Na
semana passada, tive a oportunidade de retornar, pela segunda vez, ao Serviluz,
que é uma das comunidades mais pobres de Fortaleza. A visita foi parte do Curso de Formação dos Novos Juízes Federais
e contou também com a participação de vários movimentos sociais. Foi uma
experiência bastante rica, pois pudemos conferir de perto uma situação de
carência inimaginável para os dias atuais.
Curiosamente, o Serviluz está
localizado numa região estratégica, já que une as duas principais praias de
Fortaleza: a Beira-mar e a Praia do Futuro. Isso faz com que diversos setores
cobicem aquela área.
Há muitos projetos urbanísticos, turísticos e imobiliários envolvendo o
Serviluz, quase todos prevendo a remoção em massa de vários moradores. A propósito, recentemente, houve uma
desocupação forçada na Comunidade Alto da Paz, com muita violência.
Confira: https://www.youtube.com/watch?v=oEfP-uL0Jfg
Conversando com os moradores, nota-se
que, apesar da miséria, eles gostam do Serviluz e pretendem continuar lá.
Vários possuem vínculos históricos e afetivos com aquela região, já que a
propriedade vem sendo transmitida de geração para geração. Em outras palavras, há raízes que ligam os moradores às suas
casas.
Para o poder público, a remoção
forçada, em massa, acaba sendo uma medida conveniente. O instituto da
desapropriação por interesse social tem sido, com alguma frequência, o
instrumento utilizado para expropriar os moradores em nome do desenvolvimento
turístico. Do ponto de vista econômico, o custo da
desapropriação não é alto, pois muitas propriedades não são regularizadas, e as
benfeitorias costumam ser precárias. Assim, considerando a valorização
imobiliária que ocorrerá após a desocupação, sai barato expulsar os atuais
moradores, pagando-lhes um valor simbólico apenas para cumprir a exigência
constitucional de prévia indenização.
Foi
diante desse quadro que comecei a pensar
em uma proposta de solução que fizesse justiça aos moradores carentes. É uma tese ainda em amadurecimento, mas
totalmente compatível com o sistema constitucional brasileiro. Em síntese, é
uma proposta visando embutir na justa indenização o valor moral da propriedade.
Logo abaixo, desenvolvo mais detalhadamente a referida tese.
O objetivo dessa tese não é meramente
garantir uma indenização maior para os moradores, mas fazer com que, no cálculo
do custo-benefício, a desapropriação não seja a primeira opção do poder público.
Assim, a remoção forçada seria apenas a
última alternativa e ainda assim bastante custosa. Soluções negociadas, como a realocação dos moradores em moradias
próximas e melhor estruturadas, seriam preferenciais em relação à cômoda
remoção/desapropriação.
Outro
objetivo dessa proposta é fazer com que
as pessoas que mais sofrem os impactos negativos dos projetos urbanísticos,
isto é, os moradores atingidos pela remoção forçada, sejam compensados
condignamente pelos danos sofridos. Não é justo que haja uma enorme valorização
imobiliária decorrente da desocupação forçada, e os moradores expulsos não
recebam qualquer benefício por essa valorização.
Enfim,
como já afirmei, é uma tese em desenvolvimento. Não entrei em detalhes de cálculo do valor moral da propriedade, nem
levei em conta o oportunismo de alguns moradores que poderão forjar um suposto
vínculo afetivo com a comunidade apenas para lucrar. Tais preocupações são
relevantes, mas já compõem um segundo passo no debate. Do mesmo modo, não tratei do dano moral decorrente da
violações de direitos no curso da remoção em si mesma. É óbvio que os desrespeitos aos direitos dos moradores,
no cumprimento da ordem de remoção, também são passíveis de indenização, sem
prejuízo da responsabilização civil, penal e administrativa daqueles que
participaram, direta ou indiretamente, da violação de direitos.
Eis
o artigo onde defendo a inclusão do valor moral da propriedade no cálculo da
justa indenização:
Dano Moral por Desocupação Forçada: uma
análise à luz do direito fundamental de moradia, de propriedade e de
personalidade
Eventos
como a Copa de Mundo exigem a realização de inúmeras obras públicas de grande
impacto social. Alguns desses impactos
são positivos, gerando progresso para a sociedade, como a melhoria do
transporte público, o desenvolvimento da malha viária, dos portos e aeroportos
ou a urbanização da cidade como um todo. Porém, essas obras também geram muitos
impactos negativos, que podem afetar imensamente uma parcela população,
geralmente, a mais vulnerável. Entre esses impactos negativos, pode-se citar a
necessidade de desocupação forçada de comunidades inteiras para que a
infra-estrutura necessária seja implementada. Resta saber como minorar o dano
causado a essas pessoas. No presente texto, defenderei a existência de um valor moral da propriedade, ou seja, de
um valor que deve ser computado no justo preço da desapropriação como medida
compensatória aos indivíduos que sofreram uma desocupação forçada.
A Constituição exige que a expropriação
forçada de imóveis seja precedida de prévia e justa indenização em dinheiro.
Essa indenização refere-se, obviamente, ao valor de mercado do imóvel. Há,
portanto, uma expressa obrigação
constitucional de recomposição dos prejuízos materiais sofridos pelo indivíduo
que teve um imóvel desapropriado (artigo 5º, inc. XXIV).
Tal
indenização é suficiente? O sofrimento
causado pela quebra dos vínculos afetivos com aquela comunidade também não
merece reparação? A raiz que um morador cria com a sua casa durante décadas de
sua vida não deve ser levada em consideração no cálculo do valor da desapropriação?
Moradias que estão na memória histórica de uma família, passando de geração
para geração não possuem um valor que vai além do cálculo de mercado? É
possível reconhecer um direito à indenização pelo dano moral causado pela
desocupação forçada?
À
luz da Constituição brasileira, é
totalmente razoável pensar na condenação do estado pelos danos morais causados
por uma desocupação forçada, ainda que legítima e precedida do devido processo
de desapropriação. O dano moral,
aqui no Brasil, tem status constitucional (artigo 5º, inc. V), não sendo
legítimo afastá-lo nem mesmo por meio de lei ordinária (STF, RE 396386, rel.
Min. Carlos Velloso, j. 29/06/2004). A responsabilidade
civil do estado, de índole objetiva, também está prevista na Constituição
(artigo 37, §6º), e abrange até mesmo os atos lícitos, praticados regularmente
no interesse da coletividade (STF, RE 113587, rel. Carlos Velloso, j.
18/02/1992). Assim, qualquer
violação a um aspecto moral da personalidade merece indenização, inclusive
quando praticada pelo poder público. Já existe jurisprudência consolidada
no sentido de que a propriedade também
pode ter um valor moral, como o precedente de uma ação de responsabilidade
civil contra um banco que permitiu que jóias de família, entregues como garantia de um contrato de
penhor, fossem furtadas. Naquele precedente, a instituição financeira foi condenada a pagar uma indenização superior
ao valor de mercado das jóias, justamente por se reconhecer que havia ali um
dano que ultrapassa o aspecto meramente econômico (STJ, REsp 1133111/PR,
julgado em 06/10/2009). O mesmo pode ser dito em relação ao valor moral de um
imóvel.
Vários organismos internacionais já
tiveram a oportunidade de reconhecer que a desocupação forçada é potencialmente
violadora de uma série de direitos e pode gerar imensos prejuízos ao ser
humano, razão pela qual qualquer medida de desocupação deve ser precedida de
uma série de cautelas, especialmente a plena compensação econômica pelos
prejuízos causados. O
mundialmente famoso caso Grootboom,
julgado pela Corte Constitucional da África do Sul, talvez seja o grande
leading case nessa matéria e mereceria ser lido por todo jurista. Ali ficou decidido que o direito à moradia não
é um mero apelo moral vazio de sentido. É uma norma cogente, de observância obrigatória, cujo desrespeito gera
conseqüências jurídicas concretas, inclusive a responsabilidade do estado.
Há,
também, outro aspecto relevante a ser assinalado. O que se nota, em geral, é que o poder público, no afã de
tornar a cidade esteticamente apresentável para os visitantes, escolhe
construir as obras públicas exatamente naqueles locais em que existem favelas
nas vias de passagem dos turistas. Essa estratégia, afora o claro intuito de
“higienização social”, também leva em conta, certamente, o custo daquelas
moradias populares, cujas benfeitorias, por serem simples, são mais baratas, e
o terreno nem sempre passível de indenização, já que as ocupações costumam ser
irregulares. Isso sem falar que a população mais pobre tem poucas armas para lutar
contra o estado, ficando numa situação de extrema vulnerabilidade, tendo que
aceitar, por falta de opção, o valor de avaliação oficial, quase sempre menor
do que o valor real do imóvel.
Por
detrás de todo esse sistema de
desocupações forçadas de favelas, há o interesse econômico do mercado
imobiliário, que lucra com a valorização dos terrenos próximos à área
desocupada. Aliás, algumas vezes, a própria área desocupada transforma-se
empreendimentos privados, com o aval do estado, que funciona como um verdadeiro
instrumento do poder econômico. Então, não
se deve pensar que a condenação do poder público pelas desocupações forçadas é
uma síndrome do “princípio do coitadinho”, que costuma influenciar vários
juristas brasileiros. Trata-se, na verdade, de uma compensação real por um
sofrimento causado em nome do enriquecimento de vários membros da sociedade.
Obviamente,
é preciso ser cauteloso nesta questão,
até porque, a depender do entendimento adotado, o custo das obras públicas
elevar-se-á a tal ponto que se inviabilizará. O dano moral aqui mencionado não é o mero dissabor de ter um imóvel
desapropriado. É aquele que destrói os laços afetivos com a comunidade. É a
situação, por exemplo, de alguém cuja família vive em uma dada comunidade há
várias gerações e que terá que morar em outro local em razão das obras
públicas. O que tenho em mente, portanto, ao pensar em dano moral por desocupação forçada, são situações peculiares, ainda que
comuns, envolvendo a quebra de um vínculo comunitário.
É difícil pensar no quantum dessa
indenização. Isso dependerá de uma série de fatores particulares: o tempo em
que a pessoa morava naquela casa, a força de seus laços com a comunidade, a sua
situação após a desocupação forçada e assim por diante. O que me parece inadmissível é não levar isso em
conta na hora de se calcular os danos sofridos por aquela pessoa que teve
abandonar seu lar em nome do interesse público.
Por
George Marmelstein Lima
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