26 de novembro de 2013
Depois de
um século de lutas que fizeram entrar o ideal democrático no imaginário da
emancipação social seria um erro grave desperdiçar essa experiência.
No início
do terceiro milênio as esquerdas debatem-se com dois desafios principais: a
relação entre democracia e capitalismo; o crescimento econômico infinito
(capitalista ou socialista) como indicador básico de desenvolvimento e de
progresso. Nesta carta, centro-me no primeiro desafio.
Ao
contrário do que o senso comum dos últimos cinquenta anos nos pode fazer
pensar, a relação entre democracia e capitalismo foi sempre uma relação tensa,
senão mesmo de contradição. Foi-o certamente nos países periféricos do sistema
mundial, o que durante muito tempo foi chamado
Terceiro Mundo e hoje se designa por Sul global. Mas mesmo nos países
centrais ou desenvolvidos a mesma tensão e contradição esteve sempre presente.
Basta lembrar os longos anos do nazismo e do fascismo.
Uma
análise mais detalhada das relações entre capitalismo e democracia obrigaria a
distinguir entre diferentes tipos de capitalismo e sua dominância em diferentes
períodos e regiões do mundo e entre diferentes tipos e graus de intensidade de
democracia. Nesta carta concebo o
capitalismo sob a sua forma geral de modo de produção e faço referencia ao tipo
que tem vindo a dominar nas últimas décadas, o capitalismo financeiro. No que
respeita à democracia centro-me na democracia representativa tal como foi
teorizada pelo liberalismo.
O
capitalismo só se sente seguro se governado por quem tem capital ou se
identifica com as suas “necessidades”, enquanto a democracia é idealmente o
governo das maiorias que nem têm capital nem razões para se identificar com as
“necessidades” do capitalismo, bem pelo contrário. O conflito é, no fundo um
conflito de classes pois as classes que se identificam com as necessidades do
capitalismo (basicamente a burguesia) são minoritárias em relação às classes
(classes médias, trabalhadores e classes populares em geral) que têm outros
interesses cuja satisfação colide com as necessidades do capitalismo.
Sendo um
conflito de classes, afirma-se social e politicamente como um conflito
distributivo: por um lado, a pulsão para a acumulação e concentração da riqueza
por parte dos capitalistas e, por outro, a reivindicação da redistribuição da
riqueza criada em boa parte pelos trabalhadores e suas famílias. A burguesia
teve sempre pavor de que as maiorias pobres tomassem o poder e usou o poder
político que as revoluções do século XIX lhe concederam para impedir que tal
ocorresse. Concebeu a democracia liberal de modo a garantir isso mesmo através
de medidas que mudaram no tempo mas mantiveram o objetivo: restrições ao
sufrágio, primazia absoluta do direito de propriedade individual, sistema
político e eleitoral com múltiplas válvulas de segurança, repressão violenta de
atividade política fora das instituições, corrupção dos políticos, legalização
dos lóbis. E sempre que a democracia se mostrou disfuncional, manteve-se aberta
a possibilidade do recurso à ditadura, o que aconteceu muitas vezes.
No
imediato pós-segunda guerra mundial muito poucos países tinham democracia,
vastas regiões do mundo estavam sujeitas ao colonialismo europeu que servira
para consolidar o capitalismo euro-norte-americano, a Europa estava devastada
por mais uma guerra provocada pela supremacia alemã, e no Leste consolidava-se
o regime comunista que se via como alternativa ao capitalismo e à democracia
liberal.
Foi neste
contexto que surgiu na Europa mais desenvolvida o chamado capitalismo
democrático, um sistema de economia política assente na ideia de que, para ser
compatível com a democracia, o capitalismo deveria ser fortemente regulado, o
que implicava a nacionalização de sectores-chave da economia, a tributação
progressiva, a imposição da negociação coletiva e até, como aconteceu na então
Alemanha Ocidental, a participação dos trabalhadores na gestão das empresas. No
plano científico, Keynes representava então a ortodoxia económica e Hayek, a
dissidência. No plano político, os direitos econômicos e sociais (direitos do
trabalho, educação, saúde e segurança social garantidos pelo Estado) foram o
instrumento privilegiado para estabilizar as expectativas dos cidadãos e as
defender das flutuações constantes e imprevisíveis dos “sinais dos mercados”.
Esta
mudança alterava os termos do conflito distributivo mas não o eliminava. Pelo
contrário, tinha todas as condições para o acirrar logo que abrandasse o
crescimento económico que se seguiu nas três décadas seguintes. E assim
sucedeu.
Desde
1970, os Estados centrais têm vindo a gerir o conflito entre as exigências dos
cidadãos e as exigências do capital, recorrendo a um conjunto de soluções que
gradualmente foram dando mais poder ao capital. Primeiro, foi a inflação
(1970-1980)), depois, a luta contra a inflação acompanhada do aumento do
desemprego e do ataque ao poder dos sindicatos (1980-), uma medida
complementada com o endividamento do Estado em resultado da luta do capital
contra a tributação, da estagnação económica e do aumento das despesas sociais
decorrentes do aumento do desemprego (meados de 1980-) e, logo depois, com o
endividamento das famílias, seduzidas pelas facilidades de crédito concedidas
por um sector financeiro finalmente livre de regulações estatais, para iludir o
colapso das expectativas a respeito do consumo, educação e habitação (meados de
1990-).
Até que a
engenharia das soluções fictícias chegou ao fim com a crise de 2008 e se tornou
claro quem tinha ganho o conflito distributivo: o capital. Prova disso: a
conversão da dívida privada em dívida pública, o disparar das desigualdades
sociais e o assalto final às expectativas de vida digna da maioria (os
trabalhadores, os pensionistas, os desempregados, os imigrantes, os jovens em
busca de emprego,) para garantir as expectativas de rentabilidade da minoria (o
capital financeiro e seus agentes). A democracia perdeu a batalha e só não
perderá a guerra se as maiorias perderem o medo, se se revoltarem dentro e fora
das instituições e forçarem o capital a voltar a ter medo, como sucedeu há
sessenta anos.
Nos países
do sul global que dispõem de recursos naturais a situação é, por agora,
diferente. Nalguns casos, como por exemplo em vários países da América Latina,
pode até dizer-se que a democracia está a vencer o duelo com o capitalismo e
não é por acaso que em países como a Venezuela e o Equador se tenha começado a
discutir o tema do socialismo do século XXI mesmo que a realidade esteja longe
dos discursos. Há muitas razões para tal mas talvez a principal tenha sido a
conversão da China ao neoliberalismo, o que provocou, sobretudo a partir da
primeira década do século XXI, uma nova corrida aos recursos naturais.
O capital
financeiro encontrou aí e na especulação com produtos alimentares uma fonte
extraordinária de rentabilidade. Isto tornou possível que governos
progressistas, entretanto chegados ao poder no seguimento das lutas e dos
movimentos sociais das décadas anteriores, pudessem proceder a uma
redistribuição da riqueza muito significativa e, em alguns países, sem
precedente.
Por esta
via, a democracia ganhou uma nova legitimação no imaginário popular. Mas por
sua própria natureza, a redistribuição de riqueza não pôs em causa o modelo de
acumulação assente na exploração intensiva dos recursos naturais e antes o
intensificou. Isto esteve na origem de conflitos, que se têm vindo a agravar,
com os grupos socias ligados à terra e aos territórios onde se encontram os
recursos naturais, os povos indígenas e os camponeses.
Nos países
do sul global com recursos naturais mas sem democracia digna do nome o boom dos
recursos não trouxe consigo nenhum ímpeto para a democracia, apesar de, em
teoria, a mais fácil resolução do conflito distributivo facilitar a solução
democrática e vice-versa. A verdade é que o capitalismo extractivista obtém
melhores condições de rentabilidade em sistemas políticos ditatoriais ou de democracia
de baixíssima intensidade (sistemas de quase-partido-único) onde é mais fácil a
corrupção das elites, através do seu envolvimento na privatização das
concessões e das rendas extractivistas. Não é pois de esperar nenhuma profissão
de fé na democracia por parte do capitalismo extractivista, até porque, sendo
global, não reconhece problemas de legitimidade política.
Por sua
vez, a reivindicação da redistribuição da riqueza por parte das maiorias não
chega a ser ouvida, por falta de canais democráticos e por não poder contar com
a solidariedade das restritas classes médias urbanas que vão recebendo as
migalhas do rendimento extractivista. As populações mais diretamente afetadas
pelo extrativismo são os camponeses em cujas terras estão a jazidas de minérios
ou onde se pretende implantar a nova economia de plantação,
agro-industrial. São expulsas de suas
terras e sujeitas ao exilio interno. Sempre que resistem são violentamente
reprimidas e sua resistência é tratada como um caso de polícia.
Nestes
países, o conflito distributivo não chega sequer a existir como problema
político.
Desta
análise conclui-se que o futuro da democracia atualmente posto em causa na
Europa do Sul é manifestação de um problema muito mais vasto que está a aflorar em diferentes formas
nas várias regiões do mundo. Mas, formulado
assim, o problema pode ocultar uma incerteza bem maior do que a que
expressa. Não se trata apenas de questionar o futuro da democracia. Trata-se
também de questionar a democracia do futuro.
A
democracia liberal foi historicamente derrotada pelo capitalismo e não me
parece que a derrota seja reversível. Portanto não há que ter esperança em que
o capitalismo volte a ter medo da democracia liberal, se alguma vez teve. Esta
última sobreviverá na medida em que o capitalismo global se puder servir dela.
A luta daqueles e daquelas que veem na derrota da democracia liberal a
emergência de um mundo repugnantemente injusto e descontroladamente violento
têm de centrar-se na busca de uma conceção de democracia mais robusta cuja
marca genética seja o anti-capitalismo.
Depois de
um século de lutas populares que fizeram entrar o ideal democrático no
imaginário da emancipação social seria um erro político grave desperdiçar essa
experiência e assumir que luta anti-capitalista tem de ser também uma luta
anti-democrática. Pelo contrário, é preciso converter o ideal democrático numa
realidade radical que não se renda ao capitalismo. E como o capitalismo não
exerce o seu domínio senão servindo-se de outras formas de opressão, nomeadamente,
do colonialismo e do patriarcado, tal democracia radical, além de
anti-capitalista tem de ser também anti-colonialista e anti-patriarcal.
Pode
chamar-se revolução democrática ou democracia revolucionária--o nome pouco
importa--mas é necessariamente uma democracia pós-liberal, que não aceita ser
descaracterizada para se acomodar às exigências do capitalismo. Pelo contrário,
assenta em dois princípios: o aprofundamento da democracia só é possível à
custa do capitalismo; em caso de conflito entre capitalismo e democracia é a
democracia real que deve prevalecer.
Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/Decima-carta-as-esquerdas-Democracia-ou-Capitalismo-/29647
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