07 de dezembro de 2013
Tal como
acontece com a democracia, só uma consciência ecológica robusta,
anti-capitalista, pode fazer frente com êxito à voragem do capitalismo
extrativista.
Na décima
carta às esquerdas afirmei que as esquerdas se debatem no início do terceiro
milênio com dois desafios principais: a relação entre democracia e capitalismo;
o crescimento econômico infinito (capitalista ou socialista) como indicador
básico de desenvolvimento e de progresso. Nesta carta, centro-me no segundo desafio.
Antes da
crise financeira, a Europa era a região do mundo onde os movimentos
ambientalistas e ecológicos tinham mais visibilidade política e onde a
narrativa da necessidade de complementar o pacto social com o pacto natural
parecia ter uma grande aceitação pública. Surpreendentemente ou não, com o
eclodir da crise tanto estes movimentos como esta narrativa desapareceram da
cena política e as forças políticas que mais diretamente se opõem à austeridade
financeira reclamam crescimento econômico como única solução e só
excepcionalmente fazem uma ressalva algo cerimonial à responsabilidade
ambiental e à sustentabilidade. E, de fato, os investimentos públicos em
energias renováveis foram os primeiros a ser sacrificados às politicas de
ajustamento estrutural.
Ora o
modelo de crescimento que estava em vigor antes da crise era o alvo principal
da crítica dos movimentos ambientalistas e ecológicos precisamente por ser
insustentável e produzir mudanças climáticas que segundo os dados da ONU seriam
irreversíveis a muito curto prazo, segundo alguns, a partir de 2015. Este
desaparecimento rápido da narrativa ecológica mostra que o capitalismo tem
precedência não só sobre a democracia como também sobre a ecologia e o
ambientalismo.
Ora, é
hoje evidente que, no limiar do século
XXI, o desenvolvimento capitalista toca
os limites de carga do planeta terra. Em meses recentes, diversos recordes de
perigo climático foram ultrapassados nos EUA, na Índia, no Ártico, e os
fenômenos climáticos extremos repetem-se com cada vez maior frequência e
gravidade. Aí estão as secas, as inundações, a crise alimentar, a especulação
com produtos agrícolas, a escassez crescente de água potável, o desvio de
terrenos agrícolas para os agrocombustíveis, o desmatamento das florestas.
Paulatinamente, vai-se constatando que os fatores de crise estão cada vez mais
articulados e são afinal manifestações da mesma crise, a qual, pelas suas
dimensões, se apresenta como crise civilizatória.
Tudo está
ligado: a crise alimentar, a crise ambiental, a crise energética, a especulação
financeira sobre as commodities e recursos naturais, a grilagem e a
concentração de terra, a expansão desordenada da fronteira agrícola, a
voracidade da exploração dos recursos naturais, a escassez de água potável e a
privatização da água, a violência no campo,
a expulsão de populações das suas terras ancestrais para abrir caminho a
grandes infraestruturas e megaprojectos, as doenças induzidas pelo meio
ambiente degradado dramaticamente evidentes na incidência de cancro mais elevada
em certas zonas rurais do que em zonas urbanas, os organismos geneticamente
modificados, os consumos de agrotóxicos, etc.
A Conferência das Nações Unidas
sobre o Desenvolvimento Sustentável realizada em Junho de 2012, Rio 20, foi um fracasso rotundo devido à
cumplicidade mal disfarçada entre as elites do Norte global e as dos países
emergentes para dar prioridade aos lucros das suas empresas à custa do futuro
da humanidade.
Em vários
países da América Latina a valorização internacional dos recursos financeiros
permitiu uma negociação de novo tipo entre democracia e capitalismo.
O fim
(aparente) da fatalidade da troca
desigual (as matérias primas sempre menos valorizadas que os produtos
manufaturados) que acorrentara os países da periferia do sistema mundial ao
desenvolvimento dependente permitiu que as forças progressistas, antes vistas como “inimigas do
desenvolvimento”, se libertassem desse fardo histórico, transformando o boom
numa ocasião única para realizar
políticas sociais e redistribuição do rendimento. As oligarquias e, nalguns países, sectores
avançados da burguesia industrial e financeira altamente internacionalizados
perderam boa parte do poder político governamental mas em troca viram aumentado
o seu poder económico. Os países mudaram sociologica e políticamente a ponto de
alguns analistas verem nelas a emergência de um novo regime de acumulação, mais
nacionalista e estatista, o neodesenvolvimentismo, tendo como base o neo-extrativismo.
Seja como
for, este neo-extrativismo tem na sua base a exploração intensiva dos recursos
naturais e, portanto, levanta o problema
dos limites ecológicos (para não falar nos limites sociais e politicos) desta
nova (velha) fase do capitalismo. Isto é tanto mais preocupante quanto é certo
que este modelo de
"desenvolvimento" é flexível na distribuição social mas rígido na sua
estrutura de acumulação. As locomotivas da mineração, do petróleo, do gás
natural, da fronteira agrícola são cada vez mais potentes e tudo o que lhes
surge no caminho e impede o trajeto tende a ser trucidado enquanto obstáculo ao
desenvolvimento. O seu poder político cresce mais do que o seu poder econômico, a redistribuição
social de rendimento confere-lhes uma legitimidade política que o modelo de desenvolvimento
anterior nunca teve, ou só teve em condições de ditadura.
De tão
atrativas, estas locomotivas são exímias em
transformar os sinais cada vez mais perturbadores do imenso débito
ambiental e social que criam num custo inevitável do “progresso”. Por outro
lado, privilegiam uma temporalidade que
é afim à dos governos: o boom dos recursos não dura sempre, e, por isso, há que
aproveitá-lo ao máximo no mais curto espaço de tempo. O brilho do curto prazo
ofusca as sombras do longo prazo. Enquanto
o boom configurar um jogo de soma positiva, quem se lhe interpõe no
caminho, é visto como ecologista infantil, ou camponês improdutivo ou indígena
atrasado e, é muitas vezes objeto de suspeição enquanto "populações
facilmente manipuláveis por ONGs sabe se lá ao serviço de quem".
Nestas condições,
torna-se difícil acionar princípios de precaução ou lógicas de longo prazo. Que
se passará quando o boom dos recursos terminar? Quando for evidente que o
investimento nos recursos naturais não foi devidamente compensado com o
investimento em recursos humanos? Quando não houver dinheiro para políticas
compensatórias generosas e o empobrecimento súbito criar um
ressentimento difícil de gerir em democracia? Quando os níveis de
doenças ambientais forem inaceitáveis e sobrecarregarem os sistemas públicos de
saúde a ponto de os tornar insustentáveis? Quando a contaminação das águas, o
empobrecimento das terras e a destruição das florestas forem irreversíveis?
Quando as populações indígenas, quilombolas e ribeirinhas expulsas das suas
terras cometerem suicídios colectivos ou deambularem pelas periferias de
cidades reclamando um direito à cidade
que lhes será sempre negado?
Estas perguntas são consideradas pela ideologia econômica e política dominante como
cenários distópicos exagerados ou irrelevantes, fruto do pensamento crítico
treinado para maus augúrios. Em suma, um pensamento muito pouco convincente e
de nenhuma atração para os grandes mídia.
Neste
contexto, só é possível perturbar o automatismo político e econômico deste
modelo mediante a ação de movimentos e organizações sociais suficientemente corajosos para darem a conhecer o lado destrutivo deste
modelo sistematicamente ocultado, dramatizarem a sua negatividade e forçarem a
entrada deste denúncia na agenda política.
A articulação entre os diferentes fatores de crise deverá levar
urgentemente à articulação entre os
movimentos sociais que lutam
contra eles. É um processo lento em que o peso da história de cada movimento
conta mais que o que devia, mas são já visíveis articulações entre lutas pelos
direitos humanos, soberania alimentar,
contra os agrotóxicos, contra os transgênicos, contra impunidade da violência no campo, contra a
especulação financeira com produtos alimentares, pela reforma agrária, direitos
da natureza, direitos ambientais, direitos indígenas e quimbolas, direito à cidade, direito à saúde, economia
solidária, agroecologia, taxação das
transações financeiras internacionais, educação popular, saúde colectiva,
regulação dos mercados financeiros, etc.
Tal como
acontece com a democracia, só uma consciência e uma ação ecológica robusta,
anti-capitalista, pode fazer frente com êxito à voragem do capitalismo
extrativista. Ao “ecologismo dos ricos” é preciso contrapôr o “ecologismo
dos pobres” assente numa economia política não dominada
pelo fetichismo do crescimento infinito e do consumismo individualista, e antes
baseada nas ideias de reciprocidade, solidariedade, complementaridade vigentes
tanto nas relações entre humanos como nas relações entre humanos e a natureza.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/Decima-primeira-carta-as-esquerdas-extrativismo-ou-ecologia-/29748
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