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terça-feira, 25 de março de 2014

A Hipocrisia Jurídica ou de Como a Argumentação Jurídica é o Antro da Dissimulação (George Marmelstein Lima)

Ninguém costuma assumir seus preconceitos. No mundo do politicamente correto, todos querem transmitir a impressão de que fazem parte do grupo dos mocinhos. O resultado prático disso certamente não é um mundo melhor, mas um mundo com mais desonestidade e hipocrisia. Pois bem… E o que isso tem a ver com o direito?
O direito é um espaço institucional onde o mundo das aparências vale mais do que o mundo das reais convicções. E não me refiro apenas às roupas caras, as vestes talares e à linguagem fria e pomposa dos juristas. Refiro-me especificamente à argumentação, onde as mentiras exteriorizadas são mais relevantes do que as crenças sentidas, mas não-ditas. A argumentação jurídica, nesse ponto, é o antro da dissimulação. É o lugar em que os juristas jogam pra debaixo do tapete os “fatores reais do decidir” toda vez que eles possam colidir com a aparência do “bom direito”.
Por “bom direito” entenda-se aquilo que pode ser, de algum modo, inferido da normatividade oficial. O que importa, de fato, não é que a decisão seja válida, mas que tenha uma aparência de validade. Para dar uma aparência de validade aos seus pontos de vista, os juristas apenas mostram os argumentos que estão em consonância com as normas legais, constitucionais ou com qualquer outra “fonte oficial” reconhecida como dotada de positividade (tratados, precedentes, costumes etc.). Todos os fatores que possam se “chocar” com o tal do “bom direito” são evitados e ocultados. Assim, mesmo quando a solução jurídica é inspirada em algum critério exterior ao sistema normativo, o jurista se esforça para desenvolver uma justificativa que, na aparência, seja condizente com aquilo que se espera de uma decisão jurídica. Em outras palavras, não se pede para o jurista fornecer todas as reais razões que o levaram a tomar aquela decisão, mas apenas que ele apresente alguma justificativa compatível com o sistema legal, ainda que o sistema legal não tenha tido nenhuma influência na formação do juízo decisório.
O jurista inglês Patrick Devlin, no seu livro “The Judge”, chega a sugerir descaradamente que o juiz deve mesmo mentir para manter as aparências da aplicação positivista do direito. Para ele, mesmo quando seja necessário se afastar da lei para fazer justiça substantiva, os juízes não deveriam assumir essa atitude abertamente. Os reais motivos da decisão precisariam ser ocultados em nome das aparências que dão sustentação às instituições responsáveis pela realização do direito.
Curiosamente, no meio jurídico, essa lógica de fingimento deliberado costuma ser aceita sem maiores questionamentos. De um modo geral, ninguém se preocupa com o que está por detrás da argumentação jurídica. O que vale é o que foi escrito e apresentado “objetivamente” como “razão de decidir”, mesmo que isso seja fruto de um mal-disfarçado embuste.

Na teoria da argumentação jurídica, esse expediente é reforçado pela distinção, já bem conhecida na filosofia da ciência, entre o contexto da descoberta e contexto da justificação. O contexto da descoberta seria o momento criativo e introspectivo da elaboração da solução para o problema (a palavra descoberta é apenas um jogo de linguagem, pois, no mais das vezes, a solução é construída ou inventada e não propriamente descoberta). Esse momento introspectivo costuma ser considerado como irrelevante para a análise da validade da resposta oferecida. O relevante, para o controle da racionalidade jurídica, são apenas os fatores que foram exteriorizados no contexto da justificação, que seria o momento objetivo em que o solucionador do problema apresenta as razões por ele desenvolvidas após a “descoberta” da resposta.  Como não há um liame lógico necessário entre um momento e outro, a pessoa não precisaria ser sincera no contexto da justificação. O que se exige é que suas razões exteriorizadas sejam compatíveis com o sistema normativo, ainda que o próprio solucionador do problema não acredite seriamente nessas razões.
Parece óbvio que essa cisão entre o contexto da descoberta e o contexto da justificação é o campo mais propício para o florescimento da dissimulação. Uma pessoa pode ser preconceituosa, racista, vingativa, mesquinha, corrupta e destituída de qualquer virtude, mas se a sua resposta for apresentada com a roupagem do “bom direito”, todos os seus pecados serão expiados, e a sua palavra pode se tornar a encarnação da justiça!
É preciso desmascarar essa hipocrisia. Para isso, há um longo caminho a percorrer, o que não pretendo fazer em um singelo post. De qualquer modo, o primeiro passo é reconhecer a relevância metodológica do contexto da descoberta, a fim de que possamos verificar se há uma real correlação entre a decisão e os reais motivos que a inspiraram. Os valores que hão de orientar a atividade jurídica – e que podem transformar o direito em um autêntico instrumento para a convivência ética – devem estar presentes em todo o processo de realização do direito, desde a formação do juízo decisório, passando pela interpretação e integração jurídicas, até chegar à argumentação, que precisam de ser integrados na mesma rede axiológica. Sem esse entrelaçamento metodológico de todas as fases do processo de realização do direito, a atividade jurídica não passará de um embuste, ou seja, de um ornamento de fachada que tenta dissimular os escombros de um decisionismo nem sempre bem orientado.
Fonte: http://direitosfundamentais.net/

2 comentários:

mateus rocha lima disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
mateus rocha lima disse...

O conteúdo desse post é bem conveniente quanto ao mau uso do direito. Termos formais vazios por vezes sujeitam à razão de existir dos princípios fundamentais. Ainda no tema, a questão do Pol.Correto inverte o sentido da Democracia, quando sugere que são as minorias mais legitimadas para impor suas predileções. Minhocas gigantes para adubar novos paradigmas...