11 de janeiro de 2012
As
divisões históricas entre as esquerdas foram justificadas por uma imponente
construção ideológica mas, na verdade, a sua sustentabilidade prática¿ou seja,
a credibilidade das propostas políticas que lhes permitiram colher
adeptos¿assentou em três fatores: o colonialismo, que permitiu a deslocação da
acumulação primitiva de capital (por despossessão violenta, com incontável
sacrifício humano, muitas vezes ilegal mas sempre impune) para fora dos países
capitalistas centrais onde se travavam as lutas sociais consideradas decisivas;
a emergência de capitalismos nacionais com características tão diferenciadas
(capitalismo de estado, corporativo, liberal, social-democrático) que davam
credibilidade à ideia de que haveria várias alternativas para superar o
capitalismo; e, finalmente, as transformações que as lutas socias foram
operando na democracia liberal, permitindo alguma redistribuição social e
separando, até certo ponto, o mercado das mercadorias (dos valores que têm
preço e se compram e se vendem) do mercado das convicções (das opções e dos
valores políticos que, não tendo preço, não se compram nem se vendem). Se para
algumas esquerdas tal separação era um fato novo, para outras, era um ludíbrio
perigoso.
Os últimos
anos alteraram tão profundamente qualquer destes fatores que nada será como
dantes para as esquerdas tal como as conhecemos. No que respeita ao
colonialismo as mudanças radicais são de dois tipos. Por um lado, a acumulação
de capital por despossessão violenta voltou às ex-metrópoles (furtos de
salários e pensões; transferências ilegais de fundos colectivos para resgatar
bancos privados; impunidade total do gangsterismo financeiro) pelo que uma luta
de tipo anti-colonial terá de ser agora travada também nas metrópoles, uma luta
que, como sabemos, nunca se pautou pelas cortesias parlamentares. Por outro
lado, apesar de o neocolonialismo (a continuação de relações de tipo colonial
entre as ex-colónias e as ex-metrópoles ou seus substitutos, caso dos EUA) ter
permitido que a acumulação por despossessão no mundo ex-colonial tenha
prosseguido até hoje, parte deste está a assumir um novo protagonismo (India,
Brasil, Africa do Sul, e o caso especial da China, humilhada pelo imperialismo
ocidental durante o século XIX) e a tal ponto que não sabemos se haverá no
futuro novas metrópoles e, por implicação, novas colónias.
Quanto aos
capitalismos nacionais, o seu fim parece traçado pela máquina trituradora do
neoliberalismo. É certo que na América Latina e na China parecem emergir novas
versões de dominação capitalista mas intrigantemente todas elas se prevalecem
das oportunidades que o neoliberalismo lhes confere. Ora, 2011 provou que a
esquerda e o neoliberalismo são incompatíveis. Basta ver como as cotações das
bolsas sobem na exata medida em que aumenta desigualdade social e se destrói a
proteção social. Quanto tempo levarão as esquerdas a tirar as consequências?
Finalmente,
a democracia liberal agoniza sob o peso dos poderes fáticos (Máfias, Maçonaria,
Opus Dei, transnacionais, FMI, Banco Mundial) e da impunidade da corrupção, do
abuso do poder e do tráfico de influências. O resultado é a fusão crescente
entre o mercado político das ideias e o mercado econômico dos interesses. Está
tudo à venda e só não se vende mais porque não há quem compre. Nos últimos
cinquenta anos as esquerdas (todas elas) deram uma contribuição fundamental
para que a democracia liberal tivesse alguma credibilidade junto das classes
populares e os conflitos sociais pudessem ser resolvidos em paz. Sendo certo
que a direita só se interessa pela democracia na medida em que esta serve os
seus interesses, as esquerdas são hoje a grande garantia do resgate da
democracia. Estarão à altura da tarefa? Terão a coragem de refundar a
democracia para além do liberalismo? Uma democracia robusta contra a
antidemocracia, que combine a democracia representativa com a democracia
participativa e a democracia direta? Uma democracia anticapitalista ante um
capitalismo cada vez mais antidemocrático?
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/Quarta-carta-as-esquerdas/19495
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