22 de setembro de 2011
Está em
curso um processo global de desorganização do Estado democrático
A
democracia política pressupõe a existência do Estado. Os problemas que vivemos
hoje na Europa mostram que não há democracia europeia porque não há Estado
europeu. E porque muitas prerrogativas soberanas foram transferidas para
instituições europeias, as democracias nacionais são hoje menos robustas porque
os Estados nacionais são pós-soberanos. Os défices democráticos nacionais e o
défice democrático europeu alimentam-se uns aos outros e todos se agravam por,
entretanto, as instituições europeias terem decidido transferir para os
mercados financeiros parte das prerrogativas transferidas para elas pelos
Estados nacionais.
Ao cidadão
comum será hoje fácil concluir (lamentavelmente só hoje) que foi uma trama bem
urdida para incapacitar os Estados europeus no desempenho das suas funções de
proteção dos cidadãos contra riscos coletivos e de promoção do bem-estar
social. Esta trama neoliberal tem vindo a ser urdida em todo o mundo, e a
Europa só teve o privilégio de ser "tramada" à europeia. Vejamos como
aconteceu.
Está em
curso um processo global de desorganização do Estado democrático. A organização
deste tipo de Estado baseia-se em três funções: a função de confiança, por via
da qual o Estado protege os cidadãos contra forças estrangeiras, crimes e
riscos coletivos; a função de legitimidade, através da qual o Estado garante a
promoção do bem-estar; e a função de acumulação, com a qual o Estado garante a
reprodução do capital a troco de recursos (tributação, controle de setores
estratégicos) que lhe permitam desempenhar as duas outras funções.
Os
neoliberais pretendem desorganizar o Estado democrático através da inculcação
na opinião pública da suposta necessidade de várias transições.
Primeira:
da responsabilidade coletiva para a responsabilidade individual. Para os
neoliberais, as expectativas da vida dos cidadãos derivam do que eles fazem por
si e não do que a sociedade pode fazer por eles. Tem êxito na vida quem toma
boas decisões ou tem sorte e fracassa quem toma más decisões ou tem pouca
sorte. As condições diferenciadas do nascimento ou do país não devem ser
significativamente alteradas pelo Estado.
Segunda:
da ação do Estado baseada na tributação para a ação do Estado baseada no
crédito. A lógica distributiva da tributação permite ao Estado expandir-se à
custa dos rendimentos mais altos, o que, segundo os neoliberais, é injusto,
enquanto a lógica distributiva do crédito obriga o Estado a conter-se e a pagar
o devido a quem lhe empresta. Esta transição garante a asfixia financeira do
Estado, a única medida eficaz contra as políticas sociais.
Terceira:
do reconhecimento da existência de bens públicos (educação, saúde) e interesses
estratégicos (água, telecomunicações, correios) a serem zelados pelo Estado no
interesse de todos para a ideia de que cada intervenção do Estado em área
potencialmente rentável é uma limitação ilegítima das oportunidades de lucro
privado.
Quarta: do
princípio da primazia do Estado para o princípio da primazia da sociedade civil
e do mercado. O Estado é sempre ineficiente e autoritário. A força coercitiva
do Estado é hostil ao consenso e à coordenação dos interesses e limita a
liberdade dos empresários que são quem cria riqueza (dos trabalhadores não há menção).
A lógica imperativa do governo deve ser substituída na medida do possível pela
lógica cooperativa de governança entre interesses setoriais, entre os quais o
do Estado.
Quinta,
dos direitos sociais para os apoios em situações extremas de pobreza ou
incapacidade e para a filantropia. O Estado social exagerou na solidariedade
entre cidadãos e transformou a desigualdade social num mal quando, de facto, é
um bem. Entre quem dá esmola e quem a recebe não há igualdade possível, um é
sujeito da caridade e o outro é objeto dela.
Perante
este perturbador receituário neoliberal, é difícil imaginar que as esquerdas
não estejam de acordo sobre o princípio "melhor Estado, sempre; menos
Estado, nunca" e que disso não tirem consequências.
Fonte:
http://visao.sapo.pt/segunda-carta-as-esquerdas=f623642#ixzz2v7NiZV51
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