29 de maio
de 2012
Historicamente,
as esquerdas dividiram-se sobre os modelos de socialismo e as vias para os
realizar. Não estando o socialismo, por agora, na agenda política — mesmo na
América Latina a discussão sobre o socialismo do século XXI perde fôlego — as
esquerdas parecem dividir-se sobre os modelos de capitalismo. À primeira vista,
esta divisão faz pouco sentido pois, por um lado, há neste momento um modelo
global de capitalismo, de longe hegemónico, dominado pela lógica do capital
financeiro, assente na busca do máximo lucro no mais curto espaço de tempo,
quaisquer que sejam os custos sociais ou o grau de destruição da natureza. Por
outro lado, a disputa por modelos de capitalismo deveria ser mais uma disputa
entre as direitas do que entre as esquerdas.
De fato,
assim não é. Apesar da sua globalidade, o modelo de capitalismo agora dominante
assume características distintas em diferentes países e regiões do mundo e as
esquerdas têm um interesse vital em discuti-las, não só porque estão em causa
as condições de vida, aqui e agora, das classes populares que são o suporte
político das esquerdas, como também porque a luta por horizontes
pós-capitalistas — de que algumas esquerdas ainda não desistiram, e bem —
dependerá muito do capitalismo real de que se partir.
Sendo
global o capitalismo, a análise dos diferentes contextos deve ter em mente que
eles, apesar das suas diferenças, são parte do mesmo texto. Assim sendo, é
perturbadora a disjunção atual entre as esquerdas europeias e as esquerdas de
outros continentes, nomeadamente as esquerdas latino-americanas. Enquanto as
esquerdas europeias parecem estar de acordo em que o crescimento é a solução
para todos os males da Europa, as esquerdas latino-americanas estão
profundamente divididas sobre o crescimento e o modelo de desenvolvimento em
que este assenta.
Vejamos o
contraste. As esquerdas europeias parecem ter descoberto que a aposta no
crescimento econômico é o que as distingue das direitas, apostadas na
consolidação orçamental e na austeridade. O crescimento significa emprego e
este, a melhoria das condições de vida das maiorias.
Não
problematizar o crescimento implica a ideia de que qualquer crescimento é bom.
É uma ideia suicida para as esquerdas. Por um lado, as direitas facilmente a
aceitam (como já estão a aceitar, por estarem convencidas de que será o seu
tipo de crescimento a prevalecer). Por outro lado, significa um retrocesso
histórico grave em relação aos avanços das lutas ecológicas das últimas
décadas, em que algumas esquerdas tiveram um papel determinante. Ou seja,
omite-se que o modelo de crescimento dominante é insustentável. Em pleno
período preparatório da Conferência da ONU Rio+20, não se fala de
sustentabilidade, não se questiona o conceito de economia verde mesmo que, para
além da cor das notas de dólar, seja difícil imaginar um capitalismo verde.
Em
contraste, na América Latina as esquerdas estão polarizadas como nunca sobre o
modelo de crescimento e de desenvolvimento. A voracidade da China, o consumo
digital sedento de metais raros e a especulação financeira sobre a terra, as
matérias-primas e os bens alimentares estão a provocar uma corrida sem
precedentes aos recursos naturais: exploração mineira de larga escala e a céu
aberto, exploração petrolífera, expansão da fronteira agrícola. O crescimento
econômico que esta corrida propicia choca com o aumento exponencial da dívida
socio-ambiental: apropriação e contaminação da água, expulsão de muitos
milhares de camponeses pobres e de povos indígenas das suas terras ancestrais,
deflorestação, destruição da biodiversidade, ruina de modos de vida e de
economias que até agora garantiram a sustentabilidade.
Confrontadas
com esta contradição, uma parte das esquerdas opta pela oportunidade
extrativista desde que os rendimentos que ela gera sejam canalizados para
reduzir a pobreza e construir infraestruturas. A outra parte vê no novo
extrativismo a fase mais recente da condenação colonial da América Latina a ser
exportadora de natureza para os centros imperiais que saqueiam as imensas
riquezas e destroem os modos de vida e as culturas dos povos. A confrontação é
tão intensa que põe em causa a estabilidade política de países como a Bolívia
ou o Equador.
O
contraste entre as esquerdas europeias e latino-americanas reside em que só as
primeiras subscreveram incondicionalmente o “pacto colonial” segundo o qual os
avanços do capitalismo valem por si, mesmo que tenham sido (e continuem a ser)
obtidos à custa da opressão colonial dos povos extraeuropeus. Nada de novo na
frente ocidental enquanto for possível fazer o outsourcing da miséria humana e
da destruição da natureza.
Para superar este contraste e iniciar a
construção de alianças transcontinentais seriam necessárias duas condições. As
esquerdas europeias deveriam pôr em causa o consenso do crescimento que, ou é falso, ou
significa uma cumplicidade repugnante com uma demasiado longa injustiça
histórica. Deveriam discutir a questão
da insustentabilidade, pôr em causa o mito do crescimento infinito e a ideia da
inesgotável disponibilidade da natureza em que assenta, assumir que os
crescentes custos socio-ambientais do capitalismo não são superáveis com
imaginárias economias verdes, defender que a prosperidade e a felicidade da
sociedade depende menos do crescimento do que da justiça social e da
racionalidade ambiental, ter
a coragem de afirmar que a luta pela redução da pobreza é uma burla para
disfarçar a luta que não se quer travar contra a concentração da riqueza.
Por sua
vez, as esquerdas latino-americanas
deveriam discutir as antinomias entre o curto e o longo prazo, ter em mente
que o futuro das rendas diferenciais
geradas atualmente pela exploração dos recursos naturais está nas mãos de umas
poucas empresas multinacionais e que, no final deste ciclo extrativista, os
países podem estar mais pobres e dependentes do que nunca, reconhecer que o
nacionalismo extractivista garante ao Estado receitas que podem ter uma
importante utilidade social se, em parte pelo menos, forem utilizadas para
financiar uma política da transição, que deve começar desde já, do extrativismo
predador para uma economia plural em que o extrativismo só seja útil na medida
em que for indispensável.
As condições para políticas de convergência
global são exigentes mas não são impossíveis e apontam para opções que não
devem ser descartadas sob pretexto de serem políticas do impossível. A
questão não está em ter de optar pela política do possível contra a política do
impossível. Está em saber estar sempre no lado esquerdo do possível.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/Sexta-Carta-as-Esquerdas/26727
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