21 de agosto de 2012
Quem
poderia imaginar há uns anos que partidos e governos considerados progressistas
ou de esquerda abandonassem a defesa dos mais básicos direitos humanos, por
exemplo, o direito à vida, ao trabalho e à liberdade de expressão e de
associação, em nome dos imperativos do “desenvolvimento”? Acaso não foi por via
da defesa desses direitos que granjearam o apoio popular e chegaram ao poder?
Que se passa para que o poder, uma vez conquistado, se vire tão fácil e
violentamente contra quem lutou para que ele fosse poder? Por que razão, sendo
um poder das maiorias mais pobres, é exercido em favor das minorias mais ricas?
Porque é que, neste domínio, é cada vez mais difícil distinguir entre os países
do Norte e os países do Sul?
Os fatos
Nos
últimos anos, os partidos socialistas de vários países europeus (Grécia,
Portugal e Espanha) mostraram que podiam zelar tão bem pelos interesses dos
credores e especuladores internacionais quanto qualquer partido de direita, não
parecendo nada anormal que os direitos dos trabalhadores fossem expostos às
cotações das bolsas de valores e, portanto, devorados por elas. Na África do
Sul, a polícia ao serviço do governo do ANC, que lutou contra o apartheid em
nome das maiorias negras, mata 34 mineiros em greve para defender os interesses
de uma empresa mineira inglesa. Bem perto, em Moçambique, o governo da Frelimo,
que conduziu a luta contra o colonialismo português, atrai o investimento das
empresas extrativistas com a isenção de impostos e a oferta da docilidade (a
bem ou a mal) das populações que estão sendo afetadas pela mineração a céu
aberto.
Na India,
o governo do partido do Congresso, que lutou contra o colonialismo inglês, faz
concessões de terras a empresas nacionais e estrangeiras e ordena a expulsão de
milhares e milhares de camponeses pobres, destruindo os seus meios de
subsistência e provocando um enfrentamento armado. Na Bolívia, o governo de Evo
Morales, um indígena levado ao poder pelo movimento indígena, impõe, sem
consulta prévia e com uma sucessão rocambolesca de medidas e contra-medidas, a
construção de uma auto-estrada em território indígena (Parque Nacional TIPNIS)
para escoar recursos naturais. No Equador, o governo de Rafael Correa, que
corajosamente concede asilo político a Julian Assange, acaba de ser condenado
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não ter garantido os direitos
do povo indígena Sarayaku em luta contra a exploração de petróleo nos seus
territórios. E já em maio de 2003 a Comissão tinha solicitado ao Equador
medidas cautelares a favor do povo Sarayaku que não foram atendidas.
Em 2011, a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) solicita ao Brasil, mediante
uma medida cautelar, que suspenda imediatamente a construção da barragem de
Belo Monte (que, quando pronta será a terceira maior do mundo) até que sejam
adequadamente consultados os povos indígenas por ela afetados. O Brasil
protesta contra a decisão, retira o seu embaixador na Organização dos Estados
Americanos (OEA), suspende o pagamento da sua cota anual à OEA, retira o seu
candidato à CIDH e toma a iniciativa de criar um grupo de trabalho para propor
a reforma da CIDH no sentido de diminuir os seus poderes de questionar os
governos sobre violações de direitos humanos. Curiosamente, a suspensão da
construção da barragem acaba agora de ser decretada pelo Tribunal Regional
Federal da 1ª Região (Brasília) com base na falta de estudos de impacto
ambiental.
Os riscos
Para
responder às questões com que comecei esta crônica vejamos o que há de comum
entre todos estes casos. Todas as violações de direitos humanos estão
relacionadas com o neoliberalismo, a versão mais anti-social do capitalismo nos
últimos cinquenta anos. No Norte, o neoliberalismo impõe a austeridade às
grandes maiorias e o resgate dos banqueiros, substituindo a protecção social
dos cidadãos pela protecção social do capital financeiro. No Sul, o
neoliberalismo impõe a sua avidez pelos recursos naturais, sejam eles os
minérios, o petróleo, o gás natural, a água ou a agro-indústria. Os territórios
passam a ser terra e as populações que nelas habitam, obstáculos ao
desenvolvimento que é necessário remover quanto mais rápido melhor.
Para o
capitalismo extrativista a única regulação verdadeiramente aceitável é a
auto-regulação, a qual inclui, quase sempre, a auto-regulação da corrupção dos
governos. As Honduras oferecem neste momento um dos mais extremos exemplos de
auto-regulação da atividade mineira onde tudo se passa entre a Fundação
Hondurenha de Responsabilidade Social Empresarial (FUNDAHRSE) e a embaixada do
Canadá. Sim, o Canadá que há vinte anos parecia ser uma força benévola nas
relações internacionais e hoje é um dos mais agressivos promotores do imperialismo
mineiro.
Quando a
democracia concluir que não é compatível com este tipo de capitalismo e decidir
resistir-lhe, pode ser demasiado tarde. É que, entretanto, pode o capitalismo
ter já concluído que a democracia não é compatível com ele.
O que fazer?
Ao
contrário do que pretende o neoliberalismo, o mundo só é o que é porque nós
queremos. Pode ser de outra maneira se a tal nos propusermos. A situação é de
tal modo grave que é necessário tomar medidas urgentes mesmo que sejam pequenos
passos. Essas medidas variam de país para país e de continente para continente
ainda que a articulação entre elas, quando possível, seja indispensável. No
continente americano a medida mais urgente é travar o passo à reforma da CIDH
em curso. Nessa reforma estão particularmente ativos três países com quem sou
solidário em múltiplos aspectos de seu governo, o Brasil, o Equador, a
Venezuela e a Argentina. Mas no caso da reforma da CIDH estou firmemente ao
lado dos que lutam contra a iniciativa destes governos e pela manutenção do
estatuto actual da CIDH. Não deixa de ser irônico que os governos de direita,
que mais hostilizam o sistema interamericano de direitos humanos, como é o caso
da Colômbia, assistam deleitados ao serviço que os governos progressistas
objectivamente lhes estão a prestar.
O meu
primeiro apelo é aos governos brasileiro, equatoriano, venezuelano e argentino
para que abandonem o projeto da reforma. E o apelo é especialmente dirigido ao
Brasil dada a influência que tem na região. Se tiverem uma visão política de
longo prazo, não lhes será difícil concluir que serão eles e as forças sociais
que os têm apoiado quem, no futuro, mais pode vir a beneficiar do prestígio e
da eficácia do sistema interamericano de direitos humanos. Aliás, a Argentina
deve à CIDH e à Corte a doutrina que permitiu levar à justiça os crimes de
violação dos direitos humanos cometidos pela ditadura, o que muito
acertadamente se converteu numa bandeira dos governos Kirchner na política dos
direitos humanos.
Mas porque
a cegueira do curto prazo pode prevalecer, apelo também a todos os ativistas de
direitos humanos do continente e a todos os movimentos e organizações sociais -
que viram no Fórum Social Mundial e na luta continental contra a ALCA a força
da esperança organizada - que se juntem na luta contra a reforma da CIDH em
curso. Sabemos que o sistema interamericano de direitos humanos está longe de
ser perfeito, quanto mais não seja porque os dois países mais poderosos da
região nem sequer subscreveram a Convenção Americana de Direitos Humanos (EUA e
Canadá), Também sabemos que, no passado, tanto a Comissão como a Corte
revelaram debilidades e seletividades politicamente enviesadas. Mas também
sabemos que o sistema e as suas instituições têm vindo a fortalecer-se, atuando
com mais independência e ganhando prestígio através da eficácia com que têm
condenado muitas violações de direitos humanos.
Desde os
anos de 1970 e 1980, em que a Comissão levou a cabo missões em países como o
Chile, a Argentina e a Guatemala e publicou relatórios denunciando as violações
cometidas pelas ditaduras militares, até às missões e denúncias depois do golpe
de estado das Honduras em 2009; para não falar nas reiteradas solicitações para
o encerramento do centro de detenção de Guantanamo. Por sua vez, a recente
decisão da Corte no caso “Povo Indígena Kichwa de Sarayaku versus Equador”, de
27 de Julho passado, é um marco histórico de direito internacional, não só a
nível do continente, como a nível mundial. Tal como a sentença “Atala Riffo y
niñas versus Chile” envolvendo a discriminação em razão da orientação sexual. E
como esquecer a intervenção da CIDH sobre a violência doméstica no Brasil que
conduziu à promulgação da Lei Maria da Penha?
Os dados
estão lançados. À revelia da CIDH e com fortes limitações na participação das
organizações de direitos humanos, o Conselho Permanente da OEA prepara um
conjunto de recomendações para serem apresentadas para aprovação na Assembleia
Geral Extraordinária, o mais tardar até Março de 2013 (até 30 de Setembro, os
Estados apresentarão as suas propostas). Do que se sabe, todas as recomendações
vão no sentido de limitar o poder da CIDH para interpelar os Estados em matéria
de violação de direitos humanos. Por exemplo: dedicar mais recursos à promoção
dos direitos humanos e menos à investigação de violações; encurtar de tal modo
os prazos de investigação que tornam impossível uma análise cuidada; eliminar
do relatório anual a referência a países cuja situação dos direitos humanos
merece atenção especial; limitar a emissão e extensão de medidas cautelares;
acabar com o relatório anual sobre a liberdade de expressão; impedir
pronunciamentos sobre violações que pairam como ameaças mas ainda não foram
concretizadas.
Cabe agora
aos ativistas de direitos humanos e a todos os cidadãos preocupados com o
futuro da democracia no continente travar este processo.
Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/Oitava-carta-as-esquerdas-As-ultimas-trincheiras/26907
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