um manicômio. Em um período mais recente, o discurso psiquiátrico
serviu para provar a insanidade mental de um camponês que lutou pelo direito à
terra, na década de 1970, durante a ditadura militar. Antonio Galdino, um homem
do campo, profundamente religioso, produziu uma narrativa trágico-mítica do fim
do mundo, quando se viu diante do perigo de perder a sua terra para empresas
interessadas na construção de uma hidroelétrica no oeste do estado de São
Paulo. Sua narrativa messiânica e suas prédicas atraíram centenas de deserdados
da terra, e a ditadura militar interpretou o seu discurso como ameaça à ordem e
relacionou-o com o discurso político das esquerdas brasileiras adeptas da
guerrilha rural. No inquérito policial, a narrativa de Galdino, com visões do
fim do mundo, acompanhada de tragédias e desgraças, assim como aquela de
Quaresma, foi usada pela justiça militar como prova de sua insanidade.
[...]
Novamente,
Quaresma insiste em tornar-se um cidadão útil e responsável. Agora, inclusive,
vivendo no sítio Sossego, tecendo a trama de um trabalho cotidiano para
construir a nacionalidade. O cidadão comum, imbuído dos ideais pátrios, seria,
dessa vez, capaz de vencer as dificuldades e ajudar a construir a verdadeira
nação. [...] Quaresma em sua luta por um novo mundo agrário. [...] Os homens
comuns não fazem história a partir de seu cotidiano, apenas a transgressão dá a
eles visibilidade. É por essa razão que, ainda hoje, podemos conhecer melhor a
história das classes subalternas vasculhando os arquivos policiais. Neles, os
personagens anônimos ganham destaque e tornam-se sujeitos históricos. O homem
comum, na falta de uma narrativa literária que o engrandeça, só entra na
história a partir dos registros policiais.
[...]
Talvez o
autor tenha deixado para esse personagem a vivência da tragédia dos homens
comuns diante dos massacres do poder. Em nenhuma outra obra de Lima Barreto
aparece a tragédia do homem comum diante de um poder despótico. Quaresma
imortalizou-se na literatura por representar uma infinidade de vítimas anônimas
e por desmascarar os crimes do poder republicano.
[...]
As
notícias do massacre dos marinheiros da Revolta da Chibata chegaram, com
certeza, aos ouvidos de Lima Barreto antes dele finalizar o Policarpo Quaresma.
Conta-se que, entre os dias 22 e 25 de novembro de 1910, mais de dois mil
marinheiros amotinados mantiveram a cidade do Rio de Janeiro sob um clima de
medo, ao assaltarem inúmeros navios da marinha brasileira, reclamando dos
maus-tratos físicos e das péssimas condições de trabalho nos seus serviços.
[...] Esses marinheiros liderados por João Cândido, que ficou conhecido como o ‘almirante
negro’, acabaram fazendo um acordo de deposição das armas e o governo federal
prometeu-lhes, em troca, uma anistia política. Algumas semanas após o término
da sublevação, mais de seiscentos marinheiros foram presos, sob o pretexto de
reorganizarem o movimento, e, às vésperas do Natal, dezesseis deles morreram em
consequência de queimaduras causadas pela cal virgem que foi jogada sobre eles.
Após essa chacina, no início do ano de 1911, 105 marinheiros foram mandados
para os seringais da Amazônia a bordo do cargueiro Satélite, sendo que nove
dentre eles foram fuzilados e jogados ao mar e o restante desapareceu e morreu
na Amazônia. [...] Essas narrativas de massacre
tornavam-se comuns no início da República e representavam o sinal do
cidadão comum na cena da história.
[...]
Alguns
anos após o relato de Quaresma, isto é, em junho de 1917, um grande movimento
grevista, liderado por militantes anarquistas, ocorre em São Paulo. Durante uma
semana, a cidade de São Paulo ficou praticamente paralisada pro uma greve que
se espraiou, rapidamente, após a morte de um operário pelas forças policiais.
Após uma inusitada repressão policial, a greve termina e inúmeros militantes
anarquistas são sumariamente enquadrados na lei de expulsão de estrangeiros do
País e, pioneiramente, acusados de delito de opinião. Pela primeira vez na República,
cidadãos eram expulsos do País por se expressarem na linguagem política do
anarquismo. Pela primeira vez, a constituição liberal brasileira condenava
cidadãos comuns por delito de opinião. Os processos de expulsão constituem-se
em verdadeiras farsas jurídicas e inúmeros anarquistas foram embarcados no
navio Curvelo, rumo ao estrangeiro e à Amazônia. Na ocasião, inúmeros jornais
de São Paulo se utilizaram do relato do massacre da Revolta da Chibata para
despertar a opinião pública para os riscos que corriam os anarquistas
deportados no navio Curvelo. Os relatos do massacre da Chibata chegaram a ser
usados, inclusive, pelo advogado de defesa dos anarquistas e também pelo líder da
Revolta da Chibata, João Cândido. Ele chegou a comparar a situação dos presos
políticos da greve de 1917 com a dos marinheiros mortos em 1910. A narrativa de
massacres, em seus mais variados modelos – romance, panfleto, notícia de jornal
–, acabou por constituir-se num elemento importante de denúncia da violação da
cidadania no Brasil durante as primeiras décadas da República.
Dentre
essas narrativas, algumas delas ainda não foram esclarecidas devidamente. [...]
A mais impressionante foi publicada no jornal Fanfulla (1917), de língua italiana, um jornal não operário, com um
título muito sugestivo e, ao mesmo tempo, assustador: [...] Nesse jornal,
existe um relato de que mais de duzentos operários teriam sido eliminados e
desaparecidos pela ação policial durante a greve de 1917 e que seus corpos teriam sido enterrados em 210 fossas da
quadra 139 do cemitério do Araxá.
[...]
Representam
a indignação do cidadãos comuns, dos personagens anônimos que vivem à margem da
história. Mostram os crimes monstruosos que são cometidos em nome da lei e da
ordem. [...] também a opinião pública de São Paulo, que saiu em defesa dos
anarquistas, utilizou-se dos relatos sobre a deportação dos marinheiros para
defender os prisioneiros que tinham sido embarcados rumo ao estrangeiro no
navio Curvelo.
[...]
Os homens
comuns e as personagens anônimas tiveram um lugar na história a partir desses
autores.
[...] nas
narrativas de massacres um acontecimento remete ao outro, não devemos esquecer
que a chacina de Eldorado dos Carajás aconteceu, praticamente, no mesmo local
onde, na década de 1970, ocorreu o massacre dos guerrilheiros do Araguaia.
[...] a República no Brasil ainda não terminou de enterrar as suas vítimas.
Mais uma razão para os historiadores
darem crédito às narrativas de massacres, porque elas podem ser sinais
de acontecimentos obscuros e pouco esclarecidos, ou de tentativas de cidadãos
comuns de tornarem-se agentes da história.
Como não
deixar de considerar O triste fim de
Policarpo Quaresma como um dos primeiros relatos de desaparecidos da
República?
(DECA,
Edgar Salvadori de. Quaresma: Um relato de massacre republicano entre a ficção
e a História. In: Pelas margens. Outros caminhos da História e da Literatura.
São Paulo: Campinas, Ed. Unicamp, 2000. p. 137-157)
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