Bem, às
vezes é importante ser direto. No âmbito do direito, em especial, parece que
vivemos fantasias construídas. Mas a academia deveria ser o palco para dizer
umas boas verdades. Os norte-americanos, por exemplo, fazem isso o tempo todo,
como também aqui os alemães.
No Brasil,
contudo, infelizmente, a cultura constitucional é voltada para bajular o que
temos. Nossa cultura ainda é fortemente marcada pela personalização das
relações, não se construindo uma possível percepção de que criticar um
trabalho, uma decisão, um texto, entre tantas outras atividades, possa ser algo
diverso do que uma crítica pessoal. Toda crítica se torna, assim, uma crítica à
pessoa que realizou aquela atividade e, não, à própria atividade. E, portanto,
ninguém critica um trabalho, porque fica com receio de que o outro fique
triste, magoado, raivoso e também que o contra-ataque se dê no âmbito pessoal.
Projeta-se uma bola de neve de questões pessoais, que pouco contribui para o
debate.
Questões
estratégicas caminham também nessa direção. Historicamente, as faculdades de
direito são estruturadas pelo jurista profissional, aquele que é advogado e
professor, juiz e professor, promotor e professor e assim vai. Não se
construiu, assim, uma cultura de independência crítica, até por questões
naturalmente explicáveis da natureza humana. Um advogado, afinal, não vai ficar
muito confortável tecendo críticas a juízes, porque não é mesmo inteligente,
sob o viés estratégico, fazê-lo. E assim vai.
Logicamente,
uma coisa não significa a outra (há vários acadêmicos que exercem profissões
jurídicas tradicionais que são bastante críticos da realidade, como também há
vários acadêmicos típicos que nada o fazem), mas esse é um diagnóstico
importante. Aqui mesmo na Alemanha, há uma discussão a respeito da
independência dos professores em relação às pretensões de assumirem posição no
Tribunal Constitucional, na medida em que, devido às questões políticas,
especialmente na área do direito público, a crítica à prática jurídica tem sido
mais suave do que em outras áreas.
Enfim,
independência acadêmica é algo importante, exatamente para termos liberdade de
fazermos as devidas críticas, quando reputamos relevante. Esse é o papel da
academia.
Pensando
nisso, hoje resolvi fazer uma crítica acadêmica direta sobre o que tanto
falamos a respeito do “grande jurista”. Reparem que não é uma crítica pessoal –
lembrem-se da minha observação acima -, mas uma opinião de alguém que pesquisa
e trabalha na área a respeito da qualidade acadêmica da produção de outrem.
Naturalmente, divergências existem e são saudáveis. O debate, portanto, está
aberto. Mas é preciso dar início a esse tipo de reflexão. É fundamental
pararmos de bajular a realidade jurídica. Devemos exercer mais nossa
independência. Eis a crítica:
Depois de
lermos constitucionalistas e teóricos do direito do porte de um Jack Balkin,
Daryl Levinson, Sanford Levinson, John Rawls, John Hart Ely, Ronald Dworkin,
Mark Tushnet, Cass Sunstein, Bruce Ackerman, Christoph Möllers, Laurence Tribe,
Marcelo Neves e tantos outros, dói demais ouvir de pessoas o seguinte
comentário: “apesar de tudo, Gilmar Mendes é um grande autor do direito e um
jurista respeitado”.
Bem, minha
opinião: é um dogmático, compilador de jurisprudência e de alguma doutrina, mas
não tem nada de especial. Como teórico, fica bem a desejar. Seu raciocínio
tende mais para uma perspectiva “manualesca” do que efetivamente acadêmica. O
propósito também parece ser mais construir obras que dão lucro (aliás, muito
lucro), do que aprofundar temáticas complexas do constitucionalismo. Vende seus
livros como água, mas que pouco agregam a nossa cultura constitucional. Quando
tenta fazer algo, muitas vezes parece ligado a uma estratégia de poder, com uma
ênfase clara em dar ao STF poderes que nem de longe tem ou deveria ter. Aliás,
em várias passagens, há falácias históricas e teóricas que, para um bom
entendedor, doem na alma. Verdades construídas e bem longe de serem
constatadas. Traduções fora de contexto. Autores fora de contexto. Cansei de
ver exemplos, já escrevi artigos a respeito e até mesmo orientei trabalhos
nessa linha.
Muitos vão
dizer que ele é o grande autor do controle de constitucionalidade brasileiro.
Não nego que ele tenha uma relevância a partir de seus estudos nessa área e
trouxe uma certa projeção do assunto no âmbito do direito constitucional.
Escreveu, afinal, sobre esse tema em praticamente todos seus livros e na grande
maioria de seus artigos. Do mesmo modo, esse tem sido o foco de suas
orientações já há algum tempo.
Mas, vamos
examinar cuidadosamente seus textos. Eles partem de uma lógica que se repete:
1) uma abordagem histórica do controle de constitucionalidade; 2) uma análise
comparada do controle de constitucionalidade; 3) algumas observações sobre como
poderia ser nosso controle de constitucionalidade. Com algumas leves variações
entre seus textos, é esse o desenhar de seus estudos. Não se tem aqui muito
mais do que uma descrição histórica (com saltos argumentativos e anacronismos
problemáticos, na minha opinião), uma descrição do sistema de controle que
serve de paradigma comparativo (também com algumas verdades altamente
contaminadas por uma vontade de dar grandes poderes à Suprema Corte), e
conclusões que caminham para esse mesmo objeto: é importante que o STF assuma
uma postura tão forte como a do paradigma.
Fora os
atentados teóricos a várias metodologias de direito comparado, que ressaltam
bem os riscos da transposição de conceitos e métodos entre realidades jurídicas
bastante diversas, existe um problema de lógica em várias das conclusões. As
premissas adotadas são questionáveis, a forma de se interpretar o paradigma
também e, naturalmente, a conclusão não poderia ser muito diferente. E essa
lógica se repete em seus textos. Quando vai para outros temas, normalmente –
aqui ainda mais evidentemente -, o seu grande trabalho é de compilação de
jurisprudência e julgados.
As
abordagens sobre direitos fundamentais normalmente não entram nos grandes
debates que hoje se encontram a respeito do tema e, em algumas passagens,
chegam a ser uma mera transposição de alguns conceitos que são muito utilizados
aqui na Alemanha nos livros destinados aos alunos da graduação para fazerem o
Exame de Estado. Porém, aqui mesmo na Alemanha, sabe-se que se preparar para o
Exame de Estado é uma atividade estratégica de quem está definindo seu futuro
naquele momento. Para quem já está no doutorado ou no âmbito da pesquisa,
aquelas premissas são altamente questionáveis e problemáticas.
Em seus
textos, não são os grandes livros de doutrina alemã que ali encontramos, salvo
algumas passagens (muitas vezes descontextualizadas) de um autor ou outro
(Häberle, Hesse, Alexy e cia.). Os institutos trazidos, do mesmo modo, são
reproduzidos como verdades.
Vejam o
caso do princípio da proporcionalidade, que tem várias abordagens e
complexidades nem de perto por ele abordadas, e, do mesmo modo, o controle
abstrato alemão, que nem de longe tem essa dimensão que seus textos aparentam
dar, já que aqui o grosso dos julgados do Tribunal Constitucional – em torno de
97% dos casos – decorre do Verfassungsbeschwerde, que é uma reclamação
constitucional que tem um caso concreto por trás (e mesmo que se diga que há
uma abstração em algum momento, o caso está sempre lá de algum modo).
Tampouco
há aprofundamento temático, predominando o tipo de análise panorâmica em que de
tudo se fala um pouco. E suas conclusões caminham normalmente para dar esse ar
colorido ao papel das cortes constitucionais.
Existe
também uma evidente cronologia de seus textos que parece demonstrar que, depois
de ter começado a trabalhar o tema do controle de constitucionalidade, nada
muito novo apareceu. Seus melhores trabalhos são sua tese de doutorado e alguns
escritos posteriores. Depois desse momento, praticamente o que se tem são
repetições e atualizações. Surge um novo instituto, ele vai lá e descreve.
Muda-se a jurisprudência, ele vai lá e descreve.
Enfim, sua
grande capacidade encontra-se na atividade de descrição, o que não é um
exercício mental dos mais complexos. Aliás, não há, em seus textos, nenhuma
grande discussão complexa de direito constitucional. Se fala tanto no papel do
STF, pouquíssimo se encontram discussões sobre separação de poderes no sentido
mais dramático do termo. Se fala tanto em direitos fundamentais, não há
profundos debates sobre os principais temas que os envolvem (teorias da
justiça, teorias da interpretação jurídica a partir dos estudos mais densos a
respeito – e há muitos textos maravilhosos -, teorias sociológicas e econômicas
que lançam olhar sobre o tema). Enfim, muito aquém de uma pesquisa de fôlego.
Há um
elemento da natureza humana que deve ser lançado aqui na equação. É humanamente
inviável alguém escrever textos de fôlego querendo ser tudo na vida: ser
Ministro, ser sócio de faculdade, ser professor. Não dá! Uma pesquisa séria
demanda tempo, dedicação e muita leitura. Normalmente, os verdadeiros “grandes
juristas”, quando escrevem um livro ou mesmo um artigo de fôlego, param suas
atividades paralelas por um tempo, dedicam seu tempo a explorar os meandros do
objeto de pesquisa, sujeitam-se às críticas e comentários de seus colegas.
Enfim, o processo de produção acadêmica de qualidade é demorado. Um bom artigo
pode demorar mais de ano para ser escrito. Um livro, então, nem se fala. Então,
há um critério objetivo que pode ser aplicado aqui. A não ser que estejamos falando
de um gênio – o que não é o caso -, é impossível, sob qualquer ângulo, alguém
escrever, em um ano, tantos artigos e livros com alguma expectativa de
qualidade.
Enfim, por
todas essas razões, seus trabalhos não me parecem ser uma referência relevante para
qualquer pesquisador sério de direito constitucional. Por isso, não é para mim
um grande jurista sob o ponto de vista acadêmico. Estudantes que se apóiam em
seus textos o fazem – espero – por um cálculo estratégico de futuro e, por
isso, estão perdoados. Afinal, podem vir a ser cobrados por algo na frente
(especialmente em um contexto em que concursos e a prática jurídica giram em
torno de um constitucionalismo pouco aprofundado). Porém, como estudantes
sérios, acadêmicos mesmos, espero que procurem fontes bem mais proveitosas. Em
síntese, ler tais livros é, para mim, perda de tempo.
Este é um
daqueles casos em que o poder, a fama e bastante malícia argumentativa projetam
um autor para um patamar que não representa a qualidade de seus trabalhos. O
poder puxa a fama e a fama puxa o poder. A qualidade, nesse contexto, fica em
segundo plano, porque ela acaba deixando de ser, na equação, uma variável que
agrega. Não há necessidade de escrever uma grande obra jurídica, simplesmente
porque qualquer coisa mediana que se escreva será reproduzida por uma cultura
jurídica que não questiona.
O que
importa é o poder da fala ou a fama da fala, não o texto em si. Fazendo uma
analogia com a música, é que nem ouvirmos aquilo que faz sucesso, porque é
reproduzido pelos canais de televisão, pelas rádios e todo mundo canta. O fato
de estar representado por uma grande gravadora que tem contratos com canais de
televisão traz ao músico poder. Por outro lado, a reprodução de suas músicas
nesses canais lhe traz fama. E tudo gira em torno de poder, fama e muito lucro.
Mas, no
fundo, para quem tem um pouco de amor pela música, sabe que não é a Ivete que
fará diferença, mas o Baden Powell, o Tom Jobim, o Ernesto Nazareth, a Dolores
Duran, a Mayza Matarazzo, o Luiz Bonfá e tantos outros. Pois, afinal, não basta
ser afinadinho – Chet Baker que o diga. Saber, portanto, compilar
jurisprudência e doutrina com algumas conclusões seria o ser “afinadinho”. Mas
isso é muito pouco. Em termos diretos, quero dizer que devemos ter menos
“afinadinhos” e mais Chet Bakers. Em outros palavras, queremos ter, em nossa
cultura constitucional, menos Ivetes e mais Badens.
Enquanto
ficarmos bajulando esse perfil de “grande jurista”, perdemos a chance de
olharmos para os devidos problemas de nossa realidade constitucional e passamos
a reproduzir discursos como se verdades fossem. É aquele efeito “cobertor”
sobre o outro olhar. Ao fecharmos os olhos para o “outro” e ao permanecermos no
discurso do mesmo, a realidade constitucional não avança. Um único caminho se
apresenta e se difunde, enquanto milhares de possibilidades existem em outras
frentes – e, certamente, muito mais interessantes.
Por fim,
como jurista respeitado, aí meus caros, a minha opinião já registrei em outras
oportunidades. Respeito se ganha com atitudes, especialmente a partir da
consciência do local da fala. Não me parece, ao menos para mim, ser o caso.
Moral da
história: é um jurista e Ministro do STF. Isso pode soar muito, mas, fora o
poder, me diz muito pouco.
Por Juliano Zaiden Benvindo
Professor de Direito Constitucional da Universidade de Brasília
Doutor em Direito Público pela Universidade Humboldt de Berlim
Pesquisador em estágio pós-doutoral na Universidade de Bremen
Fonte: http://www.criticaconstitucional.com/o-grande-jurista/
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