Um
amigo enviou-me uma sentença sobre um caso bastante interessante, que envolve
questões de direito de família, registro público, bioética e direito
constitucional. É uma situação peculiar, por várias razões. Em primeiro lugar,
é um caso de dupla maternidade, o que,
por si só, já seria intrigante. Porém, para tornar o caso ainda mais curioso,
as duas mães participaram diretamente do processo de gestação da criança.
No
caso, duas mulheres que viviam em união
homoafetiva, posteriormente convertida em casamento, resolveram ter um filho.
Para isso, recorreram à técnica de fertilização “in vitro” em que uma das mães
forneceu os óvulos (fecundados com o sêmem de um doador anônimo) que,
posteriormente, foi implantado no útero da outra mãe.
O debate jurídico girou em torno da
possibilidade de registrar as duas mães como genitoras da criança, o que foi
deferido pela juíza da 2ª Vara de Registros Públicos de Fortaleza.
A
sentença segue abaixo, com a exclusão dos nomes para preservar a privacidade
dos envolvidos.
SENTENÇA
Vistos,
etc.
FULANA
DA SILVA e SICRANA DA SILVA, através da Defensoria Pública Estadual, ajuizaram
“Ação Declaratória de Filiação para Averbação em Certidão de Nascimento”,
pleiteando que seja acrescentado, no registro de nascimento do menor BELTRANO
DA SILVA, o nome da outra genitora (Fulana da Silva) e dos avós maternos,
expedindo-se, para tanto, mandado ao oficial do Cartório para as devidas
anotações.
Alegam
as requerentes que convivem maritalmente (união estável) há cerca de seis (6)
anos e, recentemente (05 de abril de 2013), contraíram matrimônio (certidão de
casamento anexa), com o claro objetivo de constituir uma família. Nesse passo,
buscando realizar o sonho de se tornarem mães, recorreram à técnica da
fertilização “in vitro”, no Centro de Medicina Reprodutiva – BIOS, na qual a
Sra. Fulana da Silva forneceu os óvulos, que foram fecundados por sêmen de um
doador anônimo, posteriormente, implantados no útero da Sra. Sicrana,
tornando-se gestante e genitora.
Afirmam
que, no dia 13 de abril de 2013, a Sra. Sicrana deu à luz ao menor Beltrano da
Silva (conforme Declaração de Nascido Vivo) e, sendo manifesta a urgência na feitura
do assento de nascimento, o infante foi registrado apenas com o nome da
parturiente, na condição de mãe, remanescendo em aberto a verdade biológica no
tocante à filiação da criança.
Prosseguem
afirmando que a verdade biológica do menor Beltrano da Silva está devidamente
esclarecida através do procedimento da fertilização “in vitro”, haja vista que
a Sra. Sicrana recebeu os óvulos da Sra. Fulana (fecundados por sêmen de doador
anônimo), dando a luz a uma criança, cuja herança genética é da sua companheira
(cônjuge), tendo o direito, portanto, a figurar também no assento de nascimento
do menor, na condição de mãe.
Às
fls. 35/36, parecer da representante do Ministério Público, opinando pela incompetência absoluta
deste juízo, haja vista que o “reconhecimento judicial de dupla maternidade”
seria matéria relativa a uma das varas
de família, a quem caberia solucionar as situações de fato, principalmente
quando se trata de assunto ainda não legislado, nada obstante já enfrentado
pela doutrina e pela jurisprudência.
Inicialmente,
cumpre esclarecer que, no caso vertente, não se controverte acerca da
titularidade materna do menor Beltrano da Silva. Não há conflito de interesses entre as promoventes acerca da
maternidade, estando ambas de acordo com o pleito formulado na inicial.
Trata-se, portanto, de ação de jurisdição voluntária, no qual inexiste dúvida
factual que demande qualquer investigação. Sendo assim, reconhecendo interesse estritamente registrário,
consistente na necessidade de anotar no Livro ‘A’, do Registro Civil de
Nascimento de Pessoas Naturais, a realidade biológica da criança, no tocante à
filiação materna, firmo a competência desse juízo para processar e julgar o
presente feito.
No
mérito, forçoso convir que o pleito comporta acolhimento, haja vista que,
evidenciado o vínculo de filiação (herança genética) e presente a “entidade
familiar” (união estável / casamento) entre pessoas do mesmo sexo, como sucede
na hipótese dos autos, estará assegurada a realidade registrária, tendo a mãe biológica o direito de integrar
o assento de nascimento do menor, na condição de genitora.
A existência de relações públicas e estáveis
entre pessoas do mesmo sexo é uma realidade da qual o direito não escapa de
lidar, cabendo ao Poder Judiciário o enfrentamento da questão, com profundidade
e sem preconceitos.
No
caso, o ponto controvertido cinge-se a
possibilidade de anotação, no registro de nascimento de menor, de dupla
maternidade (duas mães), invocando os direitos conferidos à família homoafetiva
(união estável / casamento – entre duas pessoas do sexo feminino – parturiente
e mãe biológica), devendo o julgador está atento a um conjunto de direitos
constitucionalmente reconhecidos: às autoras, o direito constitucional à
família; à criança, o direito fundamental à identidade e à ampla proteção e
segurança.
O
Poder Judiciário tem sido sensível às mudanças sociais, tendo o Supremo
Tribunal Federal, recentemente, explicitado o tratamento constitucional da
instituição da família, ressaltando pouco importar “se formal ou informalmente
constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares
homoafetivos”, proclamando, portanto, a isonomia entre casais heteroafetivos e
homoafetivos que, na conformidade do entendimento da Suprema Corte, “somente
ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação
de uma autonomizada família” (ADI 4277/DF, DJ 14/10/2011, Relator Ministro
Ayres Brito).
A
referida Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4277/DF (encampando os
fundamentos da ADPF 132/RJ, Relator Ministro Ayres Brito) foi julgada
procedente, com eficácia “erga omnes” e efeito vinculante, para “dar ao artigo
1.723, do Código Civil interpretação conforme à Constituição, para dele excluir
qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e
duradoura entre pessoas do mesmo sexo como ‘entidade familiar’, entendida esta
como sinônimo perfeito de ‘família’”.
Assim,
o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, assegurando aos
casais do mesmo sexo os mesmos direitos e deveres dos pares heterossexuais, já
restou decidido pelo Supremo Tribunal Federal e a conversão da união
homoafetiva estável em casamento (como no caso dos autos) já foi reconhecida no
âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará.
A
doutrina, por sua vez, também aponta mudanças na concepção de família, cuja
importância institucional cedeu lugar à idéia de ambiente próprio para o
desenvolvimento e a expansão da personalidade de seus membros, ressaltando-se a
relevância do afeto na construção das relações (FACHIN, Rosana Amara Girardi.
Em busca da família no novo milênio, Renovar, p. 66). Deixou-se de lado a
proteção da família como um fim em si mesma, encarando-a como um meio de
permitir, a cada um de seus integrantes, sua realização como pessoa, em
ambiente de comunhão, suporte mútuo e afetividade (SARMENTO, Daniel. Casamento
e união estável entre pessoas do mesmo sexo: perspectivas constitucionais,
Lumen Juris, p. 641)
O
Estado brasileiro tem o dever de proteger a criança, assegurando-lhe o direito
fundamental à identidade e à segurança. Não pode, portanto, restringir a
anotação registral, quando evidenciado o vínculo de filiação ao casal
homoafetivo, realidade encontrada na sociedade atual, desde que,
comprovadamente, como no caso dos autos, possua convivência familiar estável
(união estável convertida em casamento).
No
mesmo sentido, já decidiu o MM. Juiz de Direito da 2ª. Vara de Registros
Públicos de São Paulo, Márcio Martins Bonilha Filho, acrescentando: “noto,
ainda, que independentemente do reconhecimento judicial da dupla maternidade
pretendida, a criança será criada pelas duas requerentes. As duas serão suas
mães de fato e, quando aprender a falar, certamente chamará as duas de mãe. A
dupla maternidade, portanto, ocorrerá de qualquer forma no mundo fático”. E, em
arremate, consignou: “O juiz de nosso século não é um mero leitor da lei e não
deve temer novos direitos. Haverá sempre novos direitos e também haverá outros
séculos. Deve estar atento à realidade social e, cotejando os fatos com o
ordenamento jurídico, concluir pela solução mais adequada” [sentença publicada
pela Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo,
disponível online].
Dessa
forma, a duplicidade em relação à
maternidade, nos termos pretendidos pelas autoras, não constitui óbice ao
registro civil de nascimento da criança, até porque se encontra consolidado, na
doutrina e na jurisprudência, o entendimento segundo o qual é plenamente
possível o procedimento de adoção por pessoas (casal) com orientação
homoafetiva.
Em
síntese, como ressaltado anteriormente, na sociedade atual, o formato das
famílias se alterou por demais e os filhos de casais homoafetivos fazem parte
dessa evolução. Assim, cada família e suas crianças se ajustarão ao mundo de
acordo com suas experiências e suas próprias características. Não existe
receita para convivência familiar de forma harmônica e saudável.
Diante
do exposto, julgo procedente o pedido, determinando a averbação, no assento de
nascimento de Beltrano da Silva, da maternidade de Fulana da Silva, ordenando,
outrossim, a inserção no referido assento dos outros avós maternos. Após o
trânsito em julgado, expeça-se o competente mandado.
Cumpridas
as providências de estilo e nada mais sendo requerido, arquivem-se os autos com
baixa na distribuição.
Sem
custas.
P.R.I.
Fortaleza
– CE, 10 de fevereiro de 2014.
SÍLVIA
SOARES DE SÁ NÓBREGA
Juíza
de Direito da 2ª . Vara dos Registros Públicos
Fonte:
http://direitosfundamentais.net/2014/03/15/dupla-maternidade-biologica-e-possivel/
Nenhum comentário:
Postar um comentário