15 de dezembro 2011
Quando
estão no poder, as esquerdas não têm tempo para refletir sobre as
transformações que ocorrem nas sociedades e quando o fazem é sempre por reação
a qualquer acontecimento que perturbe o exercício do poder. A resposta é sempre
defensiva. Quando não estão no poder, dividem-se internamente para definir quem
vai ser o líder nas próximas eleições, e as reflexões e análises ficam vinculadas
a esse objetivo.
Esta
indisponibilidade para reflexão, se foi sempre perniciosa, é agora suicida. Por
duas razões. A direita tem à sua disposição todos os intelectuais orgânicos do
capital financeiro, das associações empresariais, das instituições
multilaterais, dos think tanks, dos lobbistas, os quais lhe fornecem
diariamente dados e interpretações que não são sempre faltos de rigor e sempre
interpretam a realidade de modo a levar a água ao seu moinho. Pelo contrário,
as esquerdas estão desprovidas de instrumentos de reflexão abertos aos não
militantes e, internamente, a reflexão segue a linha estéril das facções.
Circula
hoje no mundo uma imensidão de informações e análises que poderiam ter uma
importância decisiva para repensar e refundar as esquerdas depois do duplo
colapso da social-democracia e do socialismo real. O desequílibrio entre as
esquerdas e a direita no que respeita ao conhecimento estratégico do mundo é
hoje maior que nunca.
A segunda
razão é que as novas mobilizações e militâncias políticas por causas
historicamente pertencentes às esquerdas estão sendo feitas sem qualquer
referência a elas (salvo talvez à tradição anarquista) e muitas vezes em
oposição a elas. Isto não pode deixar de suscitar uma profunda reflexão. Essa
reflexão está sendo feita? Tenho razões para crer que não e a prova está nas
tentativas de cooptar, ensinar, minimizar, ignorar a nova militância.
Proponho
algumas linhas de reflexão. A primeira diz respeito à polarização social que
está a emergir das enormes desigualdades sociais. Vivemos um tempo que tem
algumas semelhanças com o das revoluções democráticas que avassalaram a Europa
em 1848. A polarização social era enorme porque o operariado (então uma classe
jovem) dependia do trabalho para sobreviver mas (ao contrário dos pais e avós)
o trabalho não dependia dele, dependia de quem o dava ou retirava a seu
belprazer, o patrão; se trabalhasse, os salários eram tão baixos e a jornada
tão longa que a saúde perigava e a família vivia sempre à beira da fome; se
fosse despedido, não tinha qualquer suporte exceto o de alguma economia
solidária ou do recurso ao crime. Não admira que, nessas revoluções, as duas
bandeiras de luta tenham sido o direito ao trabalho e o direito a uma jornada
de trabalho mais curta. 150 anos depois, a situação não é totalmente a mesma
mas as bandeiras continuam a ser atuais.
E talvez o
sejam hoje mais do que o eram há 30 anos. As revoluções foram sangrentas e
falharam, mas os próprios governos conservadores que se seguiram tiveram de
fazer concessões para que a questão social não descambasse em catástrofe. A que
distância estamos nós da catástrofe? Por enquanto, a mobilização contra a
escandalosa desigualdade social (semelhante à de 1848) é pacífica e tem um
forte pendor moralista denunciador.
Não mete
medo ao sistema financeiro-democrático. Quem pode garantir que assim continue?
A direita está preparada para a resposta repressiva a qualquer alteração que se
torne ameaçadora. Quais são os planos das esquerdas? Vão voltar a dividir-se
como no passado, umas tomando a posição da repressão e outras, a da luta contra
a repressão?
A segunda
linha de reflexão tem igualmente muito a ver com as revoluções de 1848 e
consiste em como voltar a conectar a democracia com as aspirações e as decisões
dos cidadãos. Das palavras de ordem de 1848, sobressaíam liberalismo e
democracia. Liberalismo significava governo republicano, separação ente estado
e religião, liberdade de imprensa; democracia significava sufrágio ¿universal¿
para os homens. Neste domínio, muito se avançou nos últimos 150 anos. No
entanto, as conquistas têm vindo a ser postas em causa nos últimos 30 anos e
nos últimos tempos a democracia mais parece uma casa fechada ocupada por um grupo
de extraterrestres que decide democraticamente pelos seus interesses e ditatorialmente
pelos interesses das grandes maiorias. Um regime misto, uma democradura.
O
movimento dos indignados e do occupy recusam a expropriação da democracia e
optam por tomar decisões por consenso nas sua assembleias. São loucos ou são um
sinal das exigências que vêm aí? As esquerdas já terão pensado que se não se
sentirem confortáveis com formas de democracia de alta intensidade (no interior
dos partidos e na república) esse será o sinal de que devem retirar-se ou
refundar-se?
Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/Terceira-Carta-as-Esquerdas/19496
Nenhum comentário:
Postar um comentário