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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Urariano Mota: O cabo Anselmo um dia antes da morte de Soledad

Soledad foi  torturada e morta no Recife em 1973, grávida, depois de ser entregue ao delegado Sílvio Paranhos Fleury, traída pelo  cabo Anselmo, de quem trazia um filho na barriga.

A foto é de Soledad no Chile.
por Conceição Lemes
Ex-presos políticos e parentes de mortos e desparecidos  da ditadura civil-militar receberam com a alegria a decisão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça de negar o pedido de indenização ao ex-marinheiro José Anselmo dos Santos, 70 anos, o Cabo Anselmo.
Entre eles, o escritor e jornalista pernambucano Urariano Mota, que me enviou este e-mail:

A negação da anistia foi boa, e fiquei muito feliz.
Acredite você, há um blog de direita afirmando que vai levar a negação a tribunais internacionais, que isso poderia dar em imepachment de Dilma, etc.etc. Eu sabia que eram loucos, mas não nesse nível.
Uariano nunca o viu pessoalmente,  mas o “conhece”, como me contou em entrevista em 2009: “Conheço o Cabo Anselmo por seus cadáveres, que ele arrasta como uma cauda. Fui, sou amigo de quem ele perseguiu, traiu e matou”.
Na época, Urariano estava lançando o livro Soledad no Recife, pela editora Boitempo.
Soledad Barret Viedma era uma jovem idealista, corajosa, doce e linda, muito linda. Foi torturada e morta no Recife em 1973, grávida, depois de ser entregue ao delegado Sílvio Paranhos Fleury, traída pelo  cabo Anselmo, de quem trazia um filho na barriga.
Para reforçar a importância dessa decisão da Comissão de Anistia, Urariano nos mandou este capítulo do livro Soledad no Recife. Confiram.
Daniel, Anselmo, Anselmo/Daniel vai até o muro do jardim e olha o mar azul de Piedade. Para fazer o que tem vontade, ele pularia o muro e, longe desse canto, ele voltaria a ser Simbad, o marujo, em busca de aventuras, do heroísmo de Hollywood, das histórias em quadrinhos. Então ele seria resgatado pela esquadra norte-americana, rumo ao Pacífico, ao Havaí, longe, bem longe dessa história concreta de ter de entregar isso. “Isso” é Soledad. Se o vemos mal, dele vemos que não lhe dói em absoluto entregar, delatar, fazer aprisionar, eliminar isso, essa mulher. Todas as ações necessárias, exceto trair. Trair, nunca. Não se trai aquilo em que não se acredita, ou, pelo menos, aquilo em que um lance esperto de sobrevivência foi levado a acreditar. Ele não é nem será jamais um traidor. Traidor é quem trai a pátria. Traidor não pode ser quem entrega o terror, o terrorismo, os terroristas. Pero Soledad ergue a voz na cozinha, ou por decibéis sensíveis aos ouvidos de captação de Anselmo, ou pelo silêncio que se faz no encanto, parece erguer a voz. Nem sequer se ouve um riso, uma folha que cai, um gelo em um copo. No cigarro que ele fuma, a própria fumaça canta:
“La Navidad que les canto
no tiene luz
se va tiznando en la noche
de Juan Laguna”
E Anselmo, Anselmo sua máscara entende esse espanhol y esa Navidad, que lhe chega também com o sentido de nascimento, la navidad que les canto no tiene luz. Vira-se para a esquerda e olha o mar. “Isso passa. Calma, hombre. Terás a compreensão daqueles olhos verdes, claros e vivos de Fleury”. E sorri íntimo. Mas fuma:
“Así por dentro del sueño pasa llorando la luna”.
O que lhe dói não é de modo nenhum – “Culpa zero, entende? Culpa zero” –,  não é bem doer, o que o incomoda é a incompreensão do mundo. É a burrice e o preconceito de todos. Vão culpá-lo do que não está em sua consciência. Em sua treinada e prática consciência. “Se eu não me julgo um criminoso, eu não sou criminoso. O que vale é o que eu sei”. E se põe a mover a cabeça para um e outro lado, como um mangusto, um suricato na savana.
“Se le va hundiendo en los ojos largo el camino”.
Se o vemos bem, e a obrigação de compreendê-lo, de tocar a verdade, a isso nos obriga, notaremos que o ser Daniel de sua alma teria preferido não matar Soledad. Melhor, ele não usa a palavra matar, ele diz pegar, pegar Soledad. Matar, mata-se galinha. Galinha se mata quebrando-lhe ou sangrando o pescoço. E o réptil lhe volta ao ser, a balançar o queixo enquanto se afirma “Eu sou incapaz de matar uma galinha. Me sinto mal, entende? Não gosto de quebrar, de sangrar pescoço”. E não se diz, porque está claro e elementar como o horizonte azul do mar, “que dirá matar gente, torcer e sangrar o pescoço de Sol”. Vem-lhe um engulho, e Anselmo se diz, “beber rum com coca me ataca o fígado”. Se o vemos bem, queremos dizer, se o vemos com a experiência de 36 anos depois, quando ele declara que tentou salvar a companheira, pois assim se refere a ela diante dos ouvidos morais, quando declara que pediu a seu estimado chefe que poupasse a vida de Soledad, ainda o vemos como o homem que acha necessário se eximir da culpa. Ele não é um bárbaro, um brutamontes, porque é atento e atencioso à condenação coletiva. “Fiz o que pude, mas….”. E por assim considerá-lo bem, devemos acreditar que fez o que pôde, no limite, na fronteira máxima da própria sobrevivência. “Caralho”, dirá, “quem me cobra não sabe a barra-pesada daqueles anos”, e, esperto que é, se não põe mais ênfase agora é porque precisa justificar antes a sua “passagem”, supondo uma, da esquerda para a delação, quando em mais de uma oportunidade fez o que ditou a sua consciência. Se o vemos bem, ainda assim não podemos deixar de ver que a sua defesa é constituída de remendos, precários, que a novos fatos cambiam sempre de posição.
Daniel, assim de costas para todos, como se estivesse a fumar sozinho em busca de respostas no mar, pode voltar a ser Anselmo, ele e ele mesmo.
“Muy distraído se queda Com su destino…”.
Si. Se assim fosse, idealista e belo, poderia repetir “puedo escribir los versos más tristes esta noche”. Pero não, ele está nas vésperas, e por isso deve manter os olhos bem abertos, bem certeiros de caçador, que fareja e sabe o lugar exato para o tiro certo sobre a fera.
“Le está soltando campanas la Nochebuena y en el arbolito cantan las arboledas”.
Arboledas soam a ouvidos brasileiros como se fossem borboletas, mariposas, que na arvorezinha de Natal estivessem a cantar. “Y en el arbolito cantan las arboledas”. Seria, talvez, mais absurdo e mais belo, mariposas cantando na arvorezinha de Natal. Mariposas amarelas, azuis, vermelhas, que belas, frágeis e pássaras nem precisam cantar para encantar. Pois Soledad canta como uma mariposa cantaria, se cantasse. As asas seriam as saias das dançarinas paraguaias quando bailam. Há folheados de saias. “Como posso traí-la?”. Sim, isso. Isso agora é isto: “Como posso traí-la?”. Soledad canta como se cantarolasse. Por sua natureza canta, magnífica, mas desligada de si. “Até parece que ela sabe”, Anselmo se fala, enquanto ouve e escuta “distraído se queda com su destino”.
Lá na cozinha ela faz a sua representação, se revela a mulher terra, terra, terra, ao infinito da duração do seu canto. Todos a sentem. “Como posso traí-la?”. É curioso, seria engraçado, mas até mesmo o pensamento de Anselmo lhe vem em uma forma ambígua. Até mesmo na sua forma há uma ponte, que se liga ao lugar onde se mandaria a solidariedade para o inferno. A partir de sua primeira forma de remorso, “Como posso traí-la?”, que significa “Como posso trair essa ternura, como posso me tornar infame ante essa mulher? Como posso me acanalhar ante essa inocência feliz?”, o seu pensamento se liga ao “Como posso traí-la? De que modo posso traí-la? Quais meios melhores para traí-la?”, até “Sim, de que modo traí-la sem que me advenha qualquer culpa?”. Ele a seguir dirá, como o disse 11 anos depois, “Ela não morreu por minha culpa! Ela morreu pelo que ela defendia, morreu por aquilo em que acreditava, morreu pelo caminho que ela escolheu. Ela morreu como vítima do movimento comunista internacional, não por minha culpa”. Mas então ele terá passado por um longo período de pensar em sua defesa, de preparação para responder às pessoas normais, que não o entendem. “Sim”, ele dirá, “ela era uma terrorista”, sim, completará, “ela sofreu um acidente de percurso”. Para corrigir, “Não, não foi um acidente. A morte estava escrita para toda aquela turma. Aconteceu o que tinha de acontecer. O que tinha de ser, foi”. Mas agora, neste janeiro de 1973, não. Soledad canta e isso lhe dá um arrepio, um incômodo, estúpido, enervante. Um arrepio perseguidor sem clemência
“Juanito de la inocência canta en dormido Laguna así por dentro del sueño pasa llorando la luna”.
 “Caralho de mulher sentimental. Foda-se”. Há um fato que ele evita. Há uma informação que sua consciência rejeita. Há uma delação, um embaraço, un embarazo, a querer acorrentá-lo. Sol está grávida. Soledad está grávida. ¿Y? Obstáculos de consciência assim ou se atravessam rápido ou não se atravessam. Quem está determinado, sobre um obstáculo não se deve deter. Si, ¿y? E daí, não é mesmo? O que isso quer dizer? Coisa mais comum, mulher grávida. Caralho de sentimentalismo. Porra, se ela está grávida, putz, foda-se. “Sei lá, cara, sei lá com quem ela trepa!… com quem ela faz ‘amor livre’! Por que não se preveniu? Quem está na luta não se embaraça. Isso é um princípio. Isso é ensinado desde o treinamento em Cuba. Ela não sabia? Putz. Agora, sim… até parece. Ter de carregar pano de bunda de mulher. De mulher com psoríase, de neurótica, de puta. Puta, sim. Onde está a responsabilidade? ¿Donde está su grave responsabilidad? Trepar sem DIU, trepar sem pílula, foda-se. Comigo não, camarada”. E num esforço de concessão: “Ela defende o aborto, não é mesmo? Então vá….”. Ele prova a própria língua como um chiclete.  Para não encarar o oceano, fita a pequena mata, o pequeno mangue à frente do muro do jardim. Nada vê da paisagem. “Nem bucho ela tem. Sim, tem, mas só um pouquinho. Está só no começo”. E não vê mata, nem o serviço sujo em toda a crueza, crueldade e conseqüência. Isso não é com ele. O serviço está bem dividido, cada um com a sua tarefa. Matar, não, isso não é com ele. “Nunca matei ninguém”, ele se diz, mas é incapaz, ainda que com todo cinismo, de externar o que pensa, de falar isso em qualquer entrevista. Porque é inteligente e não quer ser alvo de maledicência ou zombaria. Pero ele sabe, ele mesmo, “para a minha consciência isto é o que é importante: nunca matei ninguém”, e saboreia, alisa, evolui e amacia a própria língua. Estala esse músculo importante como um chicle de bola.
Zenilton, o bom palhaço, o pequeno farsante, o chama.
- Daniel, vem cá, por favor.
Mas tão absorto ele se encontra, que não se dá conta, não escuta. Ou ao chamado, ou à voz esganiçada que auxilia o não ser ouvida por este nome, Daniel. Jônatas, Jonas, Daniel são peles próximas da queda do seu corpo. São como perispíritos, como os seriados no cinema de sua infância, quando via bandidos entrarem no corpo de pessoas pela simples dose de um remédio, e depois saíam para assumir outra identidade. Pero acá o bandido é outro, o lado do mal está invertido, o mal aqui se veste de bem, o terror quer ser o bem. O terror quer ser a justiça. O cacete. O terrorista quer ser o futuro da humanidade. O caralho.
“Sobre la mesa, un pan dulce, un arbolito, unos juguetes. Jugando, sus hermanitos”.
Quem quiser que se engane com essa idiotice. Putz.
- Daniel, Juanito pelas costas o toca.
Ele estremece. Vira-se. Coisa estranha, pareceu-lhe receber um toque de Juanito.
- Daniel, vamos entrar, lhe fala Zenilton. Chegou a hora da surpresa de Sol.
- Surpresa?!
- O bolo do aniversário. Estava esquecido?
- Não, claro. Sim, sim. Vamos lá.

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